Volume 10 – Arco 4
Capítulo 23: Isolamento
O som de passos apressados no corredor e a porta se abrindo e fechando com um estalo foram as primeiras coisas que os ouvidos infantis detectaram. O garoto de cabelos e olhos áureos estava sentado no chão com as costas contra o sofá abraçando o filhote de cachorro com uma expressão pensativa quando ouviu aqueles sons, imediatamente então erguendo o olhar para a pessoa que adentrou o cômodo do hotel.
Estava prestes a se levantar e dizer alguma coisa, mas parou logo quando sentiu que algo estava errado. Então, voltou a se encolher no lugar e permaneceu em silêncio quando a garota de cabelos negros seguiu a passos pesados em direção ao próprio quarto e se trancou. Seus olhos não estavam visíveis e talvez ela sequer tivesse reparado na presença do garoto, mas Dio havia percebido pelo arrepio que percorreu sua espinha que o humor de Ryota não era realmente um dos melhores.
Não havia como descrever o sentimento frio e assustador que sua presença causou, como se pudesse espantar a presença de qualquer um sem sequer olhar para alguém. Era diferente de afastar pessoas porque não havia interesse em dialogar ou porque desejava estar sozinho — assemelhava-se muito mais a uma aura de fúria tão grande que ninguém ousaria se aproximar para elevar ainda mais aquela sensação de perigo.
Foi por isso que hesitou em se levantar e conversar adequadamente. Talvez não fosse a hora certa, pensou ele. Mas, ao mesmo tempo, Dio se perguntou se realmente haveria de chegar o momento para que ambos pudessem se entender — e dentro dele, a resposta que não queria já existia há muito tempo, mas ele não queria aceitar.
Em paralelo à essa esperança unilateral de fazerem as pazes, havia o ferimento em seu coração causado pela última interação dos dois. Ainda doía, ele não poderia negar. Mas Dio não era o tipo de pessoa que se permitia abalar apenas por um desentendimento ou mal-entendido de uma ou ambas as partes.
Então, em respeito aos desejos dela, o garoto continuou sentado contra o sofá abraçando o filhote de cachorro em seus braços que tentava consolá-lo, e esperou.
***
Eu sabia que não podia confiar em ninguém.
Os pensamentos que continuavam a ferver dentro de sua cabeça não paravam de exercitar suas expressões de puro ressentimento e desconfiança no rosto e olhos azul como o oceano.
Deveria ser óbvio.
Os dias e as aulas passavam em um piscar de olhos. A rotina de estudos continuou como se nada tivesse acontecido, e Ryota continuou indo para o Instituto Gnosis passar seus dias cumprindo com as cargas horárias exigidas com um foco impressionante.
Estão todos querendo me usar. De novo.
Ela sentava no fundo da sala com o olhar completamente distraído, mesmo que suas mãos trabalhassem perfeitamente na escrita e seus ouvidos captassem as explicações dadas pelos professores. Ainda haviam alunos que a observavam, mas agora era mais com curiosidade do que interesse próprio.
Afinal, o sentimento de “fiquem longe” era claro como a luz do dia apenas de olhar para ela.
Todos vocês. Cada um de vocês.
Havia preocupação e certo receio em se aproximar agora. Antes, Ryota apenas permanecia isolada por necessidade em se focar nos estudos, mas agora a razão era completamente diferente.
A paranoia em seu olhar era perceptível.
Eu fui estúpida. Deixei que se aproximassem e me fizessem de idiota outra vez. Mesmo isso tendo acontecido desde o começo… Desde que saí de Aurora, todos que cruzaram meu caminho tentaram me usar e derrubar…
Quando terminava suas anotações e tarefas, a garota apoiava o cotovelo na mesa e roía as unhas até a carne. Dificilmente trocava olhares com outras pessoas, mas quando acontecia, o desprezo era visível o bastante para fazer qualquer um hesitar em sequer falar perto dela.
Todos vocês… Cada um de vocês… São todos iguais. Não importa o país, não importa a classe, não importa a idade ou o sexo… Vocês sempre tentam se aproveitar de mim. Se acham mais inteligentes, mais importantes, mais fortes… Imperdoável.
Para evitar ser acompanhada durante a ida e o retorno das aulas, Ryota entrava e saía mais cedo do instituto. Ignorava os chamados de Bellatrix quando se encontravam nos corredores e evitava Dio a todo custo como se fossem pragas contagiosas.
Era uma atitude visivelmente cruel, mas que ela não se importava nem um pouco.
Parem de sorrir pra mim como se vocês se importassem. Parem de mentir. Vocês estão apenas querendo se apoiar em mim e me usar de novo, não é? Se fingindo de coitados e que querem a minha presença quando na verdade estão pensando em mil formas de me colocarem dentro de seus próprios planos e desejos… Não vou mais cair nisso.
Para seu alívio, mesmo que Bellatrix desejasse se aproximar para tentar entender o que havia de errado, Dio foi capaz de intervir e impedir.
