Volume 3 – Arco 3
Capítulo 6: Hera, a Capital Real
Cores, sons e luzes: Essa foi sua primeira impressão sobre o lugar. Além da grande muralha, que restringia aquela visão completamente além da imaginação, havia uma gigantesca cidade recheada de pessoas, telas no alto de prédios, músicas soando casualmente ao fundo das ruas e o cheiro mais do que saboroso de comida rondando no ar.
Ryota estagnou no lugar quando chegaram até a calçada, onde tudo podia ser visto com mais facilidade. Seus olhos foram de encontro com uma rua asfaltada em que diversos tipos de carros passavam, desde os mais altos com poucos lugares até os mais compridos e luxuosos possíveis. Ela nunca tinha visto nada assim antes. No entanto, sabia que era uma raridade ver um lugar tão bem dividido entre pedestres, ciclistas, motoristas e cocheiros; todos eles eram adequadamente separados por divisórias amarelas e brancas no chão a qual Ryota não tinha tanto conhecimento, mas conseguia entender mais ou menos vendo seu propósito.
No meio, os carros passavam de um lado para o outro, enquanto as carruagens — que embora antigas, tinham um toque de modernismo e nobreza — zanzavam lentamente pela própria via marcada em vermelho nas extremidades. Pedestres e ciclistas faziam o mesmo, mas em maior quantidade e de forma um tanto desorganizada, uma vez que a capital estava tão movimentada. As calçadas e vias azuis para as bicicletas, por vezes, estavam na mesma reta das ruas, outras, se estendiam como pequenas pontes e travessias no ar, sustentadas por pilares brancos e dourados.
Prédios gigantescos reluziam por todos os lados com suas grandes telas, tocando músicas famosas e passando propagandas. Olhando para cima, Ryota ficou de boca aberta com as lojas e departamentos, podendo ser acessados tanto ali embaixo quanto pelas vias no ar.
Recebendo tapinhas no rosto, ela finalmente baixou o olhar para Sasaki, que apertava os lábios para esconder o riso de sua reação.
— Vai entrar mosca se continuar com a boca aberta desse jeito.
— … Ah. Sim, claro.
Ryota mal conseguiu completar a frase, já distraída com o som atraente de sinos tocando em algum lugar. Provavelmente de uma porta se abrindo, ou de um vendedor chamando atenção. Sua cabeça virou para frente, observando com um brilho no olhar a padaria do outro lado da avenida — muito, muito longe dali.
— Não posso culpá-la por ficar tão impressionada. Eu mesmo quase tive um treco quando vim para Hera pela primeira vez… Oh, e você não foi a única, pelo jeito. — Sasaki logo chamou sua atenção de novo, inclinando a cabeça para Eliza, que também estava parada de boca aberta ao lado de Ryota.
Com um pequeno cutucão em seu rosto, ela logo se recompôs e corou ao ser encarada tão intensamente pelos outros dois.
— B-Bem, acho que devemos seguir c-com nossos afazeres — Eliza levou a mão curvada aos lábios, a voz tremendo de vergonha, embora ninguém ao redor deles ligasse para sua presença.
Estava frio, e Ryota só percebeu o quão gelado estava quando fungou o nariz.
— Primeiro de tudo, precisamos ir até o hotel onde passaremos a noite para fazer o registro de entrada.
— Hotel? — Ryota sibilou, um pouco surpresa. — Não vamos ficar em uma das casas da Fuyuki?
— Durante eventos e comemorações nacionais, como a coroação real, é padrão que os líderes da nobreza e seus acompanhantes passem o dia no palácio.
Como que levada por essas palavras, Ryota buscou com seus olhos azuis a construção. Como estavam tão longe do castelo, tudo o que pôde ver dali era a lateral dele. Se mesmo tão longe ele era gigante, mal conseguia imaginar qual a dimensão daquela coisa de perto.
— Entendi — respondeu, por fim. — Então, no caso, só vamos ficar no hotel até o Debute?
— Assim que a mestre Fuyuki chegar, a acompanharei até o palácio.
