Volume 10 – Arco 4
Capítulo 27: O Anfiteatro Diadema
O Anfiteatro Diadema era uma construção verdadeiramente elegante. Em verdade, a cidade de Celestia possuía prédios e casas com designs diferentes do que se veria em Thaleia, pois enquanto a capital de um dos países apresentava uma verdadeira bagunça de cores, sons e formas, com automóveis, carruagens e pessoas espalhados para todos os lados, ali havia uma uniformização agradável aos sentidos.
Urânia apresentava uma constituição de ruas asfaltadas com pedras e madeiras que não impediam os movimentos ou ameaçavam qualquer um de tropeçar, mas ainda assim mantinham a elegância. As casas eram coloridas em tons pastéis e seus telhados eram pintados com um marrom tão profundo que se aproximava da cor do mais puro preto; as janelas eram sempre compridas e cheias e vidros estilizados em vários tamanhos e formatos diferentes, dependendo de cada construção.
Como uma remanescente da cultura e da história da antiga Urânia, o povo uraniano que antes viera de seu país foi permitido a tomar um pedaço das terras de Thaleia que mais se aproximavam de seu clima e naturezas anteriores, permitindo assim se acostumarem com um pouco mais de facilidade ao seu novo ambiente de convivência.
Ryota ouvira falar que, outrora, Urânia fora um país daquele mesmo jeito que via com os próprios olhos agora, mas saber que havia um rio cruzando a cidade tornava a experiência de conhecer a cidade um pouco mais fantasiosa. Não haviam barcos cruzando as águas a passeio, mas tanto os corrimões da ponte quanto as divisórias eram decoradas com flores e luzes que certamente traziam ao ambiente um ar romântico.
Quando observava aquelas redondezas agora, a garota se perguntou por que não reparara naquilo antes. Como foi que passou a ignorar a beleza daquelas construções, quando antes costumava admirar tanto toda e qualquer diferença que seus olhos e ouvidos poderiam apreciar? Recordava-se de ficar deslumbrada com a própria mansão da duquesa Minami, e posteriormente literalmente sem palavras quando colocou os pés dentro das muralhas da capital Hera.
Lembrar-se daqueles dias lhe trazia um sentimento de estar flutuando, quase agradável. A vista, que por quase um mês era direcionado aos próprios pés ou aos livros de estudo, criando uma barragem de cinzas e negligência ao cenário, agora foi levemente colorida com a luz do sol. Foi pouco, mas o bastante para fazer uma serenidade abraçar seu coração sempre tão agitado e apertado em seu peito.
Ryota não diria aquilo em voz alta, mas estava minimamente agradecida por Alexandre ter escolhido o caminho mais longo até o local de encontro.
Por falar nele, o prodígio de personalidade e sorrisos brilhantes como o sol andava sempre um passo a frente e gesticulava com tanta frequência que a garota achou que seus braços pudessem cair a qualquer segundo. Porém, o prodígio também costumava falar sem parar, muito mais do que ela antigamente quando ainda era uma jovem cheia de inocência e sonhos para desbravar o mundo em busca de reunir sua família em sua terra natal.
Quando se encontrou facilmente presa nos próprios pensamentos outra vez, sentiu um cutucão na barriga que a fez se virar com uma careta para Alex, que apenas arqueou as sobrancelhas de forma divertida e indicou com a cabeça a construção ao lado.
— Então, minha querida... Seja bem-vinda ao Anfiteatro Diadema! Eu sei, é de cair o queixo, né? Você ilustrou a reação perfeita de qualquer um que vem aqui pela primeira vez.
Como de costume, Ryota não conseguiu encontrar palavras para responder Alex, mas certamente seus lábios se abriram um pouco em surpresa quando olhou para o anfiteatro. Era uma construção tão grande que precisava erguer completamente o queixo para enxergar completamente, e seu formato circular a lembrava dos antigos e não tão adorados coliseus de Polímia.
