Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 16: Entrada para o Jantar Real

— Estou de partida. 

As palavras de Fuyuki chamaram a atenção dos quatro presentes no aposento. Os gêmeos assentiram prontamente, e, após trocarem um olhar que indicava uma comunicação silenciosa e rápida, o irmão mais velho deu dois passos à frente e postou-se logo atrás da mestre, flanqueando-a conforme a jovem andava decidida até a porta.

Mas ainda não segurou a maçaneta. Ela se voltou mais uma vez para o quarto:

— Permaneçam aqui ou em seus respectivos aposentos. Evitem se afastar dos corredores ou do salão de jantar. 

Fuyuki franziu a testa, um silêncio tenso pesando sobre o quarto.

— Tome cuidado — murmurou Zero, finalmente, com uma pitada de preocupação na voz. Mestre e guardião trocaram olhares, então ela agradeceu com a cabeça.

— Irei.

Kanami abriu a porta antes mesmo que Fuyuki erguesse a mão, então trocou olhares rápidos com ela, parecendo mais tensa do que realmente se permitia demonstrar, apenas para que a duquesa a tranquilizasse com aquele sorriso casual. A expressão ensaiada, que por vezes se tornava real, para que instigasse calma aos demais. Por enquanto, pareceu funcionar com a irmã mais nova, que voltou a se focar em seu trabalho de vigiar a porta quando a dupla saiu.

Por um longo tempo, o quarto da duquesa permaneceu em um longo e frio silêncio. Eliza, sentada numa das cadeiras perto da janela, curvou os dedos no colo.

— Será que ela vai ficar bem?

— Sim, ela vai — garantiu Zero, a voz soando certeira.

A curandeira torceu o rosto.

— É injusto que a tratem daquela forma. Como se não merecesse o posto, conquistado pelas próprias mãos e esforço... — Eliza fincou as unhas nas mãos brancas — Eles nem sabem nada sobre ela.

— Da mesma forma que julgamos os demais nobres da corte, eles a julgam.

Kanami interrompeu a conversa, recostada contra a parede logo ao lado da porta.

— Mas é diferente! — Defendeu a curandeira, colocando-se de pé e apertando as mãos no colo. — Estou perfeitamente ciente de que ninguém da nobreza é plenamente confiável, e que todos os líderes da corte... Da elite dos Fiore possuem suas ressalvas quanto a objetivos próprios e métodos.

Cientes de que o apontamento sobre o porte dos nobres em geral não estava tentando generalizar ou ofender nem a Zero ou a Kanami, os dois apenas ficaram em silêncio, esperando-a terminar de falar.

— Ainda que ela tenha confiado a própria vida e liberdade para destruir as Entidades... Ainda que a mestre tenha sacrificado tanto... Ainda que seja tão jovem, eles...! Eles...!

Uma mão quente segurou o ombro esquerdo da menina, a fazendo enrijecer o corpo e parar de tremer. Lágrimas brotavam de seus olhos âmbar quando se voltou para Zero.

— Liz, entendemos como se sente — O rapaz semicerrou os olhos. Kanami permaneceu em silêncio. — Desde o começo, quando ela ainda era apenas a herdeira da família, todos a viam dessa forma. Infelizmente, não há o que ser feito a respeito desse pré-conceito. 

Para Eliza, que conhecia rasamente como a alta classe funcionava, isso se tratando de como eram ensinados a se portar, o que deveriam valorizar e falar, os argumentos e reclamações dela se tornavam, obviamente, válidas, porém, seriam simplistas e até desonrosas caso chegassem aos ouvidos dos patriarcas e matriarcas. 

Não que todos os nobres fossem cegos em relação às mudanças, à evolução conforme o tempo passava, e que a chegada de novos anos demandavam novas táticas e costumes. Entretanto, poucos abriam mão do tradicional para receber a modernidade, principalmente quando ela rejeitava e destratava dos meios de seus antepassados. Atos voluntários como estes eram tão desonrosos que, para os mais velhos, eram motivo de espancamento e até de execução.

O que tornava certas famílias, como as dos Akai, extremamente perigosas e hostis, embora seus membros esbanjassem elegância, superioridade e o clássico porte nobre. Para isso, no entanto, era preciso suportar — não, era preciso aceitar os ensinamentos, as punições, os métodos e as palavras de seus antepassados como se fizessem parte deles.

Zero, que já fizera parte daquela sociedade, embora por pouco tempo, entendia perfeitamente como Fuyuki se sentia. Estivera em uma posição bastante semelhante, senão até pior. Uma das razões pelas quais havia virado tanto o rosto para seu passado, para a corte e para a nobreza, era justamente aquilo. Parecia besta, e era realmente muito besta, quando pensava em como ele havia fugido para tentar esquecer aquela antiga vida, enquanto Fuyuki, que desde o nascimento havia sido uma desgraça para sua família, estava até hoje de pé, lutando por ela e pelos outros.