Ficou claro como o dia que Ryota não os acompanharia até lá, o que a deixou um pouco triste por perder uma oportunidade daquelas. Entretanto, estava perfeitamente ciente de sua relação com eles e não podia esperar nada mais que pequenas cordialidades da duquesa.
Eliza, por fim, olhou para Sasaki franzindo a testa.
— Assim que fizermos o registro, eu e Sasaki iremos até a Fortaleza resolver algumas questões. Enquanto isso, Ryota, peço que não vá para longe do hotel e, ao menos, permaneça por perto para que não se perca. Apesar de não parecer, Hera é um lugar enorme. Até que consiga cravar selos adequadamente por aqui, não posso garantir nada.
A curandeira então olhou para Ryota, e ela assentiu. Embora um sentimento se remexesse dentro de seu estômago, como uma espécie de ansiedade com animação para o que encontraria, uma pequena parte dela queria simplesmente jogar tudo para o alto e sair andando por aí como se não houvesse amanhã. Sim, não era a melhor ideia de todas, e também não era a mais inteligente, mas que tinha vontade, tinha.
Mais do que isso: Adoraria sair andando por aí, fazendo perguntas para quem quer que parecesse saber de algo sobre Albert. Poderia descobrir alguma coisa, ou até o encontrar andando por aquelas ruas. Seria uma grande coincidência, e talvez até ser otimista demais? Sim, com certeza. Ainda assim, era uma possibilidade.
Como que vendo isso em seu rosto, Eliza juntou a palma das mãos e disse:
— Assim que estiver tudo certo, a ajudarei em sua busca. Tudo bem?
Ryota inspirou fundo, baixando os ombros.
— Tudo bem.
***
— Mas me conta uma parada: O que é a Fortaleza?
Caminhando da melhor forma que conseguiam pelas vias preenchidas de gente, o trio seguia caminho até o hotel. Sasaki as guiava pacificamente até lá, olhando para os lados com frequência para não interromper a conversa entre elas.
— É uma grande prisão submersa na capital. — Eliza explicou, erguendo o dedo indicador. Ryota quase achou graça naquele gesto, já tendo visto Sasaki fazer o mesmo com bastante frequência enquanto a ensinava. — É um lugar que guarda grandes nomes da história, destinados à uma prisão eterna, agonizando na solidão e na própria loucura até a morte.
— Que tenso. E o que é que vocês vão fazer lá? Se me permite perguntar. — Ryota emendou a última parte, preocupada em estar sendo indiscreta, mas Eliza apenas sorriu.
— A Fortaleza também é um lugar que protege e guarda objetos de grande valor.
— Objetos?
— São carinhosamente chamados de relíquias. — Sasaki complementou de repente, ainda olhando para as ruas.
— As relíquias são objetos valiosos que podem ser muito perigosos. Portanto, são mantidas seladas na Fortaleza, ficando, em parte, sob responsabilidade do selador que a cravou com seu símbolo.
Imitando seu gesto — talvez inconscientemente — de erguer o dedo indicador, Sasaki complementou mais uma vez ao se virar:
— Portanto, nós, seladores, temos a responsabilidade de conferir sua segurança e reforçar o selo ao menos uma vez por ano.
— Caramba, parece bem trabalhoso.
Eliza baixou o braço e desviou o olhar para a pequena bolsa rosa que carregava no ombro. Era simples, com apenas um botão para abrir. Com cuidado, ela a tocou.
— No momento, tem algo que preciso levar até eles e garantir que seja analisado e trancafiado corretamente.
Elas trocaram olhares. A seriedade nos olhos âmbar de Eliza fez Ryota enrijecer o corpo por um momento, se perguntando o que ela queria dizer com aquele silêncio. Foi só quando a curandeira retirou um pequeno cristal azul da sua bolsa que ela entendeu.
A aura que vazava daquela pedra era ameaçadora e familiar. Carregava uma energia, ou melhor, um chi poderosíssimo e frio. O símbolo de um floco de neve estava cravado nele, quase imperceptível.
