Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 30: Entretenimento

Assim como na primeira vez em que chegou àquele espaço frio e agradável, Ryota demandou um pouco mais de tempo para se acostumar com a passagem da consciência entre o “mundo real” e o Empíreo.

Por alguns segundos, ela apenas permaneceu parada olhando para cima, para a imensidão escura pincelada com purpurinas cintilantes antes da sua mente conseguir criar uma conexão de espaço e tempo.

Piscando devagar, baixou a cabeça erguida e observou seus arredores. Seus olhos azuis como o oceano atravessaram a extensão do universo cheio de estrelas para os pés parados acima do próprio reflexo, então seguiram para o lance de escadas brancas que a levaria para o encontro tão esperado.

A voz da beldade vinha do topo da escadaria flutuante, de uma moça com cabelos e olhos verde-água com um longo vestido suave cobrindo seu corpo. Como sempre, a visão de Sofia era de tirar o fôlego de qualquer um, e a sensação de atração e repulsão em sua expressão ainda era o mesmo.

Relaxando os ombros, Ryota começou a andar em direção às escadas. Seus passos eram lentos, quase preguiçosos enquanto se arrastava degrau a degrau, subindo até a plataforma flutuante. Aos poucos, conforme sua visão se ajustava, foi capaz de ver a espiral de estrelas atrás da mesa com cinco cadeiras dispostas, e o pequeno sol no centro ainda chamava sua atenção.

Sofia acompanhou com os olhos a garota de cabelos negros subir silenciosamente em sua direção, e seu sorriso meigo cheio de presunção continuou expresso no rosto bonito.

— Seja bem-vinda outra vez.

A Sabedoria saudou Ryota quando ela finalmente alcançou o topo da escadaria. Seu olhar não vacilou por nem mesmo um instante, e seu sorriso continuou desenhado na face bonita quando a beldade recebeu um tapa no rosto.

Foi forte o bastante para o som ecoar no espaço do Empíreo, marcando sutilmente a pele branca da Entidade que sequer reagiu ao impacto. Ela virou o rosto novamente para Ryota, suavizando sua expressão.

— Satisfeita?

— Nem um pouco.

— ... Claro que sim.

Sofia soltou um suspiro quando tocou a bochecha que ardia, mas em questão de segundos a pequena marca vermelha do golpe desapareceu gradativamente da face.

A inexpressividade ao tapa de Ryota deixou a garota ainda mais irritada, mas ela não conseguiu ter forças para bater na Entidade outra vez. Então, tudo o que fez foi cerrar os punhos ao ponto dos dedos ficarem brancos, e ergueu seu olhar cheio de fúria na direção dela.

— Você sempre soube de tudo... E ainda assim...

— ... Ainda assim?

— E ainda assim, você me enganou! Fingiu que não sabia de nada... Não, você escondeu a identidade da Maga Veridian de propósito!

— Eu sabia que você não acreditaria em minha palavra até encontrar pessoalmente a curandeira. Descobrir desta forma era mais produtivo do que contar-lhe com antecedência a verdade.

— E isso tudo pra quê?! Pra sua diversão, como sempre? É sempre sobre o quanto vocês conseguem zombar dos nossos sentimentos, não é?!

Sofia desfez o sorriso quando começou a responder a garota que tinha um surto de raiva, erguendo a voz o bastante para ecoá-la através do espaço. A Entidade não se moveu ou enrijeceu o rosto outra vez, continuando a falar com um tom mais sério e menos presunçoso, embora ela tivesse rido com o nariz ao dizer:

—  Nem sempre.

— Você é uma desgraçada.

— Outrora me ofenderam com termos piores, então esse certamente me parece um elogio.

Era quase como se ela estivesse zombando da raiva de Ryota de propósito agora, mas o pequeno sorriso de Sofia desapareceu para dar lugar a um rosto sério.

— Naturalmente, eu sempre soube, sei e saberei de tudo... Eu sou a Sabedoria, afinal — ela balançou os ombros como se fosse óbvio, e então continuou antes que a garota de cabelos negros pudesse desferir mais xingamentos — Dentro das infinitas possibilidades, a única forma de aderir à resposta que busco era fazendo-a se encontrar pessoalmente com a curandeira na baía.  Embora sua decisão tola de não se aproveitar adequadamente da oportunidade tenha se desenrolado como esperado.