— … Ela precisa de um tempo.
— Mas o que aconteceu, assim tão de repente? Vocês dois eram tão próximos, e do nada…
— Não se preocupe. A Ryota só tá um pouco estressada por causa de uns problemas pessoais dela, mas vai ficar tudo bem.
Ainda que a ruiva fizesse uma expressão de preocupação e insistisse, o garoto continuou a sorrir com um rosto gentil para ela.
Após alguns segundos de silêncio olhando para Ryota se distanciando, Bellatrix baixou seu olhar para Dio e falou com a voz baixa:
— Será que a culpa é minha?
— O quê?
— Quero dizer, eu me empolguei um pouco com a nossa amizade e talvez eu tenha tentado forçar alguma intimidade entre nós… Será que ela se irritou por isso? Eu…
Dio apenas soltou um murmúrio de incompreensão ao ouvir as perguntas da outra garota, percebendo que ela estava mais divagando consigo mesma do que realmente esperando por uma resposta.
Bellatrix fez uma expressão de quem sentia culpa e franziu a testa com uma tristeza incompreensível no olhar. Para Dio, que a conhecia apenas um pouco mesmo que ambos interagissem há algum tempo, parecia que aquele sentimento dentro dela era muito maior e profundo do que aparentava apenas pelas circunstâncias atuais entre eles três.
Portanto, ao invés de tentar consolar a respeito de algo que sequer sabia com exatidão a origem, o garoto apenas alargou um pouco mais o seu sorriso cheio de honestidade e afeição enquanto segurava a mão dela.
— Está tudo bem. Se esse foi o caso, tenho certeza que nós vamos conseguir sentar e conversar um dia sobre isso… Em algum momento, com certeza. Por isso, não precisa remoer tanto isso quando ainda não sabemos o verdadeiro problema.
— … Mas…
— Vamos esperar pela Ryota. Eu tenho certeza que um dia ela vai falar com a gente de novo, certo?
Era difícil ignorar as tentativas quase adoráveis de Dio animar Bellatrix enquanto apertava sua mão, e nem mesmo ela foi capaz de ignorar o garoto por tanto tempo antes de abrir um sorriso suave para ele e acenar em concordância com a cabeça.
— … Certo.
Com esse pequeno instante agradável entre a dupla insegura, os dias recheados de preocupação e incômodo ainda continuariam a acontecer — e, eventualmente, atingiriam seu verdadeiro ápice.
***
Por que Gê não me matou também?
Aquela era uma pergunta que algumas vezes havia passado por sua cabeça, mas até então Ryota não havia parado para refletir sobre até o seu reencontro com a curandeira. E que, para a sua surpresa, ao invés de demonstrar rancor contra a pessoa que quase a matou há quase um ano, a mulher agiu com maturidade e serenidade.
Em que ela estava pensando quando decidiu que parar apenas para ambas conversarem seria uma boa ideia? Ryota caiu na armadilha de ficar presa à mercê das sombras de Kuro outra vez e precisou ficar cara a cara com aquela que mais odiava sem sequer ser capaz de encostar um dedo nela.
Apesar desse arrependimento, internamente, as indagações sobre as razões da Maga Veridian agir daquela forma continuavam a se acumular. Por que ela olhou para Ryota com empatia? Por que tentou consolá-la? Ou melhor, por que tentou aconselhá-la depois de tudo aquilo?
Por que Gê, mesmo sendo uma curandeira tão habilidosa quanto Eliza, não restaurou o próprio braço?
E por qual razão Ryota hesitou tanto quando a encontrou? Se realmente a odiasse ao ponto de querer matá-la, a primeira coisa que deveria ter feito quando a viu era cumprir com seu objetivo de vingança desde o começo, certo?
Mas por que dessa vez, ao contrário de quando matou Mania, ela não conseguiu nem dar um passo firme adiante? O que a havia impedido de fazer algo tão simples?
Por que seus sentimentos ficaram uma verdadeira bagunça quando ouviu as palavras de Gê e viu aquelas inocentes crianças ao seu redor?
Não importa. Ela matou o vovô. Isso é tudo o que eu preciso saber.
Os sentimentos de fúria que queimavam dentro de seu âmago apenas ficavam mais fortes a cada dia — como um amargor, uma azia profunda que destrinchava de dentro para fora.
Eu deveria tê-la matado sem hesitar. Mesmo que isso custasse os meus dois braços caso Kuro ainda tentasse me segurar. Mesmo que isso custasse a minha vida, eu deveria…
Ela deveria?
A mente não era capaz de conciliar os pensamentos com os sentimentos, então Ryota apenas colocou um de lado e focou-se naquilo que precisava fazer agora — reencontrar Sofia. E para isso, mais um teste haveria de ser passado.
E muito, muito em breve, Ryota poderia arrancar as respostas que queria de uma única vez.