Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 3: Manhã Quente

O dia amanheceu estranhamente quente. A luz solar adentrava pelo vidro das janelas abertas, alcançando com suavidade o rosto pálido da moça. Sentada em um pequeno e confortável banco, ela penteava sem grandes dificuldades os longos cabelos brancos e sedosos que lhe caíam nos ombros como seda. Seus olhos esmeralda encaravam o próprio reflexo no espelho, aparentemente, cansados após uma longa noite. O traço suavemente preto que foi oculto por maquiagem denunciava isso.

Colocando-se de pé, a duquesa deu alguns passos e conferiu a própria aparência apenas mais uma vez antes de sair dos aposentos. Seus passos pelos corredores ecoavam de forma única, uma vez que poucas pessoas estavam acordadas naquele horário. Mesmo os serviçais estavam em seus respectivos locais de trabalho ou recém chegavam à casa para começar a trabalhar.

Quando passou disfarçadamente na frente da porta da grande cozinha apenas ouviu o barulho de panelas e talheres tilintando, vozes saltando de lá para cá e passos apressados para preparar o café da manhã. 

Fuyuki interrompeu sua caminhada quando duas figuras no jardim chamaram sua atenção. Não era uma visão nova e por isso ela sequer demonstrou alguma reação, embora seu coração tenha se apertado um pouco. Uma garota de cabelos negros e jaquetas vermelhas chamativas trocava golpes ofensivos contra um homem mais alto de preto, que se mantinha na defensiva. A princípio, a luta estava completamente inclinada para o corpo-a-corpo e ambos estavam empatados, defendendo e avançando de forma quase equilibrada.

A partida desandou quando a garota, por fim, arriscou tocar com a palma aberta a grande lâmina azul que repentinamente se formou no antebraço dele, e se repeliram. Foi surpreendente, vendo à distância. No entanto, Fuyuki reparou que uma pequena fumaça branca surgiu entre eles antes de sumir, vinda do contato entre dois elementos contrários. 

Ela viu as duas bocas se mexerem e ambos sorrirem de forma desafiadora, como se estivessem se divertindo.

“ — Princesinha!”

Fuyuki estreitou os olhos quando uma voz familiar repentinamente lhe veio à mente, assim como uma cena muito semelhante à que assistia.

“ — Mantenha sempre o olhar no seu adversário e jamais o subestime. Não deve virar as costas, por mais fraco que ele seja. Entendeu?

— Eu já entendi, Nicolas. Você é sempre tão cansativo.

Ao suspiro da garotinha quase uma década mais nova, o jovem fez uma careta de frustração e vergonha.

Fuyuki sequer percebeu que estava sorrindo — ou apertando os lábios para a lembrança — até que uma serviçal passou apressadamente ao seu lado, mas não interrompeu seus pensamentos.

— … O que estou fazendo? — murmurou para si mesma, antes de balançar a cabeça e dar uma última olhada na dupla no jardim.

***

As pequenas e delicadas mãos de Eliza torceram o pano na bacia de água morna quase fria. A menina suspirou após ter enxugado o suor na testa da mulher inconsciente na cama. Embora soubessem que ela jamais acordaria com aquilo, todos os que adentravam em seu quarto faziam silêncio e falavam em voz baixa. Talvez fosse um costume, ou um simples ato involuntário, uma vez que Coldy Minami apenas parecia dormir tranquilamente em sua cama. Ela era como uma princesa adormecida, esperando o momento de acordar. 

E era essa aparência que tanto incomodou — e ainda incomodava — Fuyuki, que estava de braços cruzados logo atrás da curandeira.

— Certo. Terminei o exame, senhorita.

Fuyuki não respondeu de imediato, apenas permaneceu parada com a expressão dura.

— E então?

Eliza balançou tristemente a cabeça para os lados. Foi o suficiente.

— Entendo — disse a duquesa. — Não há o que ser feito, por hora. Obrigada por seu trabalho duro. Têm feito mais do que o necessário, então garanto que será devidamente recompensada.

— Obrigada, senhorita. 

— Não desanime, Eliza. Seus esforços são de grande ajuda. 

Percebendo que havia feito uma expressão triste mesmo após receber um elogio, Eliza resfolegou com o rosto quente.

— N-Não, senhorita… Não sou… Ah, obrigada. — Ela desistiu após receber um olhar sério de sua mestre e se voltou para Coldy. — Ainda assim, me sinto mal por ainda não ter conseguido fazer nada pela senhora Minami. Estou tão perto, mas, ainda assim…

Fuyuki descruzou os braços e deu um tapa forte o suficiente nas costas dela para que recompusesse a postura, a qual ela sempre exigia de seus guardiões. Eliza pigarreou antes de assumi-la.