— ... Como é?

Ryota perguntou quase como se rosnasse de raiva e incompreensão. Quanto mais o rosto bonito de Sofia continuava a falar, mais ela queria dar um soco no queixo dela para derrubá-la daquela plataforma.

Mas a Entidade simplesmente começou a caminhar devagar, abrindo um dos braços para gesticular sutilmente com os dedos da mão direita.

— Sua covardia em não garantir a vingança ao avô e sequer pensar racionalmente em propor um acordo com a Maga Veridian pelo bem daqueles que são importantes a você estava dentro do meu conhecimento. Foi um pouco divertido de assistir, confesso.

Sofia disse aquilo como se comentasse a cena que havia lido em um livro, e virou-se para a garota outra vez, mostrando seu casual sorriso doce de presunção. Ryota, em contrapartida, apenas observou incrédula a Entidade, sentindo-se pronta para explodir a cara daquela mulher com socos que a destruiriam até os ossos.

— ... No fim, pra vocês sempre se trata de diversão.

— Para cada uma de nós, há um prazer diferente que jamais poderia ser compreendido por mortais. Quando se trata da minha pessoa, saber demais torna o dia-a-dia entediante, então meus poucos momentos de lazer se resumem a beber uma boa xícara de chá enquanto observo como o Destino desdobrará o futuro dessa vez.

Apesar de toda a raiva dentro de Ryota quando olhava para a Entidade com postura de superioridade, as palavras daquela mulher carregavam um peso incompreensível. Entretanto, ainda que não fosse capaz de entendê-la, sabia que era uma espécie de solidão.

E aquela percepção desagradável a fez sentir um pouco — apenas um pouco — menos de repulsa pela Sabedoria.

— Dito isso, estou de muito bom-humor hoje. Seu desempenho na segunda provação foi admirável, e confesso que algumas lágrimas chegaram a escorrer dos meus olhos com a performance de sua dança.

— Deixa de ser exagerada.

— Eu nunca minto. Ainda que meu conhecimento me permita desbravar dos futuros mais longínquos e dos passados mais sombrios, entender o desenvolvimento do coração mortal ainda é um verdadeiro desafio. Afinal, é graças a ele que o Destino se molda, formando os infinitos mundos e futuros. A única verdade que jamais serei capaz de me aperfeiçoar é o amor.

Ryota ouviu aquelas palavras cheias de uma dramatização exagerada e revirou os olhos, caminhando devagar até a mesa no centro da plataforma branca. As duas sentaram-se em suas respectivas cadeiras, permanecendo uma de frente para a outra.

Houve um pequeno instante de silêncio entre as duas, e não pareceu que Sofia faria qualquer esforço para quebrá-lo. Era quase irritante saber que aquela beldade sempre sabia o que qualquer um ao seu redor iria dizer, fazer ou pensar, porém a confissão da Entidade sobre não conhecer completamente o coração humano... Não, o coração mortal a fazia criar alguns questionamentos em sua mente.

Aquela certamente não era a primeira vez que sua curiosidade sobre os seres nomeados Entidades fluía nela, mas também havia um misto de receio e orgulho em perguntar. Era impossível desvendar as respostas de Sofia quando não eram ditas com todas as palavras, e também havia a grande questão de, às vezes, as Entidades conversarem em enigmas — o que apenas lhe dava mais dor de cabeça para entender.

— ... Não que eu me importe, mas por que “coração mortal” e não “coração humano”?

Sofia riu com o nariz da pergunta nada discreta de Ryota, e recostou-se no próprio assento.

— Porque a humanidade não é a única a expressar emoções. Portanto, se eu afirmasse erroneamente que apenas não compreendo o coração humano, significaria intrinsicamente que conheço o coração animal, por exemplo.

— E tem alguma diferença? Quer dizer, a humanidade é a única raça racional, certo? Então por que se incomodar em entender o coração de outros tipos de mortalidades?