— Liz, isso é… O que eu tô pensando?
— Sim. Eu selei o Tigre Branco do Oeste no Cristal da Ilusão.
— Você e seus nomes…
— M-Me deixa!
Eliza ergueu o tom de voz contra o riso de Sasaki, franzindo a testa. Ryota nem prestou atenção naquilo.
— Esse tal Tigre Branco do Oeste é aquela coisa que eu e o Sora enfrentamos na floresta? — Quando Eliza assentiu, Ryota engoliu em seco, fitando a pedra. — Mas como foi que…? Você pode selar seres vivos em cristais, ou algo assim?
— O Tigre Branco do Oeste era um espírito. Eles podem ser facilmente selados em relíquias para uso próprio. Neste caso, como queria apenas mantê-lo preso, usei um selo de proteção, mas existem pessoas que podem usá-los em benefício próprio para ganhar mais poder fazendo um contrato com eles.
Ryota não era tão estúpida para não conectar os pontos. Ela já tinha lido em diversos livros de fantasia, até mesmo nos de história, sobre os famigerados espíritos: Seres inteiramente de chi que nasciam e viviam infinitamente na natureza, protegendo seu território e ameaçando os seres humanos. Histórias sobre eles eram passadas de gerações em gerações como contos com moral, dos mais bobos aos mais horrendos, com finais terríveis.
Histórias onde uma pessoa vendia sua alma para um espírito em troca de poder não eram tão incomuns.
— … Eu não sabia que aquela coisa era um espírito. Então, o motivo de ele ter tanto poder pra cobrir todo aquele território era por isso.
— Sim. Logo quando Kanami e Sora o derrotaram, consegui selá-lo apropriadamente antes que ele se desfizesse em chi e renascesse em outro lugar.
— … Eliza?
Eliza parou após falar, olhando seriamente para o cristal que ainda segurava, antes de guardá-lo em segurança na bolsa.
— Não era um espírito comum. O Tigre Branco, definitivamente, não é um ser que viveria em um território plano, restrito e úmido daqueles — ciciou ela, mais para si mesma que para Ryota, então balançou a cabeça para se concentrar. — Antes de qualquer coisa, garantirei que ele não cause mais nenhum problema.
***
“Não atravesse nenhuma rua, nem vá ao Distrito Comercial”, ela disse.
Ryota repassou mentalmente as palavras de Eliza quando terminaram o registro no hotel, guardaram seus pertences e se separaram.
“Pode passear à vontade pela quadra, mas não saia. Por favor.”
— Não duvido nada que foram palavras saídas diretamente da Fuyuki. Toda hora ela fica agindo como uma mãezona, vê se pode?
Ryota passou direto pela massa de pessoas que a olhava com certa descrença, curiosas com a garota que falava e gesticulava sozinha, antes de estagnar de frente para uma faixa de pedestres.
— Vou fazer o que ela disse, é claro. Sim, sim. Primeiro de tudo, comerei alguma coisa bem diferente e cheia de espuma, com carinhas e todo o frufru que tiver direito. Daí, vou passar nas lojas e tentar conhecer um pouco mais da cidade. Certo, sim, uhum.
Ela anotou mentalmente o que faria, erguendo os dedos da mão um atrás do outro, assentindo sozinha. Podia fazer isso, sem problema nenhum. É claro. Tinha prometido que não causaria problema para nenhum deles, e ainda permitiram que ela caminhasse pela quadra — que tinha mais lojas e coisas para explorar do que conseguiria nas poucas horas livres que tinha. O que mais poderia querer?
— Ei, ei, você ouviu? Parece que uma nova remessa de contos chegou na Grande Biblioteca Nacional.
Ryota paralisou.
— Sim! As amostras serão gratuitas para público, e parece que terão até livros internacionais raríssimos. Alguns foram trazidos com muita luta por leilões.
As orelhas dela pareceram se mexer na direção das duas mulheres.
— Precisamos nos apressar ou perderemos a estréia com os autores. Aparentemente, haverá uma sessão de autógrafos restrita, também. Vamos, vamos.