— Como sua mente inteligentíssima deve ter percebido, o anfiteatro foi construído e inspirado nos coliseus de anos atrás — Alexandre ignorou o olhar de desgosto da garota, pois sabia que sua leitura de expressões era tão boa quanto a de qualquer pessoa capaz de ler mentes, e continuou com o mesmo sorriso galante no rosto — Mas se você acha que a parte de fora é impressionante, seu coração vai despencar quando ver por dentro! É uma fusão da mais pura arte com a refinação da nobreza para desfrutar o melhor que a dança, o teatro e a música tem a oferecer~
Alexandre era um rapaz certamente tagarela, mas Ryota percebeu como sua voz e postura refletiam perfeitamente sua paixão pela arte. O tom de suas palavras era ainda melodioso e gentil, mas um pouco mais animado; e seus olhos azuis brilharam ainda mais conforme falava, apontando com os dedos enquanto andavam.
Ela não sentiu vontade alguma de interrompê-lo, e apenas o acompanhou mantendo as íris sombrias em qualquer outro lugar que não fosse o rosto dele.
Mas mesmo Ryota, quando adentrou o anfiteatro, sentiu a mudança de atmosfera quando seus passos se tornaram silenciosos e o ar frio, porém estagnado, deslizou para dentro de seus pulmões. O calor sutil das luzes amareladas que escoltaram a dupla pelo corredor, escadaria e então para a porta de entrada foi silente o bastante para a garota acreditar que existiam apenas os dois dentro daquele pequeno mundo.
Assim que Alexandre abriu a porta dupla para ela passar, a deixando andar na frente pela primeira vez, os olhos dela se arregalaram e brilharam por uma fração de segundos quando viram a extensão diante deles.
O anfiteatro estava relativamente escuro, mas as poucas luzes clareavam o bastante para delinear a escadaria que descia uma quantidade incontável de degraus até o palco. Haviam poltronas vermelhas na frente e nas laterais, e também frisas que permitiam uma visão ainda melhor de toda a extensão do palco, que apresentava cortinas longas e igualmente vermelhas como os assentos.
E ali, ela podia ver uma pessoa parada de costas.
Por um instante, a beleza daquele lugar sugou sua alma. Era estonteante, e a altura das escadarias deixou suas pernas bambas o bastante para Ryota precisar se apoiar no corrimão frio. Porém, seus olhos não deixaram de tremer sutilmente enquanto ainda observavam cada um dos cantos daquele lugar, cada detalhe minuciosamente colocado na intenção de ser apreciado e criar o clima mais agradável aos espectadores e seus atores.
— Eita garota, você quase caiu, hein? Se bem que eu tive uma reação bem parecida quando entrei aqui pela primeira vez.
Mesmo Alexandre, que parecia estar constantemente dentro daquele anfiteatro, não conseguia deixar de apreciar o ambiente propício. Então, após inspirar fundo e dar um tapa amigável e rápido nas costas de Ryota, o prodígio colocou um pé no degrau escuro.
— Bora, bora, bora! A aplicadora tá esperando a gente, então acelera essas pernas antes que ela dê um gritão no nosso ouvido.
Sem esperar mais, Alexandre desceu as escadas em um ritmo paciente, porém ligeiramente apressado. Ryota, por outro lado, ainda se sentia um pouco desnorteada — um pouco mais do que o normal, percebeu ela —, e precisou acompanhar o prodígio um pouco devagar, ainda segurando no corrimão frio.
Quanto mais seus pés desciam, mais o ar dentro de seus pulmões era sugado, e mais seus olhos cresciam com os arredores. Era quase como se houvesse uma atração tão grande que ela simplesmente poderia ficar admirando aquele cenário pelo resto da sua vida; em contraste, um pequeno pedaço dela, um desconhecido e sem qualquer lógica, parecia berrar com todas as forças para fugir.
Aquela sensação controversa... Onde foi que a havia sentido antes?
Independentemente da resposta para aquela pergunta, Ryota sacudiu a cabeça para os lados. Recuar não era mais uma opção. Haviam coisas mais importantes do que evitar um conflito ou a grande provação de Sofia, pois ambas eram essenciais para o futuro que e as informações que ansiava.
— Estão atrasadas, minhas crianças... Ah, mas parece que meu tesouro trouxe uma peça interessante de dentro do lixo, não foi?
— A senhora é sempre tão engraçada, dona Kakia! Mas sim, eu achei uma pedrinha preciosa no caminho pra cá, então o que acha de começar a polir esse rostinho bonito pra mim?
— Se seus olhos cheios de ganância reconheceram algo dentro dessa insignificante peça, vou respeitar a sua ousadia, tesouro.