— Minha percepção sobre “coração” é completamente diferente da sua. E, acima de tudo, o valor do conhecimento possuí pesos distintos entre nós. Para mim, saber é experienciar, ouvir, observar, desfrutar de toda e qualquer possibilidade de um determinado elemento da criação e, posteriormente, espalhar os resultados ao mundo.

— Isso parece bem difícil... E bem chato também.

— Não há tédio maior para mim do que possuir a Sabedoria. Entretanto, uma vez que nunca serei preenchida por ela e minha idealização de dar ao mundo tudo o que sei é meu papel como Entidade, minha existência ganha sentido e, portanto, ainda sou capaz de sentir prazer no conhecimento infinito e desbravável.

— Honestamente, eu não entendi nada. Mas aparentemente você sempre vai ter com o que se distrair e se divertir, mesmo que seja brincando com o sentimento alheio.

Sofia apenas riu com o nariz quando Ryota fez um apontamento tão cru depois de sua tentativa de explicar sua percepção e sentimentos como Entidade, mas não negou o que a garota falou quando cruzou suas pernas debaixo da mesa.

— Dentre todos os corações mortais, o humano sempre será o mais difícil de encontrar uma verdade absoluta. Suas origens, envolturas, experiências, consciência, conhecimento, percepção, sentimentos e uma quantidade inimaginável de conceitos abstratos formam apenas um único coração, que expressa tudo aquilo que representa um único ser humano  individualmente diferente dentre centenas de milhares de outros.

— É por isso que vocês ficam brincando com eles como se fossem bonecas?

— Em uma parcela menor do objetivo original, sim. As Entidades encontram prazer no sofrimento humano, mas sentem-se igualmente agraciadas com a felicidade.

Ryota queria ser capaz de entender como aquilo tudo funcionava, mas sua mente estava tão cheia de dúvidas que acabou desistindo. Tal como Sofia abordou anteriormente, compreender uma Entidade era impossível, talvez da mesma forma que compreender um coração humano era difícil a elas.

A garota apoiou o cotovelo na superfície fria da mesa e encostou o queixo na mão, olhando para a Sabedoria por uma parcela de segundos antes de falar outra vez.

— Estou surpresa que tenha me respondido assim tão fácil.

— Não vejo razão para negar meu conhecimento a você, desde que esteja dentro dos limites impostos pela provação.

Ryota franziu a testa.

— Como assim?

— Algumas verdades apenas serão expostas a você quando cada provação for passada. A forma com a qual as compreenderá pode ser ou não diretamente através das minhas palavras, mas meu dever como anfitriã é dispor as informações da melhor maneira possível.

— “Melhor maneira” só pra você, né?

— Em partes, sim. Mas também através dos meios mais seguros para que você atinja o estado final desejado após as provações.

Aquilo realmente deixava Ryota um pouco preocupada, pois desconhecer o grande objetivo daquelas provas e como elas beneficiavam Sofia era como colaborar em um esquema do mal sem conhecer seu propósito original.

As Entidades eram seres incompreensíveis e que performavam atos maldosos ao redor do mundo — essa era a percepção original de Ryota sobre elas. Conhecer Sofia não mudou muito sua visão, mas a fez compreender que ao menos seus atos não eram infundados ou feitos unicamente com o objetivo de se divertirem às custas das dores dos outros.

Ao menos, aquela era a percepção dela sobre a Sabedoria no momento. Dentre as duas Entidades que conheceu, ela foi a única que se mostrou aberta a conversar de forma que Ryota pudesse entendê-la um pouco melhor.

Não que Mania fosse alguém com quem Ryota quisesse se dar bem. Tal como seu pseudônimo de Insanidade, era impossível que ambas sequer considerassem um diálogo comum, e certamente não se arrependia nem um pouco de tê-la matado.

Recordar-se daquela Entidade de olhos dourados também a fez lembrar sobre sua dança no palco, bem como a ilusão sombria daquela garota com pupilas de estrela. Portanto, Ryota ergueu o queixo e perguntou:

— O que foi aquilo na última provação?

— A que se refere?

— Para de se fazer de inocente! Aquela... Coisa que parecia a Mania me seguindo... Era coisa sua, não era?

Ryota ficou irritada quando Sofia inclinou a cabeça inocentemente para o lado como sempre, parecendo se divertir em fingir não saber literalmente o que ela estava pensando agora. Quando ouviu a pergunta, a Sabedoria arqueou um pouco as sobrancelhas, ainda sorrindo casualmente.