— Entretanto, acredito que consiga ao menos desfazer parte de suas condições quando for até a capital. Poderei me reencontrar com alguns contatos e conseguirei terminar meus experimentos. É possível que, ao menos, a senhora Minami desperte.

— Sim. Eu sei.

Ainda assim, toda vez que ouvia aquilo de Eliza seus lábios tremiam um pouco. Era uma emoção que Fuyuki era incapaz de controlar, embora se esforçasse bastante para não transparecer com frequência.

Após um instante de silêncio, que a curandeira tomou como deixa para deixar mãe e filha à sós, Eliza fez uma reverência para a mestre e saiu silenciosamente do quarto, levando consigo todos os seus apetrechos de trabalho. 

Ainda com a respiração falha, Fuyuki se sentou no banco ao lado da cama e começou a falar.

***

Ryota grunhiu sozinha, olhando para a própria mão, enquanto o sol fraco batia em suas costas. Com a jaqueta amarrada na cintura e um pouco de suor escorrendo pela testa, a garota tinha se sentado no gramado para descansar um pouco e pensar assim que o horário de treinamento se encerrou, próximo do almoço.

Ela abriu seus dedos, analisando suas cores e formatos. Alguns calos e marcações se instalavam aqui e ali, mas nada preocupante. Podia sentir uma queimação suave no pulso, quase como um formigamento quente. Era resultado de seu treinamento e uma forma de saber que seu corpo estava pronto para expelir chi a qualquer momento. Tinha o controle de seu poder, ou, ao menos, um pedaço dele.

— Alguma coisa errada, senhorita? Será que está com fome?

— Alguma coisa errada, senhorita? Será que vai se arrastar pelo gramado de fome?

Ryota riu, meio seca, quando um par de vozes a alcançaram por trás.

— Já não passamos dessa fase? Sinto um calafrio toda vez que vocês fazem isso.

— Será, senhorita?

— Acha mesmo, senhorita?

O casal de gêmeos inclinou a cabeça para o mesmo lado, num sorriso educado, mas um tanto zombeteiro. Ambos tinham cabelos longos e negros, olhos vermelhos em tom de sangue e uma pele alucinantemente branca. O que os diferenciava, além da voz, eram as cores das roupas, embora os modelos fossem praticamente os mesmos.

A garota, Kanami, riu com o nariz para a careta da outra.

— Lembranças ruins?

— Não diria isso, mas talvez uma azia esquisita. Uma sensação, eu acho.

Sora empinou o nariz, colocando as mãos atrás do corpo.

— É natural que se sinta assim, pois naquela época você era um desperdício de espaço e tempo.

— Nossa, que cruel — Ryota riu, mas de um jeito sem graça, por saber que provavelmente era o que Sora realmente pensava dela. 

O gêmeo fez uma pausa.

— No entanto, agora, quando olho para você, depois de todas as coisas que aconteceram… Vejo que continua a mesma coisa.

A expressão de expectativa murchou no rosto dela e Kanami supriu outro risinho fraco.

— Não sei se amo ou detesto a sinceridade de vocês.

— Eu diria que é apenas uma de nossas várias qualidades — retrucou Sora, com um sorriso orgulhoso, balançando a franja lisa ao vento.

Kanami deu uma cotovelada no irmão, fingindo uma cara feia, antes de se aproximar um pouco mais de Ryota que ainda estava sentada em uma pedra.

— Problemas com o treinamento?

— Não, não é isso. Na verdade, as coisas correram bem. — Enquanto falava, continuava a abrir e fechar a própria mão. — Mas eu sinto que não é o suficiente. Consigo derreter as coisas quando toco, mesmo que só um pouco. Posso esquentar líquidos até certa temperatura, e, dependendo da situação, até consegui usá-lo em batalha. 

Kanami assentiu.

— Mas, pensando em tudo o que a gente enfrentou até agora, e nas coisas que podem vir daqui pra frente, e eu oro pra que nada pior do que isso venha, é claro… Se algo tão perigoso quanto uma Entidade surgir de novo, eu queria poder, ao menos, usar de isso de um jeito útil.

Não que todas as coisas que ela fazia atualmente fossem ruins, longe disso. Em algumas situações específicas, mesmo pequenos truques como aquele poderiam salvar a sua vida. Entretanto, quando pensava em como todos os outros ao seu redor eram muito mais fortes, mais rápidos e mais capazes do que ela… Aquilo e nada eram quase a mesma coisa.