A mulher que conversou com Alexandre, usando um tom melódico semelhante ao dele e trocando sorrisos azedos cheios de uma gentileza duvidosa, segurou o queixo dele antes de deixar o prodígio dar um passos para trás e gesticular para Ryota.
A garota tentou não se incomodar com a forma como se referiram a ela, ao invés disso se concentrando na mulher que trocou olhares com ela com aquelas íris rosadas como seu cabelo.
Um arrepio profundo percorreu as costas de Ryota, e ela sentiu suor molhando suas palmas, nuca e costas quando a aplicadora sorriu para ela. Definitivamente, aquela pessoa era impressionante ao ponto de causar uma primeira impressão assustadora a quem visse. Aquela pequena voz dentro dela dizendo para correr continuou a soar como um alarme, mas os pés dela permaneceram fixos no palco quando a mulher se aproximou com um sorriso largo, cortando o rosto de orelha a orelha.
Kakia, como chamado por Alexandre, era uma mulher com idade na faixa dos trinta anos de idade. Ao contrário da antiga aplicadora, Amane, aquela mulher era certamente... Interessante. Ryota não sabia se mantinha os olhos nas íris cheias de uma cupidez capaz de fazê-la se sentir nua; se era no cabelo rosa comprido e trançado até a cintura; se era no corpo acima do peso com vestimentas nada comuns e que faziam sons de sino ao se moverem; ou se era na forma como ela se aproximou para segurar o queixo de Ryota, forçando-a a encará-la de perto.
Era desconfortável e torturante estar perto daquela mulher. Ainda que sua beleza exuberante ao usar uma peça que mal cobria os seios e uma longa saia que se assemelhava a uma cauda de peixe com acessórios do mais puro ouro adornando sua roupa chamassem a atenção, havia na própria existência dela um peso insuportável.
Olhar para Kakia era sentir a própria alma sendo vasculhada, e o sorriso em seu rosto cheio de cinismo era a representação de alguém que encontrava podridões em sua mente e existência. O medo encarnado da depravação e a inimiga da timidez em todos os mais possíveis sentidos.
Um pensamento frio e que congelou sua espinha cruzou a mente dela, mas Ryota não foi capaz de externá-lo quando Kakia voltou a falar.
— Tudo o que vejo aqui é uma carcaça que ainda anda, simplesmente uma pobre coitada pisoteada sem dó pelo mundo igual uma formiguinha.
— ... Isso não é muito educado da sua parte.
— E quem disse que eu queria ser educada, criança pobre e mal feita? Vê se aprende o seu lugar e cala essa boca quando eu tô falando.
Se Ryota estava incomodada antes, agora aquilo ultrapassou qualquer limite pré-estabelecido ao ponto de deixar a garota completamente em choque. Kakia retrucou com uma acidez tão grande que poderia ter derretido seus arredores em um piscar de olhos, e certamente uma azia grotesca espreitou o estômago dela enquanto ainda era forçada a encarar a aplicadora.
— Você é só uma coitadinha que não tem nem onde cair, criança. Então vê se abre um sorriso e tenta se encaixar em algum lugar antes que eu mesma chute a sua bunda pra aprender a viver.
Depois de disparar aquelas frases cruéis e certamente nem um pouco elegantes, Kakia soltou bruscamente o queixo de Ryota e caminhou para o centro do palco. A garota tocou a própria mandíbula, ainda sentindo os resquícios das unhas da mulher quase perfurando sua pele, enquanto Alex se aproximava discretamente dela.
Os dois ficaram parados lado a lado perto das cortinas quando a aplicadora se posicionou no centro das atenções de todos os estudantes, parecendo prestes a falar.
— Tenta não levar tudo o que ela fala pro coração, viu? A senhora Kakia é um pouco língua solta, mas você vai se acostumar e até gostar do jeitinho dela com o tempo. E vai ser bom pro seu coraçãozinho ouvir umas verdades da vida de quem é mais experiente, também.
— ... Certo.
Ryota não queria mencionar em voz alta, mas Alexandre e Kakia eram um pouco parecidos naquele quesito — não que o rapaz parecesse perceber.
— Vamos, vamos, pessoal! Parem de papo furado porque estamos pra começar o segundo teste de vocês do percurso regular.
