Volume 3 – Arco 3
Capítulo 4: Promessas Noturnas
O tilintar das taças tornou-se um som bastante comum nos encontros noturnos entre Ryota e Fuyuki. Em noites frias como aquela, recheadas de estrelas no céu, com suas respirações condensando entredentes enquanto bebiam, elas conversavam à vontade.
Ryota envolvia sua taça meio cheia e bebia de pouco em pouco o vinho, agora acostumada com o álcool. Não costumava ingerir muito, uma vez que não era tão resistente, mas fazia companhia para a colega, que parecia encher o próprio copo a cada cinco minutos. Ela não demonstrava grandes alterações em seu humor ou forma de falar, embora um rubor preenchesse suas bochechas anteriormente pálidas.
A ponta dos dedos de Ryota estavam frias enquanto acariciava a própria taça; seu rosto e garganta queimavam com a bebida.
— As coisas parecem estar indo bem entre você e Sasaki — comentou Fuyuki com um sorriso educado. — Não tive a oportunidade de vê-la treinar. Porém, reparei que não está mais usando faixas nos braços e pulsos, o que significa que teve êxito no final.
— Sim, embora tenha demorado um tiquinho até eu me acostumar com a dor. — Ryota riu nervosamente, lembrando-se da sensação. — Mas agora tá tudo bem. E o Sasaki disse que não tem muito mais o que ele possa me ensinar, então preciso trabalhar sozinha daqui pra frente.
Fuyuki apoiou o cotovelo na varanda, segurando o queixo com uma das mãos.
— Ouvi que Kanami a estava ajudando, também.
Ryota assentiu, torcendo os lábios, o que fez a duquesa arquear as sobrancelhas em dúvida.
— … Sim.
— E então?
Ryota deu um grunhido lento, como que desconfortável em ter que explicar a situação. Então, ergueu as mãos no ar e mexeu os dedos.
— Me promete que não vai contar pra ela, tá bom? É só que… Bem… Ela não é uma professora muito boa, sabe? É difícil dizer…
Fuyuki riu abertamente.
— Não direi nada a ela, então não precisa se preocupar.
— … A Kanami é bem paciente comigo, mais do que o normal. Na verdade, ela ficava sempre me olhando repetir as coisas que me ensinava a fazer. O problema é que… As explicações dela não fazem sentido nenhum!
A exclamação saiu sem qualquer controle por parte da garota, que abriu os braços de forma exagerada. Sua expressão torta de tristeza, mas ao mesmo tempo de culpa, fez Fuyuki rir mais uma vez.
— A Kanami fica toda hora falando “repita isso” ou “apenas faça aquilo”, mas não adianta nada quando a parada que vou fazer é ultra difícil! E quando vou pedir uma explicação mais detalhada, ela só fica me olhando como se eu fosse simplesmente espelhar seus movimentos do nada. — Ryota bebeu, indignada, mais um gole do vinho. — Fico morrendo de vergonha quando não consigo, mas também com dó dela, porque a Kanami fica claramente decepcionada comigo, mas mantém aquele sorrisinho fingido dela na cara! Me dói tanto que dá vontade de chorar!
Detestava ter que falar dela daquele jeito. Detestava, mesmo. Entretanto, talvez por já estar meio bêbada, ou talvez por estar se sentindo mal com aquilo, Ryota acabou falando tudo de uma vez e logo depois um arrependimento assolou seu peito. Kanami tinha proposto ajudá-la por vontade própria e sempre tirava um pouco do seu curto tempo para observá-la, mas as coisas nem sempre davam certo. Na maior parte das vezes, elas apenas iam para o local de treinamento e voltavam em silêncio, com Ryota completamente frustrada.
Sentindo tapas reconfortantes nas costas, ela fungou olhando para a duquesa.
— Entendo como se sente. Entretanto, tenho certeza de que Kanami não está decepcionada com você, nem fazendo tudo isso por capricho. Afinal, sabemos perfeitamente bem que tanto ela quanto seu irmão são bastante diretos quanto aos seus sentimentos e opiniões. Eles dificilmente escondem isso. Então, se ela continuou te ajudando mesmo depois disso, tenho certeza de que é porque ela acredita em você.
A contragosto, Ryota assentiu.