— Portanto, tudo o que podemos fazer agora é apoiá-la. Precisamos nos tornar seus escudos e espada, quando necessário, mas, principalmente, sermos seus pilares que a auxiliarão no caminho pelo qual tracejará.

Zero inspirou fundo, apertando os lábios para as próprias palavras. 

Era exatamente isso sobre o que Sora estava falando da outra vez, não era?

— Chegará o dia — ciciou Kanami, abrindo os olhos que estiveram fechados por um longo tempo. — Em que todos a reconhecerão. Até lá... 

— Até lá... — repetiu Eliza.

Até lá... Não podemos dar mais nenhum passo para trás.

— Vai a algum lugar? — perguntou a guardiã quando Zero se afastou da curandeira em direção à porta. Ele sentia o olhar da jovem queimando em seu rosto, tentando ler suas intenções.

Zero segurou a maçaneta.

— Volto em um minuto.

Kanami o encarou. Então virou o rosto, permitindo que saísse do quarto e fechasse a porta logo atrás de si.

E, como se o estivesse esperando até aquele momento, a silhueta no final do corredor se moveu conforme o rapaz andava em sua direção.

***

O Debute, um apelido bonito dado ao primeiro dia da coroação, só encerrava após um jantar oficial no castelo. Os convidados, com seus respectivos guardiões os flanqueando logo atrás de suas cadeiras, conversavam sobre qualquer coisa até a chegada do rei e de seu filho herdeiro.

Iluminada por um enorme lustre com luzes amareladas e alaranjadas, a longa mesa de madeira lustrada portava exatos sete lugares; cinco já haviam sido ocupados, divididos nas laterais da longa mesa, enquanto duas nas pontas, de frente para todos, permaneciam vazios. 

Aperitivos e bebidas eram constantemente servidas por mordomos elegantes ou criadas simpáticas, que andavam de lá para cá, enchendo copos ou estendendo bandejas com queijos espetados em palitos, pequenos ovos ou churrascos temperados com limão e sal. Um cheiro êxtasiante, unido da música clássica que tocava ao fundo, anestesiava todos os presentes.

— Estão atrasados — disse, com irritação, uma voz grave e masculina.

— Ora, senhor Shin, não fomos nós quem chegamos antes do horário combinado?

Sofia apontou o fato, erguendo um dos dedos com unhas pintadas em azul, num sorriso cordial, observando de lado o homem com uma constante expressão carrancuda. 

— Os anfitriões possuem a obrigação de receber seus convidados pontualmente.

— Ahá! De fato, senhor Shin! — exclamou, do outro lado da mesa, um homem com olhos grandes e de braços cruzados.

— Está mesmo de acordo com isso, lorde Al-Hadid? — principiou Sofia novamente, torcendo os lábios sensuais. — Recordo-me de que foi o senhor quem chegou primeiro ao salão. 

— Hm! Sim, é verdade. Estive ansioso para nosso reencontro esta noite, senhorita Sofia!

Omar Al-Hadid, mais uma vez, concordou em voz alta, de um jeito que assustou a criada que passava silenciosamente atrás dele. Shin Akai franziu a testa para o quão alto sua voz ecoou pelo salão.

— Francamente, estou ciente de que em Polímia os costumes são divergentes de Thaleia, entretanto, fico surpreso em como lorde Omar insiste em ignorar as normas.

Os olhos cor de sangue avaliaram Omar por completo, esperando uma reação negativa para suas palavras. Uma alfinetada que deveria desencadear outra exclamação por parte do lorde, este que negaria o apontamento com energia, como sempre faria.

No entanto, Al-Hadid ignorou por completo Shin Akai.

— Ora, ora — riu Sofia — O senhor parece estressado esta noite, Shin. 

— E quanto à senhorita?

Sofia inclinou a cabeça em dúvida.

— A que se refere?

— Não se faça de desentendida — disparou Juan, sentando numa das pontas da mesa, uma taça de vinho erguida no ar por uma das mãos torneadas.

— Ora, mas não estou.

— Uma mulher como você, que sequer se deu ao trabalho de aceitar as cortesias do Debute, está impressionantemente calma. Mal tocou em sua bebida.

Um sorriso travesso despontava dos lábios de Sofia.

— Não sei aonde quer chegar, senhor Juan — ela deu de ombros, simplesmente, dando um olhar de esguelha para o homem, que estava plenamente ciente de que aquilo não era verdade — Estou apenas me contendo. Detestaria ter que me embebedar tão cedo.

Sua unha comprida deslizava pela beira da taça quando Omar riu:

— Está corretíssima, dona Sofia! 