A aplicadora de cabelos rosa bateu palmas alto o bastante para o som ecoar por toda a extensão do palco, e assim os estudantes distraídos viraram seus rostos na direção dela. Kakia não precisava de muito esforço para causar uma primeira impressão forte, seja boa ou má, e pareceu para Ryota que ela não foi a única a sentir isso.
— Como vocês devem ter percebido porque não são burros nem nada, o teste será de Artes Cênicas, especificamente na área de dança. E se vocês são minimamente bem informados sobre o que acontece ao redor do campus, saberão que a pessoa que me auxiliará no decorrer deste teste será o nosso maior prodígio de Gnosis, Alex.
Quando seu nome foi entoado pela aplicadora, Alexandre saiu do lado de Ryota e caminhou quase saltitando para o lado de Kakia, ambos sorrindo um para o outro com aquele ar esquisito. Porém, ao contrário da forma como os estudantes olhavam para a aplicadora que usava uma maquiagem pesada, o brilho de admiração e as palmas que soaram ao ver Alex indicavam o quanto ele era conhecido e respeitado no instituto.
Talvez Ryota realmente devesse prestar um pouco mais de atenção no que acontecia dentro do Instituto Gnosis, ou passaria constrangimentos semelhantes àquele futuramente.
— Enfim, como devem se lembrar, o primeiro teste foi de escultura e vocês trabalharam em grupos. Porém, dessa vez, cada um de vocês ensaiará e apresentará individualmente uma pequena peça. É óbvio que eu não espero que nenhum de vocês dance como profissional, mas a tarefa deste teste prático será analisar a capacidade de aprendizado corporal, a habilidade com ritmo e a expressão emocional através da dança e envolvimento com o público.
Os estudantes trocaram olhares nervosos mesmo depois de ouvirem Kakia discursar, então ela soltou um suspiro pesado e bateu algumas palmas para chamar atenção deles, com aquele jeito orgulhoso e autoritário:
— Parem de se acovardar e vamos logo com isso porque eu não tenho o dia todo pra perder com vocês. Separem-se pelo palco para começarmos os alongamentos, porque eu sei que vocês todos devem estar só o pó de tanto ficarem sentados com as bundas quadradas na cadeira!
Finalmente, após o último empurrão verbal, todos os estudantes se espalharam pelo espaço. Felizmente, a quantidade de pessoas era suficiente para se moverem sem grandes problemas durante a série de aquecimentos passados pela aplicadora, que exemplificava cada um dos movimentos e fazia a contagem de um a dez antes de mudarem o membro do corpo a ser alongado.
Ryota começou a seguir as instruções, seu corpo acostumado com com treinamentos mais pesados não sentindo nem um pouco de desconforto ao longo dos minutos que se passaram. Entretanto, algo dentro dela se remexia em incômodo e estranheza.
Afinal, quanto mais tempo passava, mais aquela única e simples pergunta continuava a retumbar dentro de sua mente, ainda que sua face expressasse a mais pura neutralidade.
Quando começará a provação de Sofia?
Era uma dúvida natural, pois em nenhum momento houve qualquer sinal de uma palavra escrita com a intenção de encaminhá-la ao suposto mundo em que sempre ocorriam as provações. Ryota havia acreditado, desde que as duas primeiras vezes foram assim, que todos os demais testes seriam iniciados logo que aquela palavra estranha fosse lida, e o espaço ao seu redor fosse remoldado.
Mas desde que chegara ao anfiteatro, nada de incomum havia acontecido, e isso a preocupava.
Será que eu perdi de vista a palavra? Talvez esteja escondida em algum lugar do anfiteatro?
Era uma possibilidade, mas Ryota tinha suas dúvidas se Sofia realmente esconderia a palavra que a levaria para a provação daquele jeito tão estranho. Se comparada com as vezes anteriores, mesmo durante o teste das esculturas, a escrita apareceu em um local completamente aleatório — ou muito específico. Então, mesmo que outras pessoas ali pudessem ler, ela deveria ser a primeira e única a ser capaz de entrar na provação... Certo?
Mas e se outra pessoa leu antes e entrou na provação ao invés de mim? Isso sequer é possível?
Haviam tantos detalhes e possibilidades em sua mente que Ryota se pegou completamente distraída de novo, o que a tornou incapaz de assimilar a dor que atravessou sua perna como um raio, fazendo-a engolir saliva na tentativa de suprimir um grito.
