Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 9: Negociações

A caneta deslizava com facilidade pela folha pálida pouco iluminada. A escrita se desenrolava lentamente, às vezes acelerando conforme ele tinha facilidade em colocar as palavras no papel. O bloco, visto daquele ângulo, já tinha pelo menos metade das folhas preenchidas. Certamente houve bastante dedicação em cada coisa escrita ali. Mesmo alguém que apenas via de relance o que o rapaz fazia, agora com certa frequência, reparava na expressão suave de seu rosto.

Seus olhos, embora concentrados no papel, às vezes ganhavam um tom diferente. Se estreitavam, pensativos, como se recordassem algo, então voltavam a se abrir de novo, focados em colocar tudo em palavras. Às vezes, ele ria com o nariz. Outras, suspirava pesadamente. Mas, no fim, não importava quantas vezes ele mudasse, ou quantos grunhidos diferentes escapassem inconscientemente de sua garganta, Zero sempre fechava o bloquinho com um sorriso casual no rosto.

Daquela vez, no entanto, ele foi interrompido num susto antes mesmo de ser capaz de preencher a folha com sua letra inconstante, quase deixando cair tudo o que segurava. Ele fechou rapidamente o caderno ao ver quem estava ali, claramente envergonhado e preocupado que o outro tivesse lido qualquer coisa.

— O-O que você quer? Estou ocupado — Zero resmungou, ignorando ao máximo o calor nas bochechas e o coração disparado. 

— Nada que venha de você — Sora respondeu rapidamente e na mesma medida, se recostando na parede com os braços cruzados. A luz da janela na qual o garoto de cabelos violeta estava sentado alcançou seu corpo. — Apenas vim lembrá-lo de estar pronto para partirmos em breve. A mestre não tolerará atrasos.

— Eu sei disso.

Zero engoliu em seco, desconfortável, enquanto prendia a caneta de quatro cores no aro do bloquinho.

— É bom que saiba, mesmo — sussurrou o assassino — Espero que não ter que lidar com qualquer contratempo antes do Debute.

O jovem se colocou de pé, ignorando as palavras disparadas. Mal tinha se colocado a andar, visando o próprio quarto, quando Sora piscou e virou o rosto.

— Então evite quaisquer estresses desnecessários.

— Qual é a sua?

Voltando-se para o colega — o máximo que Zero poderia dizer que eram, uma vez que a relação entre eles, quando sozinhos, era bastante fria e quase hostil —, assim rebatendo com irritação transbordando na voz, seus olhos prateados se afiaram para o outro.

Sora inclinou um pouco o queixo, insinuando que continuasse, como se não tivesse entendido o intuito da pergunta.

— Você fica o tempo todo me observando, fazendo comentários que parecem ser vagos, mas sei bem qual é sua intenção.

— Sabe mesmo, estúpido?

Eles trocaram olhares por um longo momento, ambos claramente incomodados. Como Zero não respondeu, Sora deu de ombros com desdém e inspirou fundo.

— Não parece que sabe, pelo visto. Na realidade, você parece não entender nada. Nem você, ou a garota da roça. 

Era a primeira vez que o ouvia se referir daquela forma à Ryota, mas Zero claramente não gostou nem um pouco daquilo. 

— Não chama ela desse jeito.

— Chamo-a como quiser, e não cabe a você me dizer o que fazer. Estamos em patamares diferentes, e, portanto, espero que compreenda as coisas que lhe digo com seu cérebro minúsculo e irracional. 

Sora se aproximou e, com a cara fechada, deu um empurrão suave na testa de Zero, que sequer saiu do lugar. Eles ainda se encaravam quando o assassino tomou a frente do corredor, e parou.

— Independentemente do que aconteça, do que ouça ou pense ter entendido, precisa manter o foco onde seu coração foi jurado. É a base para qualquer guardião, e não parece que o tem seguido à risca, como jurou ao ser contratado, não é?

O punho de Zero se fechou, e ele respirou com dificuldade, parecendo compreender aonde Sora queria chegar. 

— A mestre Minami não deseja cachorros que abanam o rabo para qualquer um ou subordinados fantasma; ela precisa de suporte, de comprometimento e lealdade, acima de tudo. Se bem me recordo, são passos básicos para um ex-nobre como você, senhor Zero Furoto.

Apenas mencionar o sobrenome fazia o corpo dele tremer. Inconscientemente. Zero franziu a testa e apertou os lábios, agora sem conseguir olhar para as íris sérias de Sora, que mantinha a postura ereta e cabeça erguida. 

Um par de criadas passou às pressas pelo corredor, claramente aterrorizadas com a aura de pressão do assassino. Se mesmo os guardiões temiam encarar um Akai, quem dirá uma pessoa “comum”, desacostumada com aquela realidade.