— Não.

— Não?!

— Não.

Sofia apenas piscou algumas vezes, respondendo com sinceridade e pacificamente como sempre. Mas isso apenas deixou Ryota ainda mais confusa.

— Mas aquilo não era real, certo?

— Qual sua percepção de “real”?

— Para de zoar com a minha cara! Eu tô perguntando sério, aqui!

— Estou respondendo com a mesma seriedade. Afinal, a sua percepção de realidade daquela de todos os outros que estavam no anfiteatro era completamente diferente.

— ... Espera, não entendi. Então... Aquilo não era uma ilusão igual todas as outras que tive tendo no último mês?

— E quem disse a você que as vozes e olhares que sentiu eram alucinações, e não sua própria percepção da realidade?

— Bem...

Aquilo que Sofia estava dizendo era bastante simples: Como havia de saber se era realmente tudo mentira? Ryota apenas deduziu aquilo porque, agora que sentia-se um pouco mais calma, notou como parecia paranoica nos últimos dias. Todos os sons, todos os murmúrios, todas as risadas, todos os olhares... Certamente não eram reais, certo?

Mas talvez fossem. Da perspectiva dela, que era vítima daquela alucinação, era real ao ponto de deixá-la irritadiça e incomodada. O fato de ser ou não verdade, no fundo, mudava alguma coisa? Saber que era uma ilusão não a impediu de sentir o corte de Mania em sua perna.

— Sim, seus pensamentos estão corretos. Ser ou não real não muda aquilo que você estava sentindo, vendo ou ouvindo. Eram todas experiências únicas suas, e ainda que em sua pequena bolha de paranoia sua mente possuísse consciência disso, as alucinações não iriam desaparecer.

— ... Então, era real?

Uma gota de suor escorreu pela nuca de Ryota quando aquela possibilidade se apresentou. Ela queria ter acreditado que tudo não passavam de coisas da sua mente instável, mas... Se realmente foi real...

Sofia suspirou outra vez e estalou um dos dedos, fazendo surgir diante dos olhos azuis um copo de água em cima da mesa.

— Acalme-se. Como eu disse antes, essa percepção não mudaria nada. O importante foi que graças a ela você foi capaz de atravessar o segundo estágio e passar na provação com um sucesso extraordinário. Orgulhe-se disso.

Com um pouco de hesitação, Ryota pegou o copo de água e o bebeu. O líquido leve desceu por sua garganta e instantaneamente permitiu aos seus músculos enrijecidos um pouco de relaxamento. Sua própria feição se suavizou, mas a garota não agradeceu Sofia por isso.

— Então, as alucinações não eram coisa sua?

— Não. Essa provação, assim como a anterior, não estava sob o meu controle. Elas se moldam de diferentes formas através da cor e forma de seu coração... — ela alargou um pouco mais o sorriso, mas não com arrogância — ... E, aparentemente, isso lhe permitiu chegar a um novo estágio de autoconhecimento.

As palavras que Sofia usou fizeram, por alguma razão, o rosto de Ryota corar. Então ela limpou a garganta e falou, fingindo não ter sentido sua privacidade invadida outra vez:

— ... Então, cada provação é diferente uma da outra, certo? Afinal, eu não vi qualquer palavra escrita no anfiteatro que tivesse criado o gatilho para começar.

— Exato. Em verdade, a razão para você não ter encontrado a porta de entrada para a provação desta vez foi porque outra pessoa criou ela para você.

Ryota piscou algumas vezes, de repente sem entender a que a Sabedoria estava insinuando. Se as palavras escritas em locais específicos permitiam o início da provação, e dessa vez não houve uma... O que significava?

— Espere, como assim? Você tá querendo me dizer que alguém no anfiteatro me fez entrar dentro da provação?

Sofia apenas balançou os ombros, como se deixasse a garota chegar à própria resposta sozinha. Mas se ela não havia negado... Significava que haviam duas formas de começar a provação: Através da palavra-chave, e através de alguém começando por ela.