— Acorda pra vida, criança!
Quem havia erguido a voz era Kakia, que a olhava de cima enquanto todos os estudantes esticavam uma das pernas no chão. Por alguma razão, a aplicadora pisou em seu joelho para fazê-lo chegar ao chão com tanta força que um estalo foi ouvido, mas Ryota sabia que nenhum osso foi quebrado. Entretanto, a dor e a surpresa ficaram estampadas no rosto da garota, que mordeu os lábios para conter a própria voz.
— E você também, seu pobre coitado! Tá com dó das suas costas, por acaso? Se inclina direito ou eu vou chutar a sua bunda desse palco!
Depois de ameaçá-la, Kakia marchou até outro estudante que não conseguia alcançar os dedos do pé esticando os braços, então empurrou cruelmente devagar a coluna do rapaz para frente até conseguir. Era um método certamente cruel de fazer as coisas, e com certeza nem um pouco saudável para o corpo, mas de uma forma ou de outra aquilo fez os estudantes se esforçarem mais do que o normal em uma tarefa tão simples quanto o alongamento do corpo.
Ryota desviou o olhar dos outros alunos para Alexandre, que estava ao seu lado, coordenando e fazendo os alongamentos com eles. Para a zero surpresa dela, o rapaz era simplesmente a pessoa mais flexível do universo, se é que isso era possível. Ela sabia que Fuyuki era uma mulher com uma capacidade quase anormal de dobrar o torso ou as pernas, mas a forma como Alex brincava de se esticar era assustadora.
Ele guiava os membros do corpo como se fosse feito de borracha, e Ryota se perguntou se o prodígio era capaz de virar um verdadeiro contorcionista com tamanha habilidade corporal.
— Muito bem, tesouro.
Kakia elogiou com um sorriso desagradavelmente satisfeito, porém orgulhoso, ao ver a competência do melhor aluno de Gnosis. Mas não importava como e quando, sempre que Ryota via os dois interagindo, mesmo que fosse apenas uma troca de olhares ou um sorriso largo cheio de uma malícia descabida, um calafrio percorria sua espinha.
Quando todos terminaram a primeira tarefa, e os rostos de alguns estudantes mostravam-se visivelmente cansados e preocupados com o ritmo daquele teste, Kakia voltou a chamar a atenção de todos, batendo palmas com um escândalo tão grande que Ryota quase sentiu ainda mais raiva daquela mulher.
— Ótimos, meus pobres companheiros de dança. Agora se espalhem pelo palco e pelo anfiteatro para que possamos começar as práticas. Cada um de vocês receberá uma categoria de dança diferente, escolhida aleatoriamente por mim. E assim, vocês terão uma hora para praticar alguns passos e apresentarem a mim no palco... Por que estão me olhando assim? Parem de preguiça e vamos logo com isso, ou o tempo vai acabar e eu vou reprovar cada um de vocês a dedo!
Não demorou muito para que os estudantes se organizassem como exigido, e assim Ryota acabou parando perto da cortina do palco para ensaiar qualquer que fosse a dança escolhida pela aplicadora.
Mas nada daquilo era importante.
E a provação?!
A essa altura, ela estava ficando visivelmente nervosa. Seus olhos vasculharam pelas paredes e pelo tecido vermelho da extensa cortina, até mesmo pelo chão impecável ou para o cenário atrás do palco, mas nada lhe chamava a atenção. Não havia palavra ou qualquer indicação daquilo que precisava fazer a seguir.
E se Sofia não tivesse preparado nada para ela? Será que algo assim teria acontecido apenas por que se recusou a receber o primeiro prêmio? Será que ela seria assim tão parcial em relação às decisões de Ryota, recusando-se a lhe prestigiar outra vez até que decidisse receber a ajuda da curandeira Veridian?
— Minha querida, não enruga a testa desse jeito ou vai ficar velha bem cedo, viu? Se bem que você já começou a entrar nessa fase bem cedo, pelo visto...
Alex a provocou com um sorriso brincalhão e cutucou a raiz do cabelo dela, apontando para os fios brancos aos quais ela nunca mais olhou desde que saiu de Thaleia. Sinceramente, haviam coisas mais importantes a se preocupar do que sua aparência, e não era como se as suas roupas fossem ajuda-la a chegar em seu objetivo mais cedo. Na verdade, a ideia de olhar-se no espelho todos os dias era exaustiva por si só, então Ryota nunca mais encontrou-se com o próprio reflexo.