O silêncio parecia distorcer a cabeça de Zero, que remoía aquelas palavras. Ele não podia revidar, e nem havia motivo. Eram verdadeiras. Eram apenas parte da realidade que vinha tentando ignorar. Que, ao longo de tantos anos, vinha tentando esquecer que faziam parte dele. Parte do sangue que corria em suas veias, e da responsabilidade que há tempos tentava escapar.

— Uma caipira inerme, incapaz de aceitar a própria realidade, mas que tenta usá-la ao seu favor quando lhe convém. E assim consegue se adaptar ao mundo em que vive, embora sofra com os resultados de suas ações. 

A descrição que Sora deu repentinamente, de forma séria, parecia ter saído de um livro antigo de biologia, com certo tom afiado. Foi tão repentino que Zero demorou um pouco para entender a quem ele se referia, e prendeu a respiração.

— Ela ficará bem, e você sabe disso — Zero quase soltou um grunhido de surpresa ao vê-lo estreitar os olhos, dessa vez, com menos hostilidade. — No entanto, sua mente frágil, que apenas o auto sabota em situações minimamente ameaçadoras à sua realidade atual, precisa simplesmente aceitar isso. Pelo bem dela, e pelo seu próprio bem. 

— Sora… 

Zero estava surpreso. Aquilo tudo, desde o começo, que começou como um sermão, terminou em um consolo? 

Sora não era alguém delicado, e muito menos sensível aos outros. Talvez, a única pessoa a qual fosse realmente inclinado a pensar de forma emocional fosse a irmã gêmea. Nem mesmo Fuyuki Minami, sua mestre, embora ele despojasse de grande respeito à ela, tinha tal espaço em seu coração — se é que ele possuía algum.

No entanto, agora, aquele Sora Akai, que emanava uma aura hostil e era tão direto ao ponto de esculachar os outros, agora parecia tentar auxiliá-lo. Foram palavras duras, mas necessárias. Zero, após se conscientizar daquilo tudo, acabou se sentindo um pouco agradecido com sua sinceridade. Significava que Sora estava sendo honesto em tentar apoiá-los, mesmo quando os ameaçava e xingava toda a sua família, ser e alma a cada cinco segundos.

— … Certo. 

Percebendo uma mudança no olhar do guardião, o assassino sibilou um sorriso e tomou a frente da caminhada, sendo seguido algum tempo depois por Zero, que guardou o bloco de notas no bolso do calção.

***

Estava escuro demais. Ryota mal podia ver os próprios movimentos enquanto se esforçava para entender a situação em que estava. Seu corpo deslizou para a parede, ou melhor, foi puxado até lá pela pessoa que continuava a manter a mão em sua boca e torcia seu braço esquerdo para trás das costas, de forma que não pudesse se mover tão bem. A ponta da faca encostava ameaçadoramente no pé de seu queixo, como que a lembrando de que não poderia baixar o rosto ou olhar para trás.

Isso, caso ela não tivesse experiência alguma em combate corporal.

A pouca luz azulada que atravessava a cortina era o suficiente para que ela pudesse, em um par de segundos, pisar com firmeza no pé do sujeito e, ignorando a ardência do corte raso que passou por sua garganta, torcer o pulso da mão que estava com a faca e tomá-la para si. Tão rapidamente quanto havia sido pega, ela o fez ser colocado na mesma posição de refém no quarto escuro. Desta vez, no entanto, ela não precisava de uma faca para ameaçá-lo.

— Ah, sim, alguém vai se machucar se fizer barulho. Ou qualquer movimento, entendeu? — O toque cauteloso na mesma área do pescoço dele com apenas dois dedos faiscando de calor foi o suficiente. O tom amarelado brilhava na escuridão e a temperatura do cômodo aumentava bem lentamente — Quem é você e por que invadiu meu quarto?

Ryota fez uma pressão a mais na artéria fatal após o silêncio dele, esperando que bastasse. A risada contida do intruso a surpreendeu por um momento.

— Então a protegida da senhora Minami também pode cuidar de si mesma.

Engolindo em seco, um calafrio percorreu as costas de Ryota. Ele sabe. Um turbilhão de pensamentos se sobrepujaram em sua mente, e ela buscou a melhor forma de responder ao seu comentário. Não podia se dar ao luxo de dizer alguma coisa que a denunciasse, ou que causasse qualquer problema à Fuyuki, também. 

