Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 28: Dança

A troca de olhares entre as íris amarelas e azuis durou uma porção de segundos valiosos, mas foi o suficiente para um arrepio frio como uma brisa de inverno atravessar a pele da garota sentada do outro lado do palco, sentindo os pelos do corpo se arrepiando completamente.

As pernas que antes estavam relaxadas imediatamente colocaram-se em pé, fazendo o rapaz de cabelos ruivos que estava tão dedicado em falar e amarrar as sapatilhas ao redor de suas canelas quase cair sentado na surpresa.

Mas Ryota não prestou atenção nas reclamações dele, pois sua atenção continuava fixa naquela coisa do outro lado do palco.

Eram certamente os olhos dela. Jamais se esqueceriam do quão brilhante era aquele dourado como ouro, as pupilas desenhadas erroneamente como estrelas cheias de uma malícia e crueldade infantis assustadoras. O sorriso largo que cortava a face jovem ainda era a mesma, os dentes brancos parecendo cintilar na escuridão.

Bastou, no entanto, um piscar de olhos e uma distração para que a visão desaparecesse, e o rosto conhecido se tornasse parte das sombras outra vez.

— Ô minha filha, qual o seu problema, hein? Eu literalmente tava fazendo o maior escândalo do mundo pra chamar sua atenção!

O toque de Alex em seu braço causou um formigamento desagradável, e Ryota o afastou com um tapa suave quando voltou seus olhos para ele apenas para reparar em sua expressão de indignação, imediatamente baixando as íris azuis para o chão de novo.

— Que foi? Até parece que viu um fantasma, sua doida.

— ... Não é nada.

Alexandre não pareceu muito convicto da resposta baixa e pensativa dela, e mesmo que Ryota se desse ao trabalho de explicar o que havia visto, haveria muita dor de cabeça envolvida, então apenas decidiu se manter em silêncio.

Ainda que olhasse novamente para o outro lado do palco, não era mais capaz de ver a silhueta da Entidade.

... Foi uma ilusão, é claro.

Ryota não precisava de muito esforço para deduzir aquilo, mas ainda assim a sensação de estar sendo observada constantemente continuava, e isso certamente a incomodava profundamente.

Era diferente de quando estava no instituto sob os olhares dos demais estudantes, que conversavam sobre ela ao passar. Também não era o mesmo desconforto de quando ouvia sussurros infiltrando seus ouvidos como insetos rastejando sob a sua pele.

Outrora, quando ainda realizava as provações de Sofia, foi capaz de ver por sua visão periférica e até quase perfeitamente os mortos. Pessoas que uma vez pediram por ajuda enquanto as observava morrer uma a uma, e seus gritos de desespero ainda ecoavam perfeitamente por sua mente quando se permitia lembrar.

Eram lembranças que nunca a deixariam, trazendo uma ardência do fundo de seu estômago e corroendo cada pedaço dela como ácido.

Mas sabia que eram todas ilusões com o propósito de distraí-la durante os testes. Ou talvez apenas fossem representações visuais e auditivas dos seus maiores arrependimentos.

Não sabia com exatidão quais eram os termos concretos para isso, mas era fato que a Sabedoria sempre se aproveitava de suas memórias e sentimentos para proporcionar o pior tipo de provação possível. Sempre havia o propósito de provocá-la, e naquele instante Ryota sabia que o intuito deveria ser o mesmo.

A Entidade da Insanidade, Mania, era certamente um marco chamativo que causou a maior parte de seus traumas, medos e receios. E ainda que fosse nada mais que uma alucinação, apenas sentir seus olhos era incômodo o suficiente para deixá-la distraída, o estômago se revirando ao ponto de querer vomitar.

— Alôu? Alex chamando Ryotinha? Tá viva, minha filha?

O prodígio estalou os dedos na frente da garota que havia parado para pensar outra vez com uma expressão enrijecida no rosto, então cruzou os braços.

— Infelizmente eu não tenho uma bola de cristal pra ler o que se passa nessa sua cabecinha brilhante, viu? Então se quer dizer alguma coisa, fala logo. Senão, a gente precisa correr pra ensaiar essa dança de uma vez antes que o tempo acabe... Já se passou meia hora.