Mas isso queria dizer que alguém além dela havia lido a palavra-chave, assim iniciando a provação como anteriormente deduziu? Não, não era isso. Desde o começo, Sofia nunca criou o gatilho.

Porque outra pessoa estava presente para fazer este papel.

— ... Isso quer dizer... Quer dizer que-

— Nossa, mas a sua cabecinha pequena pensa muito devagar! Ô Sofia, vê se dá alguma coisa pra essa coitadinha ser um pouco mais rápido no raciocínio lógico, ou eu ia acabar dormindo de tanto tédio!

— Infelizmente, isso não seria possível. Forçar o intelecto para acelerar os resultados da provação são contra as regras.

— Ui, você é sempre tão certinha que quase sinto pena do desperdício dessa carinha linda.

— Agradeço os elogios, querida amiga.

A troca de palavras entre as duas mulheres ocorreu de repente, mas Ryota não visualizou, a princípio, a pessoa com quem a Sabedoria estava falando. Porém, não demandou mais que alguns instantes para que reconhecesse a voz que causava arrepios em sua espinha, e então os olhos e cabelos rosados surgirem diante de seus olhos.

— Eu até diria que você mandou bem na dança, mas honestamente foi tão cheia de mimimi que eu quase dormi, então vou dar a nota dó pra você.

Assim disse Kakia quando abanou a mão no ar e sentou-se em uma das cadeiras na mesa, rindo com escárnio para a Ryota completamente surpresa.

***

Por o que pareceu uma eternidade, Ryota continuou olhando para a mulher de cabelos trançados que se sentou ao lado delas na mesa, fazendo aparecer imediatamente uma taça requintada de vinho e uma dúzia de docinhos apetitosos.

— Tem alguma coisa na minha cara pra ficar me encarando assim? Ah, claro, além da minha beleza chiquérrima e do meu batom novo que foi super difícil de achar nessa porcaria de cidade?

— Seja paciente com ela, por favor. Ryota acabou de sair de uma das provações, então sua mente ainda está instável.

— E eu com isso? O problema é dela por ser tão fraquinha e ficar choramingando pelos cantos igual criança abandonada pelos pais.

Sofia riu um pouco, mas não em concordância com as duras palavras de Kakia. Na verdade, ela pareceu desistir de convencer a amiga a agir com mais respeito, então voltou seu olhar para a garota petrificada diante dela.

— Peço perdão pelo comportamento dela. Espero que não se sinta pessoalmente ofendida com seus comentários.

— Os meus comentários são doces como mel se comparados aos seus, sabia?

— Você acha?

Kakia apoiou os pés na mesa enquanto bebericava de seu vinho com uma risada, e Sofia apenas a acompanhou balançando a cabeça suavemente, sorrindo.

Entretanto, até aquele momento, Ryota não foi capaz de reagir apropriadamente ao que estava vendo.

— ... Então... A senhora Kakia era...

— Sim, uma das anfitriãs.

— Sempre acho chique quando me chamam de anfitriã, mas Entidade, deusa, ou qualquer outro sinônimo que realce meu brilho também é super bem-vindo, garota.

A mente de Ryota ficou completamente branca por um tempo, como se ainda não fosse capaz de acreditar. Não que suas suspeitas não fossem assim tão fortes em relação ao sentimento de desconforto que aquela mulher emitia desde o início, mas sempre era um pouco chocante saber que uma Entidade estava literalmente ao lado dela todo aquele tempo.

Sofia deveria ter percebido imediatamente a perplexidade de Ryota, e aquele seu sorriso cheio de diversão era a representação perfeita do quão satisfeita estava com aquela reação. A cada momento que passava, Ryota realmente queria dar um soco na cara dela, mas deixou aquele sentimento morrer em prol de fazer sua mente voltar a funcionar.

— Então, a pessoa quem criou o gatilho para a minha provação foi...

— Eu mesma! A grandiosa, a mais maravilhosa e linda desse mundo todinho! E minha nossa, como você demorou pra engatar, hein? Quase que eu mesma te peguei pela mão e te levei pro palco, porque tava demorando horrores!

— Você é sempre tão impaciente, minha amiga — Sofia comentou entre uma risada e outra — Foi por isso que não quis insistir para que fosse a aplicadora dessa vez.