Mas o tempo entre abrir a boca e responder foi curto demais, pois o espaço começou a se contorcer. Espaço, o quarto, ela mesma? Ryota não sabia, mas se sentiu estranha a ponto de hesitar e desfazer sua concentração de chi, quase recuando. Sua visão se torceu em um misto de cores, e um enjoo repentino a fez soluçar, quase arrotando. Sua cabeça doía, seu corpo doía, tudo doía. Era como ser amassada e distorcida, perdendo o controle do mundo por completo.

No entanto, durou muito pouco, e a garota caiu de joelhos no gramado úmido, tossindo abruptamente quando o choque e o efeito se desfez. A saliva escorria de sua boca, o corpo implorando para colocar para fora a janta — e foi o que fez, depois de alguns instantes. A tontura ainda a deixava cambaleante, se colocar de pé era um desafio. O intruso, debaixo do enorme capuz sombrio, revelava um sorriso triunfante sobre ela.

— … O… Q-Que… — Ryota tapou a boca quando um refluxo balançou seu estômago.

— “O que” aconteceu? Ou “o que” sou eu? Imagino que sejam estas as suas perguntas. Entretanto, minha cara amiga, isso pode esperar um pouco.

O intruso, que não era mais alto do que uns bons dez centímetros, se ajoelhou para ficar à sua altura, e desfez o sorriso.

— Tenho uma proposta para você.

— Ah… Agora cê… Quer conversar? — Com toda a força que conseguiu impor, Ryota retrucou com sarcasmo, nada desafiadora ou confiante como esperava aparentar.

Os olhos azuis dela queriam muito se torcer para trás pela falta de energia e tontura, mas Ryota manteve-se tão estável quanto podia. Se o homem pareceu surpreso com essa atitude dela, não demonstrou. Muito pelo contrário: Continuou com seu porte sério, pondo-se de pé ao mesmo tempo que ela.

— Foi mal aí, mas acho que… Não tem nada-

— Não vai encontrar Albert Megalos passeando por Hera como uma barata tonta.

Ela perdeu a voz.

Albert… Megalos?

O homem sorriu ao perceber que tinha captado seu interesse, embora a garota tentasse esconder o quão evidente isso tivesse sido demonstrado em sua expressão. Ele deu meia volta, iluminado pelo luar — luar? Foi só quando se deu ao trabalho de observá-lo que percebeu onde estavam: Do lado de fora da capital. Mais precisamente, em um raso campo aberto, muito semelhante ao lugar onde ela, Eliza e Sasaki haviam se teleportado alguns dias antes.

— Vai me escutar agora?

— … Desembucha. 

Ele riu com o nariz.

— Não poderá se encontrar com Albert Megalos apenas procurando pela cidade, e ninguém irá te dar qualquer informação útil sobre ele, elas sabendo ou não. Primeiro, porque é raro que qualquer um, além dos próprios nobres, interajam entre si e saibam reconhecer um ao outro visualmente.

— Hm. E daí?

Ryota grunhiu como se não fosse nada demais, ainda sem conseguir acreditar nas palavras dele.

— Me diga, então: Você ao menos já viu o rosto do príncipe? Ou de Sua Majestade? Pelo jeito, não. E não é apenas você, pois poucos possuem a autoridade de estar diante de um nobre, quem dirá da realeza. Não é à toa que é tão valiosa, não acha?

Um sorriso que dizia mil e uma coisas, e nada ao mesmo tempo, brotou no rosto dele, ainda oculto pelas sombras do capuz.

— Se você realmente quer encontrá-lo, vai precisar mais do que uma noção de como ele é ou onde está. 

— Falar é fácil atrás de uma capa anti-climática dessa. Não tá com frio só com essa roupinha leve, não?

Se ele sentia frio com a brisa cortante de inverno, não demonstrava, mas Ryota, que estava com seu pijama, estava se segurando muito para não se encolher ali mesmo. 

— E, além dessa faladeira toda, como é que vou acreditar em você, de todo jeito? O que quer de mim? 

— Oh, nada que não esteja ao seu alcance.

— Pára de enrolar e vai logo ao ponto, caramba!

O homem pigarreou, voltando ao tom sério:

— Esteja presente no Debute, amanhã.

— Hm? Só isso?

— Sim, apenas isso. Prometo aqui, e agora, que se fizer isso, vou provar minha palavra a você. 

Ele estendeu a mão na direção dela, mas Ryota apenas uniu as sobrancelhas, fitando a palma dele, então o que deveria ser seu rosto.

— Se meter uma pegadinha pra cima de mim, vou te esculachar, entendeu? Tô nem aí se tiver que virar a cidade toda pra te achar!

— É uma pessoa com temperamento forte, não?

— Normalmente, não. Mas tu me pegou num dia ruim, invade meu quarto e ainda me arrasta pro meio do mato onde é mais frio! 