Se Kanami conseguiu interpretar ou não o sorriso falso que Ryota dava naquele momento, não comentou. A guardiã se abaixou na mesma altura dela e pegou a mão que tanto insistia em mexer e olhar.

— Entendo como se sente. — Sua voz saiu num sussurro. — Imagino que deva ser difícil fazer tudo isso de repente, principalmente quando você sempre dependeu da brutalidade e de improvisos para chegar onde está.

Ryota apertou um dos olhos, se queixando internamente da crítica inconsciente feita pela gêmea. Os dedos polegares dela estavam quentes quando tocaram sua palma, fazendo pressão.

— Irei te ajudar.

— A-Ah… Sério? Não precisa fazer isso se for atrapalhar o seu trabalho, ou qualquer coisa assim. 

Ryota balançou a mão livre no ar, preocupada com a possibilidade de fazê-los perder tempo. Entretanto, Sora apenas devolveu o gesto.

— Acalme-se, não é nada demais. Além disso, é algo que minha querida irmã decidiu fazer sozinha, então apenas aceite sua gentileza em silêncio. Entendeu, cabeça oca?

— … Entendi, mas e quanto a você, cabelinho? Vai ficar matando tempo fazendo o quê? 

— Nada que seja da sua conta — retrucou ele, então deitou no gramado com os braços cruzados atrás da cabeça.

A garota torceu o rosto para aquela resposta dura e se concentrou em Kanami novamente. Percebendo que o irmão iria ignorá-las àquela altura, a gêmea indicou com a cabeça uma região mais afastada do jardim para que pudessem ficar mais à vontade. Na realidade, elas caminharam silenciosamente na direção da floresta logo ao lado da Casa Minami, passando pelas árvores.

Seus passos ficaram mais lentos e barulhentos conforme atravessavam a trilha fechada, pisando em galhos e folhas caídas. Ryota, logo atrás de Kanami, olhou por cima do ombro mais uma vez.

— Tem certeza que está tudo bem?

— É claro. Será mais rápido, também.

Ryota emitiu um som de compreensão e virou-se novamente, apenas para se encontrar sozinha na floresta. Então, ergueu o rosto e viu a gêmea de pé em cima de um ramo firme e seco de madeira. Ela levou o dedo indicador aos lábios e Ryota piscou algumas vezes quando a viu balançar a cabeça para o lado, como que pedindo para segui-la, então saltou de árvore em árvore.

Sem dificuldades para imitar os movimentos, Ryota estava logo atrás da colega, que se movia rápida e silenciosamente. Os pés dela mal tocavam a madeira e logo estavam sobre outro galho, que sequer rangia ou se movia ao toque. Enquanto isso, a garota de cabelos escuros se esforçava em manter o passo e imitá-la, embora fosse a única a criar um pouco de som.

Alguns minutos depois, ambas pararam juntas e desceram silenciosamente na mata.

— Fácil? — perguntou Kanami, a olhando de soslaio, antes de balançar os ombros. — Movimentar-se com velocidade e evitando chamar a atenção é um dos requisitos básicos de nosso treinamento na família Akai. Acredito que, ao menos, saltar e manter-se atenta tenha sido simples para você.

— … Acho que sim — respondeu Ryota, sem saber exatamente se seria correto apenas concordar. 

— Estamos a uma distância considerável de Puccón agora, então acredito que será o momento perfeito para te ensinar uma coisa.

Vendo-a fazer uma expressão de confusão, mas piscando para se manter atenta às suas palavras, Kanami saltou novamente sobre um galho consideravelmente mais baixo. Mas Ryota mal teve tempo para entender o que ela tinha feito quando, num piscar de olhos, um calor ardeu diante dela. Pedaços de madeira e pó se espalharam com a intensidade do poder. Uma fumaça branca preencheu seu campo de visão e o queixo dela caiu quando percebeu as marcas lisas dos pés de Kanami derretidas na madeira.

Guardiã essa que já tinha sumido do seu campo de visão, disparando na direção de onde haviam vindo.

— O que achou?

Ryota quase caiu quando ouviu a voz de Kanami surgir por trás.

— Muito maneiro! — Foi tudo o que conseguiu dizer ao ver a guardiã com um sorriso educado no rosto, mas claramente contente de tê-la impressionado.

— Certo. Agora, podemos começar?



Comentários