— ... Vamos ensaiar.

Ryota soltou um suspiro e concordou com Alex. Ainda haviam muitas coisas passando por sua mente, mas a maior prioridade no momento não eram as paranoias que apenas ficavam mais e mais poderosas em sua mente, mas a necessidade de passar no teste imposto por Kakia e também na provação de Sofia Megalos.

Ela poderia ignorar algumas alucinações, obviamente. Estava acostumada a lidar com elas há mais de um mês, então não haveriam grandes problemas.

Ou foi o que pensou.

Enquanto deixava seus olhos acompanharem os movimentos de Alex, que também calçou um par de sapatilhas pretas para fazer a demonstração dos passos básicos e como ficar na ponta dos pés, a concentração da garota de cabelos negros ainda era desviada para qualquer outro lugar.

Era capaz de ouvir a voz melodiosa do rapaz lhe dando explicações.

Mas também sentia a testa suar com a sensação de um par de olhos a observando das sombras.

Não queria chamar a atenção do prodígio que se dedicava a ajudá-la a praticar os movimentos, esticando a perna para deslizar através do palco em busca do equilíbrio perfeito dos passos.

Portanto, relutou contra o instinto de se virar.

Mas os calafrios ainda percorriam suas costas molhadas com suor frio, e a visão periférica captava o dourado das sombras.

Às vezes, quando fixava o pé no lugar e girava pra replicar o passo ensinado, seus olhos dançavam e encontravam-se novamente com as pupilas estreladas.

E o mais aterrorizante era saber que estavam ficando mais e mais próximas cada vez que desviava sua atenção.

Talvez Alexandre tivesse percebido seu nervosismo, mas a garota manteve-se concentrada nos ensaios. Dez minutos se passaram, e as sensações apenas ficavam mais e mais fortes.

Em algum momento, o par de olhos expressou um sorriso diabólico. Depois uma mão cheia de garras espreitou das sombras, então logo mais um corpo se sujeitou a aparecer. Era quase como se a cada instante, a cada desvio de atenção dela, o corpo daquela ilusão ganhasse mais forma e constância, aproximando-se mais e mais dela.

Mas era apenas uma alucinação. Ainda que os olhos fossem poderosos ao ponto de desestabilizá-la, tirando sua concentração e a fazendo tropeçar nos próprios pés; ainda que, aos poucos, um ruído do fundo de sua mente crescesse como a característica risada aguda e jovial da Entidade; ainda que o som de correntes que acelerava seu coração e fazia sua mente ficar branca fosse ouvido, Ryota continuou ensaiando.

Seus sentidos estavam conturbados. Ela estava entrando em um desespero profundo. A aproximação daquela ilusão era tão assustadora quanto os momentos em que a revivia em seus piores pesadelos.

Mas aquilo era ainda pior, pois não havia como despertar da realidade.

E, por alguma razão, ela sabia que se fosse tocada por aquela coisa...

Recordava-se perfeitamente do que acontecia quando as pessoas eram tocadas pelas correntes, e quais as consequências ainda piores de quando suas mãos encostavam na pele de um ser humano.

Os berros de Jaisen se contorcendo no chão, arranhando a própria carne para se livrar da profunda agonia, ainda eram memoráveis. A visão da pessoa que amava, que tentou se sacrificar para salvá-la quando seus joelhos cederam e fraquejaram, ainda era fresca.

Uma risada foi ouvida atrás dela, e a respiração fria eriçou os cabelos de sua nuca.

Mas quando Ryota se virou, não havia nada. Era apenas ela no palco, com vários outros estudantes que estavam prontos para a apresentação de suas performances.

Uma hora de ensaio se passou, e agora todos se organizaram em filas para demonstrarem aquilo que aprenderam. Obviamente, os passos e movimentos não eram executados com a perfeição de um profissional ou a emoção de um verdadeiro ator, mas não eram excepcionalmente ruins.

Kakia e Alex, os dois tutores e aplicadores daquele teste, sentaram-se na primeira fileira do anfiteatro para assistir às apresentações. Eles coordenavam uma caixa de som para cada um dos alunos que ia até o centro do palco, debaixo das luzes fortes dos holofotes, e dançava.

