Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 24: Paranoia

Desde que se lembrava, Ryota sabia que haviam alguns costumes que precisava corrigir em si mesma. Eram falhas e erros comuns em todos os seres humanos, mas que com o tempo e esforço seria possível moldar se moldar para, um dia, atingir o ideal de si mesma que tanto idealizou.

Em determinado momento, ao qual ela realmente não sabia dizer quando ou como, esse esforço se tornou uma força cada vez mais e mais vazia quando parava para refletir na razão de desejar tamanha mudança.

Por que ela precisava mudar pelos outros? Por que esse esforço de tantos anos, que apenas vinham ferindo-a, teria algum valor? Será que alguém sequer se importaria com essas mudanças? Será que alguém repararia?

Quando a determinação de se tornar uma pessoa melhor recebeu pensamentos com questionamentos com respostas às quais jamais teria coragem ou capacidade de encontrar, aquela força começou a enfraquecer ao ponto de simplesmente inexistir.

Pensar era difícil. Refletir era doloroso.

E perceber que nada daquilo valia a pena era ainda pior.

Ryota entendeu, após um longo percurso de esforços sem razão ou propósito, que ela não era especial. E que nada, ou ninguém, poderia ou deveria reconhecê-la — porque a mera tentativa exigiria uma quantidade tão grande de esforço e motivação que qualquer um desistiria no processo.

E ela não desejava que ninguém lhe estendesse a mão. Nesse momento, não havia ninguém naquele mundo capaz de fazer este papel por ela, de pensar em seu lugar e decidir aquilo que era certo. Não havia alguém com tamanho tempo livre, e jamais haveria.

Era estúpido apenas considerar algo assim.

As razões e ela mesma não valiam a pena.

Mas apesar disso, ainda haviam pessoas que a usariam por seus próprios benefícios, disfarçando suas bondades e mãos estendidas para que ela não pudesse enxergar a verdade por trás. E talvez, mesmo agora, depois de tudo o que passou naquele ano desde que saiu de sua vila natal, um pedaço dela ainda quisesse acreditar que haveria alguém naquele mundo capaz de receber sua confiança outra vez.

E valor haveria sua confiança, quando ela era pisoteada logo quando virava as costas?

E que propósito havia em entregar seu coração a uma pessoa quando o mundo insistia em tomar este pilar de conforto vez após vez apenas para despedaçar ainda mais seu coração rachado e colado diversas vezes?

Não haviam palavras o suficiente para descrever os sentimentos em que seu corpo foi mergulhado, ou as sensações mais profundas prescritas em seu âmago. O poço de hipocrisia, dor e solidão a engoliam como uma sombra, fazendo desaparecer aquilo que sobrou e destruindo tudo aquilo que um dia fora seu, e, finalmente, a tomando por completo até finalmente desaparecer.

Ela se perguntava quanto mais tempo suportaria sobreviver assim; mas era trabalhoso demais pensar, então apenas colocou de lado a razão e decidiu fazer aquilo que sempre foi boa, omitindo e mentindo para o mundo e para si mesma. Escondeu tudo o que não desejava ver ou ouvir com um cobertor de sentimentos para motivá-la a levantar da cama todos os dias e sair mundo afora.

Não importava qual fosse a emoção que aflorasse em sua pele em forma de palavras ou expressões — se era o bastante para fazê-la se erguer, estava tudo bem.

Naqueles dias, em especial, o sentimento que amargava sua garganta, fervia em seu sangue e desmanchava seu rosto em uma expressão de constante desgosto era a raiva. Uma fúria suprida, originada de algum lugar muito distante, acumulada como uma bola de neve de emoções, queimava agora em seu estômago como uma chama.

Sabia que a observavam. Quando entrava na sala de aula, sentando-se ao fundo em seu lugar, pegando os materiais e colocando toda a concentração possível nos estudos, ainda percebia a atenção dos demais.

Eram idiotas com tempo livre. Preocupando-se com os outros ao invés de cuidarem das próprias vidas. Seus olhos curiosos atentando-se aos seus mínimos movimentos, a qualquer oportunidade de se aproveitarem da sua fraqueza oculta por baixo daquela raiva.