— O que foi, gracinha? Se tem alguma preocupação aflingindo seu coraçãozinho de ouro, é só me dizer! Ou por acaso tá se sentindo sozinha de novo e quer segurar a minha mão?
— ... Não é isso.
— Não? Então, o que é?
Alex estendeu a mão como se esperasse que Ryota a segurasse, mas ela obviamente recuou e desviou o olhar do rosto dele. O brilho naqueles olhos era cegante ao ponto de sequer poder encará-los por mais que alguns segundos.
— Se sua preocupação é com o teste, se preocupa não que eu vou te ajudar, tá bom? Euzinho aqui me prontifiquei a te ajudar nos ensaios do seu tema, e tô curioso pra ver como você vai se sair~
— ... Qual é o tema?
— Balé!
Ryota quase cuspiu no chão.
Ela certamente esperava qualquer tipo de dança, menos algo tão delicado e entediante quanto balé.
— Ué? Por que você não ficou feliz e deu pulinhos de alegria igual eu?
— Não posso optar por outra categoria de dança?
— Claro que não! Tá achando que isso aqui é festa, minha filha? Se a senhora Kakia mandou, a gente abaixa a cabeça e faz. Ah, só não abaixa demais a cabeça senão sua coroa de princesa cai, viu?
Ryota tentou não estremecer com o contato físico de novo quando Alex ergueu gentilmente o queixo dela, como se quisesse que ela olhasse para frente, e não para os próprios pés.
O tom alegre dele deveria ser contagiante, mas para uma mente tão cheia de preocupações como a dela, era tão irritante quanto Bellatrix oferecendo abraços e apelidos estúpidos.
Era assim tão difícil entenderem que queria ficar sozinha? Ou será que mesmo agora Ryota estava apenas acreditando estar afastando as pessoas, quando seu comportamento demonstrava o oposto?
— Bora lá minha filha que a gente vai ensaiar antes que nosso tempo acabe. Senta aí que vou colocar as sapatilhas de balé!
Com um empurrão suave, a garota sentou-se em um banco atrás das cortinas e deixou que Alex, com sua alegria e brilho intermináveis, retirasse os sapatos dela e colocasse as sapatilhas. Ryota tentou não pensar muito em como aquilo era um comportamento íntimo demais para duas pessoas que se conheceram há literalmente pouco mais de trinta minutos, mas não parecia que o rapaz se incomodava com aquilo.
Era certamente o mesmo tipo de personalidade de Bellatrix, alguém que fingia intimidade com desconhecidos para se aproximar.
Com qual intenção, afinal? O que ganhariam sendo tão gentis e legais com ela, mesmo que deixasse claro que não queria companhia ou ajuda?
As palmas de Kakia chamaram sua atenção outra vez, e Ryota viu como a aplicadora erguia a voz contra uma dupla de estudantes que ensaiavam sapateado desastradamente sob os gritos daquela mulher escandalosa e desagradável.
Quando a aplicadora se virou na direção dela, quase como se pudesse sentir os olhos de Ryota, a garota apenas disfarçou e fingiu que estava observando o outro lado do palco, nas sombras da cortina onde mais estudantes ensaiavam.
Foi então que ela viu.
Talvez estivesse tão presa nos próprios pensamentos que demorou para processar aquilo que a fazia sentir tantos arrepios desde que chegara ao anfiteatro, ou fosse apenas uma forma de lembrá-la da razão de estar ali naquele instante. Era algo com o que deveria ter se acostumado ao longo dos meses, pois as vozes e olhos invisíveis que a seguiam eram como uma constante sensação de desagrado ao ponto de querer coçar a própria pele e se contorcer.
Por que não percebeu antes?
Como foi tão tola?
E qual deveria ser sua reação quando seus olhos azuis se arregalaram ao ver os dourados com pupilas de estrela do outro lado do palco, meramente mais do que uma silhueta sombria escondida atrás das cortinas vermelhas como sangue?
Ryota perdeu o fôlego e quase engasgou com o próprio ar dos pulmões quando a ilusão de Mania abriu um sorriso largo e cheio de uma nostalgia fria para ela.