— Mas você deixou as outras tomarem conta também, tava me sentindo excluída quando não me pediu. Então eu mesma me convidei e fiz as coisas acontecerem... Pena que a provação foi um saco, quase ronquei de tanta preguiça.

Kakia continuou reclamando com seu mesmo tom de superioridade e orgulho, mordiscando os doces. Sofia, por outro lado, parecia se sentir um pouco mais à vontade com aquela mulher por perto, como se realmente fossem amigas de longa data. Até seu sorriso costumeiro cheio de presunção havia suavizado um pouco, parecendo perder um pouco a formalidade de anfitriã.

— Certo, certo. Sinto muito por subestimar suas capacidades.

— Valeu querida, amo você~

As duas Entidades continuaram interagindo com uma naturalidade impressionante, e Ryota apenas conseguiu observar as duas mulheres com relativa surpresa.

— E caso esteja se perguntando, Kakia é a Entidade da Imoralidade.

— Imoral de corpo e alma, mas brilhando como o sol porque é assim que a gente precisa viver. O mundo já tá banal e chato demais com pessoas sem-graça como vocês.

Kakia apontou para Ryota com o queixo e riu, quase mergulhando no próprio vinho de tão rápido que tomou. Mas logo quando a taça esvaziou, a garrafa repentinamente surgiu em partículas e flutuou na direção dela, enchendo-a outra vez antes de pousar na mesa.

Em algum momento, Sofia havia começado a beber chá para lhe fazer companhia. Era certamente um compartilhamento estranho de gostos, porque ambas eram completamente diferentes, mas estavam em uma sintonia assustadora.

Como esperado de seres anormais como Entidades.

Por isso, apesar das ofensas de Kakia, Ryota não se sentiu particularmente tentada a respondê-la, então apenas se manteve em silêncio. Esse comportamento pareceu agradar Sofia, que começou a falar:

— Felizmente, Ryota foi capaz de passar adequadamente pela provação, então podemos dar prosseguimento agora.

Kakia riu com o nariz.

— Eu ainda acho que foi fácil e dramático demais. A gente devia tentar apimentar essas provações, não acha? Mexer uns palitinhos pra deixar mais empolgante.

— ... Como assim fácil e dramático?

— Tá surda minha filha? Claro que foi um porre de te assistir choramingando com traição e abandono quando literalmente todo mundo passa por isso uma vez na vida, e você fazendo maior tempestade em copo d’água por besteira!

Pela primeira vez, Ryota se sentiu incomodada com o tom de voz destinado a ela e a forma como Kakia desprezou seus sentimentos, então franziu a testa e encarou a Imoralidade.

— Você só pode estar tirando com a minha cara.

— E tô mesmo. Achei ridículo, na minha época as provações eram bem mais cruéis.

— Não devemos mencionar antigas provações aqui, Kakia. Sabe que elas se moldam por pessoa.

— Fala isso porque pra você foi fácil, né? Mal piscou e já acabou!

Sofia apenas bebericou seu chá, não parecendo se importar com as provocações da amiga. Sua paciência era digna de ser admirada, porque Ryota estava a um passo de bater com a garrafa de vinho na cabeça de Kakia a qualquer instante.

— E por que se importar em fazer uma provação mais difícil?

— Porque é divertido de ver vocês, coitados, se debatendo pra escolher e entender coisas tão simples. Eu acho um belo porre quando ficam de draminha, então é bem mais daora fazer chover um pouco de sangue pra pesar um pouco o clima.

Isso definitivamente assustou um pouco Ryota, e Kakia sabia disso. O sorriso dela cheio de uma malícia explícita, e o olhar capaz de perfurar seu interior eram as provas de que adorava observar a desgraça humana.

— ... Isso é horrível.

— Ai, que pena. Porque eu não ligo, querida. A gente tá aqui pra curtir um pouco com vocês durante a provação pra não ser tão chato, principalmente com podrezinhos como você.

— ... Claro. Sempre foi apenas entretenimento pra vocês.

Ryota resmungou com irritação e então olhou para Sofia, mas ela não respondeu. Sabia que era óbvio desde o início que o prazer em explorar os sentimentos, dores e traumas humanos era real, mas ainda assim dizer com todas as palavras a fazia ter arrepios de raiva e nojo.