Não permitiria que fizessem isso outra vez. Nunca mais deixaria que se aproximassem como se a conhecessem, como se soubessem de algo sobre ela ou sobre o valor que supostamente teria.

Apenas a sensação dos olhares, a mera distração de Ryota com o mundo externo que não fosse relacionado ao seu objetivo ou aos estudos, a fazia se irritar. Seu pé batia incontrolavelmente no chão, fazendo um barulho frenético de nervosismo; seus olhos azuis escuros evitavam contato visual, mas quando o faziam, as pupilas se estreitavam como se vissem algo detestado e imediatamente afastavam qualquer um; batucava os dedos na mesa sem perceber, em gestos repetidos e visivelmente irritados.

— ... Que droga.

Murmurava para si mesma com a voz rouca e frustrada, olhando para pequenas desavenças do dia-a-dia. Naquele segundo, forçou demais o lápis fazendo a ponta rachar e quebrar.

O som do apontador era como arranhar o quadro com as próprias unhas, cada mero estalo em seus ouvidos causando arrepios de profundo incômodo. Sua respiração acelerava com facilidade, ficando pesada com as emoções à flor da pele.

Mas não eram apenas ações como aquela que geravam reações nervosas em seu corpo. Os sons de conversas paralelas, ainda que baixas, atiçavam seus ouvidos que se tornaram estranhamente sensíveis ao ambiente.

Ela sentia que a observavam. Sentia que espiavam durante as aulas, murmurando entre si sobre suas alterações. Ouvia risadas baixas, olhares de curiosidade e interesse que faziam sua espinha receber calafrios. Tamanho era o desconforto que, por vezes, durante os intervalos das aulas, Ryota saia a passos pesados e rápidos da sala de aula, caminhando sem rumo pelos corredores ou para fora do prédio.

Não erguia o olhar para ninguém, pois sabiam que estavam observando. Sabia que a estavam vendo. Como não poderiam? Por bem ou por mal, ela chamava a atenção, portanto era natural que mantivessem seus olhos sob seu corpo.

Mantinha a distância física, recusando contato a qualquer custo. Movia-se com uma velocidade e brutalidade impressionantes, o que certamente deveria fazer qualquer um com um pouco de inteligência entender que não desejava companhia. Mas ainda podia sentir a atenção nela, as palavras sussurrando nos seus arredores como uma maldição escorrendo para dentro de seus ouvidos e impregnando em sua mente.

Mesmo do lado de fora do prédio, parada com a maior distância possível de qualquer pessoa, voz ou olhares, ela ainda conseguia senti-los. Se tornou fácil detectar como um instinto, mesmo que seus sentidos realmente não pudessem acompanhar.

Ainda que seus olhos vissem os rostos borrados como vidro, ainda que seus ouvidos meramente entendessem palavras, ainda que seu corpo mal distinguisse sabores ou temperatura, ainda que mal controlasse a própria respiração e as batidas frequentemente disparadas do próprio coração; Ryota sabia que a acompanhavam.

  1. Tempo. Todo.

Aquela agonia gerada pelo instinto paranoico era como estar ensandecida pela própria realidade. Não acreditar nas pessoas foi algo que aprendeu com o tempo, mas não confiar nos próprios sentidos era infinitamente mais assustador.

Os lábios ressecavam e a garganta se trancava, azeda. A mente criava mil e um pensamentos diferentes, criando perguntas sem resposta e desestabilizando qualquer reação externa que devesse ter.

Havia uma profunda exaustão dentro dela, muito mais psicológica do que física. Sabia que as horas de sono, diminuídas de seis para três, certamente colaboraram para isso. Mas não havia tempo para descansar quando os testes e provas estavam a caminho. Ainda haveriam alguns dias, mas Ryota precisava estar preparada. Qualquer erro não poderia ser tolerado, ou perderia a oportunidade de conversar com Sofia outra vez.