— Sim, sim. Um argumento válido, de fato — Ele assentiu como se não fosse nada demais, se aproximando dela a passos lentos para tocar seu ombro. — Espero poder contar com sua colaboração, minha cara amiga.

— Mas e-

A sensação horrível veio de novo. O espaço, o mundo, tudo se contorceu e comprimiu. Ryota sentiu como se o ar em seus pulmões se esvaísse de uma só vez, então o recuperasse em pouco mais que um segundo, quando esbarrou em sua cama. Ela levou desesperadamente as mãos ao pescoço, então aos lábios, o estômago fazendo um barulho desconfortável enquanto tentava se situar.

— E-Estou… De vol… Ugh.

— Isso é tudo por hoje — A voz interrompeu seu raciocínio e ela se voltou devagar para trás, para a janela aberta, onde o homem estava confortavelmente sentado a olhando. — Tenha certeza de manter a sua palavra amanhã.

Quando ele se jogou do terceiro andar, caindo em direção ao solo de braços abertos no ar, Ryota apenas chegou na janela a tempo de ver o puro nada. Ele tinha sumido, tão rapidamente quanto surgiu.

— Mas que arrombado… Nossa, velho, que negócio… Horrível. 

E quem era aquele maluco? Com uma habilidade toda esquisita… Era um tipo de teleporte? Que coisa estranha… 

Amanhã. No Debute. Ryota não sabia ainda o que esperar daquilo tudo, nem se deveria realmente fazer o que foi dito. Sendo honesta e direta, ela tinha sido manipulada por completo. Foi mandada para fora e devolvida em um piscar de olhos, levada por uma informação que sequer sabia se era verdadeira ou não. 

Ele podia ter me sequestrado com aquela habilidade. Ou até me matado, se quisesse. E ainda assim… 

Apesar de toda a pose e confiança em sua voz, o homem não era fisicamente forte, isso tinha ficado claro. Muito menos experiente em combates corporais. Era tão — senão, ainda mais — novato naquelas coisas quanto ela. Sequer tinha conseguido manter a faca em seu pescoço por mais que alguns segundos.

E, ainda assim… 

Uma troca. Um acordo.

Num suspiro pesado, Ryota se perguntou se era estúpida antes de correr pro banheiro.

***

O café cheirava muito bem enquanto enchia a xícara inteiramente branca em sua mão. A luz suave do sol atravessou a janela e bateu em seu rosto. Ryota sorriu de um jeito bobo quando Eliza lhe serviu uma fatia de pão.

— Obrigada~

— Por nada. Uh, pode me passar a geléia de uva, por favor? Muito obrigada.

— … Nossa, até o jeito que você segura a faca é delicado.

Eliza pareceu se assustar com o comentário de inveja, apertando os lábios numa linha. 

— N-não diga e-essas coisas… Não é nada demais.

Vendo aquela reação, Ryota continuou com um sorriso:

— É que você, a Fuyuki e a Kanami são todas tão pimposinhas.

— Isso deveria ser um elogio…? D-De toda forma, eu não sou-

— Fofa demais. Vontade de apertar essas bochechas!

Eliza quase saltou da cadeira quando Ryota segurou suas bochechas vermelhas. A curandeira afastou a garota com um aceno, que ria.

— P-Pare com isso, p-por favor!

— Foi mal, foi mal. É que você é tão fácil de ler…

— Isso n-não me deixa nada f-feliz!

Pelo que pareceu alguns minutos, elas começaram a comer em silêncio com Eliza fazendo bico para Ryota. No entanto, quando olhou para o relógio de parede, sua expressão se suavizou e ela logo se colocou de pé, levando o prato e xícara sujos para a pia.

— O que foi?

— Me desculpe, Ryota, mas é que preciso recepcionar a senhorita Fuyuki hoje. 

Ah. É verdade. O Debute… 

Por um instante, a conversa com o homem do dia anterior saltitou na mente de Ryota. Queria perguntar a respeito de um certo assunto à curandeira, mas pela forma que desastradamente tentava arrumar suas coisas, ela logo percebeu que só iria atrasá-la ainda mais com aquilo.

— E-Então… Provavelmente só nos veremos novamente após o Debute, está bem? Até lá, por favor-

— “Não ande para longe, não siga estranhos ou tome qualquer decisão sem me contatar”. Eu sei, eu sei. Pode ficar tranquila, não farei nada.

— Dizer isso e “faça o que quiser” daria no mesmo… 

Eliza assim suspirou como último diálogo entre elas antes da curandeira disparar apartamento afora em direção ao seu trabalho. 

E Ryota, que ficou responsável por limpar a sujeira, respirou fundo, decidida.

Muito bem então. Debute, lá vamos nós.



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