— Sabe — Fuyuki continuou, olhando para o céu — Não é de minha propriedade falar sobre nenhum deles, e não quero afirmar algo que não sei. No entanto, se tem algo que sei com certeza, é que os Akai foram ensinados e especializados a serem assim. Aprendem, desde jovens, a se virarem por conta própria, então é natural que esperem que os outros façam o mesmo. Escutam uma ordem e seu instinto diz que devem cumprir com ele a qualquer custo. Talvez Kanami apenas não compreenda que as pessoas possuem seu próprio tempo, porque ela mesma não teve espaço para descobrir.
A taça da duquesa, mais uma vez, se esvaziou. Fuyuki prontamente a encheu, dando um longo gole antes de continuar a falar:
— De qualquer forma, se você realmente se sente dessa forma, deveria apenas conversar com ela.
À essa resposta que já esperava ouvir, a garota coçou a bochecha quente.
— Tem razão. Farei isso.
— Inclusive, já que entrei nesse tópico, tem algo que gostaria de alertá-la. — Fuyuki fez uma pausa suficientemente longa para que Ryota compreendesse a seriedade de suas palavras. — Embora eu tenha quase certeza de que, apesar de tudo, você é alguém esperta o suficiente para perceber isso sozinha.
— Lá vem você com esses seus comentários afiados, mas continue.
A duquesa girou o líquido no copo.
— Quando for até a capital, Ryota… Não confie em ninguém.
Um silêncio se instalou entre elas. Uma brisa seca e fria balançou seus cabelos, brilhantes sob a luz da lua.
— É claro, você sabe que sempre será muito bem-vinda em minha casa, e jamais esquecerei todas as coisas que fez por mim e pelos meus guardiões. — Ryota apertou os lábios, gesto que mostrava o quão nervosa ainda ficava toda vez que ouvia aquilo de Fuyuki. — Entretanto, além deles, e talvez de Sasaki, embora não possa falar dele com certeza, não acredite em ninguém.
A princípio, um sentimento quente apertou o coração de Ryota, mais como uma pequena irritação por, mesmo agora, não confiarem nela o suficiente. No entanto, ele logo se dissipou com as palavras que se seguiram:
— A coroação real reunirá todos os líderes das famílias nobres e suas respectivas Elites. Haverão pessoas maldosas, pessoas que se aproveitarão de você por ter contato direto comigo. Talvez até traidores da coroa buscando informações sobre mim ou você, que compartilhamos o status secreto de “índigo”, algo que acredito ser de grande valor para eles.
Ryota não sabia quem eram "eles", mas não fez menção de interrompê-la.
— Creio, e espero estar correta, que será capaz de lidar com isso sozinha.
A garota abriu a boca para concordar, mas as palavras entalaram na garganta. Não tinha como ela simplesmente dizer aquilo sem pensar, não é? Não era tão simples assim, e, mesmo que doesse, sabia bem disso.
Ryota era distraída, levada facilmente pelas emoções, muito fraca comparada ao nível de força de qualquer um da nobreza, e, ainda por cima, um alvo fácil. Não era à toa que Fuyuki estava lhe advertindo tudo aquilo apenas um dia antes de sua partida — seria um grande incômodo que ela viesse a ser manipulada pelas outras famílias, de forma que a deixassem numa posição frágil perante as demais.
E ser um fardo era tudo o que Ryota não queria se tornar.
— Sim — Foi tudo o que conseguiu dizer, engolindo em seco as suas preocupações e a vontade de hesitar, mas as palavras pareceram escapar com facilidade logo em seguida. — Vou me esforçar pra não atrapalhar você. Mesmo que eu seja uma caipira sem jeito, prometo não te incomodar. E, se acontecer alguma coisa… Ah, não que vá, mas, caaaaaso aconteça, né… Não vou falar nada. Nem uma palavra. Eu prometo.
Ela limpou o suor das mãos na roupa, tentando disfarçar o medo de que aquilo viesse realmente a acontecer. Entretanto, Fuyuki apenas sorriu e ergueu sua taça, inclinando-a contra a da amiga.
— Certo, vou confiar em você, então. Não me decepcione.
Fuyuki não queria desculpas, muito menos palavras ditas sem base ou determinação alguma. A pressão que sentiu nos ombros, de repente, era a mesma da vez em que prometeram não atrapalhar os objetivos uma da outra, no passado. O olhar belo, mas profundo, da duquesa a fazia se enrijecer, mas também a inspirava a tentar cumprir com suas expectativas.