Os olhos azuis dela acompanharam as duas mulheres se apertarem entre a multidão, passando às pressas para a tal Grande Biblioteca Nacional.
As mãos dela pareciam suar. Pareciam pinicar.
… Uma olhadinha não vai fazer mal, vai? Não vou nem entrar, nem nada.
Ryota sabia que iria se arrepender disso mais tarde.
Segui-las não foi uma tarefa fácil. Atravessar dezenas, centenas de pessoas, todas com roupas coloridas e diferenciadas, em um lugar barulhento e apertado não era uma ideia tão divertida quanto pareceu no começo. Mas a garota seguiu as duas mesmo assim, se esforçando para não perdê-las conforme caminhava a uma distância segura.
— Licencinha, licencinha, brigada galerinha… — ela ciciava, se espremendo conforme podia, para então acelerar o passo. — Li- Opa! Me desculpa!
Para sua surpresa, acabou esbarrando contra alguém, batendo a testa contra algo duro. Ryota levou a mão ao lugar machucado, não antes de prontamente tentar pedir perdão por ter simplesmente ignorado a moça.
— Não se preocupe, estou bem.
A resposta veio devagar, sob um tom bastante calmo. A voz parecia cantar nos ouvidos dela, e Ryota quase engasgou quando olhou para o rosto da moça. Era, talvez depois de Fuyuki, a mulher mais bonita do mundo. Sim, talvez todas as mulheres que não fossem ela mesma, que usassem roupas mais femininas, fossem perfumadas, fizessem as unhas e se comportassem da “forma correta” fossem lindas aos olhos dela.
Mas a moça, cujos olhos verde-água piscavam para ela, era diferente. Estando na casa dos vinte aos trinta anos, era suficientemente alta, com uma aparência chamativa ao próprio modo. Não chamava tanto a atenção em meio a tantas pessoas, mas, de perto, era absurdamente linda. Seus cabelos lisos esverdeados ganhavam volume nas pontas, se ondulando nos ombros. Usava um vestido longo e azul, parecendo, ao mesmo tempo, educada e um tanto sexy.
Era quase como olhar para uma divindade. A vontade que Ryota tinha era a de esfregar os olhos com o brilho que irradiava dela, como se uma aura encantadora a seguisse. Mas, mais do que isso, os seus olhos, que se estreitavam num formato oval, pareciam ver através dela.
Foi só depois de olhá-la com tanto cuidado e admiração que Ryota voltou à realidade, gaguejando de nervoso ao se agachar para pegar o objeto que ela havia derrubado.
— Me desculpa mesmo! Aqui.
— Agradecida.
Ryota ignorou completamente o fato da moça não ter pego o livro de capa dura por conta própria, como se aguardasse que ela o fizesse de toda forma com um sorriso indecifrável no rosto. Seus lábios rosados se alargaram quando a bela mulher envolveu o livro de capa escura com um símbolo estranho.
Porém, no processo de tocá-lo e devolvê-lo à dona, um choque repentino descarregou no corpo de Ryota, e ela se viu interromper o ato por um milésimo de segundo. Não sabia o que tinha acontecido, nem como, ou porque aquele livro parecia tão pesado e intenso sobre seus dedos. Apesar de, sim, haver muitas páginas, não era esse o motivo de lhe causar tamanho espanto.
Era quase como se aquele livro sugasse parte dela. Como se a chamasse, a conectasse com ele apenas ao toque. Mas, ao mesmo tempo, a repelisse com sua intensa presença. Foi um sentimento completamente absurdo que causou espanto em Ryota, mas a moça não pareceu reparar. Sequer demonstrou uma reação ao abraçá-lo com tanto cuidado, sem se preocupar em limpá-lo ou averiguar se havia amassado na queda.
— Se me dá licença.
Com um movimento de cabeça, a moça desapareceu na multidão tão facilmente quanto surgiu. E Ryota, ainda sem conseguir processar o que tinha acabado de acontecer, apenas ficou ali, parada, quando ouviu um berro alcançá-la do outro lado da rua.