A Sabedoria apenas as observou em silêncio por o que pareceu uma parcela enorme de tempo antes de suspirar, baixando a xícara.

— Não espero que compreenda ou acredite, mas nunca foi apenas por entretenimento. Como lhe expliquei antes, nós-

— Eu não tô nem aí... Sério, eu realmente não ligo mais.

Foi idiotice da parte dela acreditar que talvez, ao menos um pouco, pudesse ser capaz de entender aquelas criaturas em pele humana. Esperar que Sofia tivesse qualquer sensibilidade ou qualquer exposição sobre sua solidão foi um mero jogo de palavras para brincar outra vez com seus sentimentos.

Nada mais que uma distração para seu grandioso tédio.

Talvez houvesse um propósito maior, mas certamente era tão cruel quanto as vontades pessoais de cada uma daquelas Entidades. E com essa percepção tardia do quão facilmente manipulável ainda era, Ryota suspirou pesadamente para se acalmar.

Por alguma razão, finalmente foi capaz de perceber que explodir em raiva era apenas parte do que as agradava. Kakia, em especial, deixou claro que se divertia com o sofrimento dela, principalmente ao cutucar feridas abertas para piorá-las.

Nesse sentido, Sofia ao menos foi um pouco delicada — mas não deixava, nem um pouco, de ser horrível. Portanto, ao invés de apenas quebrar a taça na cabeça de Kakia, controlou a respiração e manteve-se o mais paciente possível sentada naquela cadeira.

Ainda haviam respostas que poderia conseguir das duas mulheres, portanto aprender a controlar suas emoções era um passo essencial. E, graças ou não à última provação, Ryota se sentia um pouco mais leve, como se um pedaço de todo o peso que carregava nos últimos anos tivesse se desfeito.

A Sabedoria suavizou sua expressão ao ver esse comportamento, e seu sorriso se tornou presunçoso outra vez.

— Estou impressionada com seu autocontrole, mesmo sob tamanha pressão.

— ... A gente aprende com o tempo.

— E depois dizem que eu sou a Entidade mais cruel! Vê se pode um absurdo desses!

Quando a segunda taça de vinho se esvaziou, Kakia simplesmente segurou a garrafa e bebeu dela diretamente como se fosse água.

— E você não é?

Ao fazer aquela pergunta, Ryota notou como Kakia parou de beber devagar o vinho e olhou para ela com um sorriso largo, fazendo as íris rosadas brilharem como joias.

— Não gosto que me chamem de tirana ou de bárbara, porque eu sou um verdadeiro anjinho perto de umas aqui — a Imoralidade deu um olhar lateral para a Sabedoria, que apenas fingiu inocência como de costume — Mas se tá perguntando se tem alguém aqui que pareça assim tão má... Bem, certamente tem uma querida que se encaixa bem nesse papel.

— Aaaaah, que injuuuusto! Cês tavam fofocando sozinhas antes de eu chegar!

Foi em uma questão de segundos que aquela voz, mais uma vez conhecida, chegou aos seus ouvidos. Mas ao invés de apenas perplexidade, o que preencheu Ryota foi um horror e raiva profundos, desenterrados de sua alma à força.

Ela sentiu alguém abraçar ela por trás da cadeira, se apoiando nela ao falar com Kakia e Sofia. Era o corpo de uma garota leve, e sua voz aguda remetia a uma juventude próxima o bastante de uma infantilidade irritante. Um arrepio percorreu Ryota da cabeça aos pés quando ergueu seu olhar arregalado na direção daquela pessoa.

— Ah, você tá com umas cores tão bagunçadas hoje! Se bem que você sempre foi teve esses tons fortes, então não mudou tanto assim... Só parece mais so... Solo... Son... Sombrinha?

— Sombrio?

— É, é isso aí mesmo!

A voz aguda riu novamente, então apertou o abraço na Ryota completamente paralisada de horror quando os pares de olhos azuis escuros e dourados com estrelas se encararam.

— Sentiu saudades?

Mania assim perguntou inclinando a cabeça quase que completamente, abrindo aquele seu sorriso cheio de uma crueldade infantil.



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