Além disso, eram durante as noites que seus pensamentos e memórias mais terríveis insistiam em perturbá-la durante os sonhos, então qualquer oportunidade de descanso era como um convite para o inferno de sua própria mente.

Ryota se recusava a ficar ainda mais perdida do que já estava, então passou algumas noites em claro temendo a si mesma.

Mas, ainda que tentasse, a irritabilidade e ansiedade de seu corpo eram sensíveis ao ponto de se incomodar com o toque do travesseiro em sua pele. Sentia coceiras com o cobertor. As próprias roupas pinicavam, incomodando sua pele como se houvessem insetos correndo por dentro delas.

Às vezes, se pegava inconscientemente se coçando com tanta força que chegava a sangrar. E nesses momentos, quando percebia que a dor ou a ardência dos ferimentos sequer eram sentidos devido o tamanho de seu nervosismo, era que ficava cada vez mais perturbada com a sensação de desligar a mente.

Talvez fosse comum que os seres humanos se esquecessem de que literalmente estão vivendo, e passassem seus dias, horas, minutos e segundos agindo quase que por instinto e com reações costumeiras do dia-a-dia, sem sequer prestar atenção em seus movimentos ou arredores. E, de repente, quando finalmente despertasse e percebesse que sua mente havia desligado para o modo automático por tanto tempo, talvez surpresa fosse o sentimento comum a se ter.

Aquele era um caso semelhante, porém definitivamente mais aterrorizante quando as ações do corpo não eram tomar café da manhã no modo automático, mas sim começar a rasgar a própria pele com as unhas durante alguns minutos antes de perceber as linhas vermelhas de sangue que escorriam por seu pulso e cotovelo, pingando no chão.

Não havia dor, mas o incômodo era percebido quando a mente religava do automático, ou da sua constante paranoia, e Ryota finalmente se permitia tentar compreender as coisas que vinha fazendo consigo mesma.

Tanto faz.

Mas pensar e entender era trabalhoso demais, então ela ignorava e apenas fechava os ferimentos como se nada tivesse acontecido, concentrando-se naquilo que precisava fazer.

Reações externas às suas estranhas atitudes eram recorrentes, mas ela passou a ignorá-las completamente. Ainda que incomodassem os olhares, as conversas, o sentimento de estar sendo perseguida, não ousou encarar de volta para descobrir se o instinto era real.

Mesmo quando passou a passos pesados e os olhos que não mais focavam completamente nas pessoas, encarando qualquer ponto na parede ou no chão que a impedisse de olhar nos olhos de alguém, e ouviu uma voz familiar de uma garota jovem e duas outras desconhecidas rindo desta primeira enquanto derrubavam seus livros, não parou ou hesitou em continuar seu caminho, sequer desviando o olhar ou qualquer atenção naquela direção.

Não era importante. Nada além dela era importante agora. Ou melhor, nada além de seu objetivo deveria receber a atenção de sua mente, ou mais e mais pensamentos incômodos a impediriam de seguir em frente.

Desde que fosse capaz de chegar ao fim do mês... Desde que fosse capaz de encontrar Sofia e tomar as respostas que precisava...

— Eita, garota. Parece que não anda prestando atenção por onde anda.

Outra voz familiar, dessa vez masculina, chegou aos seus ouvidos quando saiu do prédio. Mas não foi capaz de ignorá-la completamente mesmo enquanto andava, pois a pessoa parou diante dela e impediu sua passagem.

Ryota franziu a testa e finalmente ergueu o olhar, imediatamente desviando o foco do rosto do homem de cabelos negros encaracolados que há algum tempo não via.

— Não vai olhar pra mim? Tô me sentindo excluído agora...

Como de costume, Sasaki soltou uma risada descontraída, mas então seu sorriso agradável diminuiu um pouco e se tornou ligeiramente mais sério enquanto observava a garota apertar os livros com força contra o peito e virar a cabeça para o lado, se recusando a olhar para ele.

— Precisamos conversar um pouco.

Apesar dessa atitude unilateralmente grosseira, Sasaki não hesitou em começar o segundo diálogo sério com Ryota desde que ela chegou ao Instituto Gnosis.



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