Ryota tocou a própria taça contra a dela, e beberam todo o líquido de uma só vez.
***
— Eai.
A porta rangeu devagar ao ser aberta e a imagem do intruso sorridente surgiu através da fresta. A menina sequer se virou para ver quem era, muito menos para devolver o cumprimento, uma vez que não queria vê-lo. Sequer se deu ao trabalho de devolver seu olhar quando o mesmo intruso fechou a porta atrás de si com cuidado e se aproximou da mesa de trabalho dela, ficando a uma distância segura.
— Você sempre se esforça muito, não é, Liz?
Eliza franziu a testa.
— Não me chame assim — grasnou ela, suprindo a irritação, fazendo uma anotação rápida com a caneta no pequeno bloco de notas. — Estou ocupada.
Os líquidos coloridos se misturaram — um azul e outro amarelo —, então soltaram uma pequena fumaça cinzenta quando o selo desenhado no vidro cintilou. Eliza bufou, já cansada daquilo tudo, e riscou algo escrito na lista fazendo força com a caneta. Seus olhos estavam semicerrados. A expressão de puro cansaço só se mostrou de verdade quando ela limpou os olhos e borrou a maquiagem, revelando as olheiras profundas.
— Não vai nem cumprimentar seu querido mentor? Nem depois de eu fazer todo esse caminho até aqui…
— Silêncio. Não fale… Não quero te ouvir mais, por favor. Se não tiver nada de importante a tratar, Sasaki, retire-se.
Eliza era incapaz de erguer o olhar da mesa de trabalho, e Sasaki não conseguiu esconder a expressão de dor ao ouvi-la falar daquele jeito. Ficou ainda mais incomodado ao vê-la torcer o rosto numa careta, expressando uma emoção que não conseguia compreender. Ele baixou o olhar para o chão, enfiando as mãos no bolso da calça social, e inspirou fundo.
— … Me desculpa.
— Por favor, não. Não fale isso, não de novo. — As palavras saiam tão baixinhas que Eliza sequer sabia se chegavam a ele ou não.
— Eu só não… Não queria que continuássemos desse jeito. Sabe, eu senti a sua falta nesses últimos dias. Então, eu…
Eliza se ergueu da cadeira tão rápido que ela capotou.
— Pare! Pare, por favor… Não quero ouvir nada de você. — A voz dela falhou no meio, e não conseguiu suportar as lágrimas que lhe chegavam aos olhos. Eliza, contendo o misto de sentimentos conturbados, virou o rosto para o outro lado. — Prometi à mestre que não causaria problemas a ela quando viesse até aqui. Não envolveria meus problemas pessoais, nem nada… Não quero estragar tudo agora.
Eliza abraçou o próprio corpo, se afastando com um passo. Não conseguia ver a expressão dele, mas, talvez por compartilharem um elemento semelhante, ou talvez por terem estado lado a lado por tantos anos, ela conseguia praticamente sentir a dor dele. A dor da rejeição, de ter a garota que considerava como uma irmã, como uma amiga, negar tão firmemente seu perdão.
— Falaremos em outro momento… Está bem? — perguntou ela devagar, ainda de costas pra ele, mas esperando que fosse o suficiente para dispensá-lo. — Por favor.
Ela não queria pedir desculpas. Não queria pedir “por favor”. Queria gritar com ele, mandar que saísse daquela sala, que sumisse dali. Não queria ver seu mentor nunca mais, e jamais olharia para seu sorriso de novo. Porque, se olhasse, talvez não suportasse a culpa de fazer aquilo com ele… Mas, ao mesmo tempo, não conseguia perdoá-lo.
— … Está bem — concordou Sasaki, e, após um instante de silêncio, saiu do cômodo fechando a porta.
Eliza aguardou alguns minutos antes de enxugar as lágrimas, deixando que escorressem. Odiava ter que ser assim. Detestava ter que odiá-lo, ter que fingir simpatia.
Ela também queria se reconciliar com ele.
Mas ele traiu sua confiança. Mais de uma vez, comprometendo não só ela, mas muitas coisas importantes.
E a curandeira dos Minami, a mulher forte e independente como a irmã mais velha, jamais olharia para trás de novo. Eliza não voltaria a ser a menininha fraca e que chorava em seus braços, mas se tornaria a grande pessoa que se esforçou para ser.
Afinal, foi ele mesmo quem a ensinou aquilo. Então jamais esqueceria.
Jamais.