Não haviam comentários disparados, apenas olhares e comentários murmurados entre os dois jurados. Descobrir o que diziam e ler seus rostos era certamente um desafio, e nenhum dos estudantes sequer tentou se arriscar.

Tem alguma coisa muito errada.

Mas claro que a concentração da garota de cabelos negros não estava nas apresentações ou nos aplicadores, mas na constância das sensações que começavam a irritá-la.

Ninguém ao redor pareceu se incomodar, no entanto. A essa altura, Ryota sabia que era nada mais que uma ilusão estúpida. Sabia que todos os sons, todos os olhares, toda o calor e sensor de movimentos, eram apenas mentiras.

Não é real.

Ela sabia, e sempre soube.

Faz parte da provação, obviamente.

Não havia como ser diferente. Tinha de ser um truque de Sofia.

Eu não estou ficando louca, definitivamente não estou.

Era quase uma oração a essa altura. Ryota não tinha mais tanta certeza daquilo que era ou não verdade.

Não é real. Não é real. Não é real.

— Ryota!

Não é real.

Ela ouviu chamarem seu nome para a apresentação.

Seus olhos fechados se abriram.

Ouviu um chiado atrás dela, bem ao lado de seus pés.

Não é real, não é real.

— Ryota!

Suas pernas quase cederam quando baixou os olhos azuis.

Havia um corpo de bruscos se arrastando atrás dela, em sua direção.

Era uma sombra de formas conhecidas, com olhos de ouro e pupilas de estrelas.

Estava se movendo.

Bem devagar.

— Ryota! É a sua vez!

Não é real. Não é real. Não é real.

Ela viu as garras da sombra de forma conhecida se esticarem na direção de seu calcanhar.

Estava paralisada no lugar.

Não é real, não é real, não é real, não é-

Ouviu uma risada aguda preencher seus ouvidos como sinos dentro de sua própria mente.

Por um instante, ficou completamente surda.

Seu coração acelerou ao ponto de querer explodir, apertando sua garganta.

Ela não estava respirando.

As unhas roçaram sua pele, puxando gentilmente o laço da sapatilha que envolvia sua canela.

Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não é real Não-

Sentiu um empurrão em suas costas, mas a garra das sombras fez um rasgo em sua pele.

Ela viu o pequeno arranhão sangrar e queimar, manchando a sapatilha de vermelho.

Seus pés deslizaram para o centro do palco, mas ela não os controlava. Não sabia quem estava movimentando seus membros, ou como o corpo foi capaz de acompanhar o ritmo da música que começou a reverberar da caixa de som.

A consciência não estava em sintonia com o corpo. Ainda que visse a si mesma se mover, ainda que visse seus passos, ainda que fosse capaz de sentir o calor da luz em sua pele...

Não sou eu.

Quem estava controlando aquele corpo?

Não é real.

A sensação de calor e desespero atingiram seu auge.

Ryota ouviu gritos chamando seu nome.

Alex a alertava de alguma coisa.

Kakia desferia xingamentos.

Os estudantes murmuravam surpresos.

Os pés dela faziam barulho contra o chão, as sapatilhas estalando no palco.

O sangue escorrendo por sua panturrilha era sentido, e certamente também era visto.

Mas isso não pode ser real.

Sua visão escureceu, ganhando pontos brancos. O som se tornou uma bagunça, uma mistura de vozes e ruídos. O calor percorreu seu corpo da cabeça aos pés, e Ryota sentiu que estava pegando fogo. Sua vista balançava para os lados, mas não havia como saber se era porque estava prestes a desmaiar ou se ainda estava dançando.

A única coisa que sabia... Era que sua garganta começou a doer profundamente, lacerando como se uma lâmina a rasgasse de dentro pra fora.

Ryota estava gritando.

E nesse instante, seu corpo girou e os olhos dourados, que estavam atrás dela no mundo cheio de luz e sombras do palco, de repente encontrou os dela.

Isso não é real.

Ela deslizou a perna no palco, saltando no ar quando arrebatou a sombra da Insanidade com um chute na cabeça, e tudo dentro dela explodiu.



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