Shin apertou os olhos para ele, contendo um grunhido.

— O que decido ou não me envolver não tem nada a ver com você, senhor Juan — disse Sofia, ainda com um sorriso enigmático.

— Por que aceitar o convite de Sua Majestade, então? 

— Seria deselegante não comparecer. Além disso, a convocação foi obrigatória, então é natural que eu os agracie com minha presença. 

— No entanto — insistiu Juan, após trocar olhares com a moça, um ato que indicava uma forte dubiedade em relação a tudo que ouvira. — Este caso, em particular, não se aplica a você. Diga-me, dona Sofia, o que a interessa tanto em Hera, a ponto de deixar Urânia, sua instituição e tantos outros compromissos apenas para prestar presença em um evento como este?

O gelo tilintou na taça de bebida de Juan quando Sofia estreitou os olhos de forma divertida, completamente ignorante à tensão que se estabelecia. A mulher apoiou o rosto na parte superior da mão, os seios se apertando contra a beirada da mesa. 

—  Vai um pão cremoso, aí?!

Erguendo-se da cadeira de uma forma que quase a fez cair para trás, Al-Hadid exclamou estendendo um pão recheado com algo branco na direção dos outros da mesa. 

— Eu quero! — Sofia exclamou de volta, a voz um pouco mais alta que o normal, erguendo a palma da mão pra cima num sorriso.

Juan deu mais um olhar para ela antes de se concentrar na própria bebida, quase rugindo para a mosca que estava calmamente sentada em sua taça.

Quando as portas duplas do salão de jantar se abriram, todos os olhares se voltaram para a jovem que entrou sem um pingo de incômodo ou constrangimento, acompanhada de um rapaz tão resguardado que poderia se unir às sombras e fingir que não estava ali.

A guardiã que acompanhava Sofia abriu um dos olhos de onde estava para acompanhar Sora até seu lugar, logo ao seu lado. Ele não retribuiu o olhar.

Os líderes estavam todos sentados à mesa, enquanto seus guardiões, os imediatos e mãos direitas de seus mestres, permaneciam atrás deles, de pé contra a parede, os braços atrás das costas bem eretas e rostos atentos. Com a chegada da duquesa, haviam dez pessoas no total.

Fuyuki Minami ocupou seu lugar em silêncio, o som de suas botas sendo o único som ecoando pelo salão antes que se sentasse. Sofia manteve-se concentrada na própria comida, assim como Omar, que mastigava quase que em voz alta; Juan prendeu os olhos na jovem, enquanto Shin ficou de olhos fechados, como se meditasse, mas sentisse e visse perfeitamente tudo à sua volta. Todos os demais Akai — Sora e a guardiã de Sofia — o imitavam. Ou melhor, permaneciam na mesma pose, talvez treinada, talvez um costume passado de geração em geração.

— Um pouco atrasada, não acha? — Juan atreveu-se a perguntar, por cima do clima que se estabeleceu, a música de fundo completamente alheia aos ouvidos deles.

Fuyuki não se deu ao trabalho de olhar para ele.

— Cheguei pontualmente ao jantar — respondeu ela, inexpressiva.

— O horário pontual das pessoas de Hera é particular? Estava surpreso que os anfitriões, sendo da família real, cometessem uma atrocidade dessas, mas os convidados?

O homem balançou a cabeça, murmurando as críticas.

— Ora, senhor Juan, não seja tão rude — interferiu Sofia, movendo o dedo indicador para cima e para baixo, então o apontando por cima da taça de vinho para a duquesa, sentada logo ao seu lado — Ignore o temperamento dele. Talvez a idade o esteja tornando rabugento. Mais do que já era.

Fuyuki olhou para a moça ao lado com os lábios apertados.

— Hm! É verdade que a idade torna as pessoas rabugentas! Bem apontado, dona Sofia!

— Você só sabe concordar com as pessoas como um sujeito bastante ingênuo, não acha, lorde Al-Hadid? — Shin arqueou uma das sobrancelhas para o homem sorridente, que insistia em erguer a voz.

— Não pode ser muito mais nova do que eu — Juan apoiou o cotovelo na mesa.

Sofia cobriu os lábios com uma das mãos.

— Não se deve perguntar a idade de uma dama, sabia?

— Nenhuma dama no mundo se constrangeria em esconder a verdadeira idade quando ela é realmente jovem. Ainda mais com uma língua tão afiada.

— Ora? No entanto, senhor Juan, se bem me recordo, foi o senhor quem insistiu em nos direcionar palavras de baixo calão e provocações sutis, o que deve ser esperado de um comandante de um exército meia-boca, não concorda? 

Os olhos verde azulados de Sofia piscaram tímida e inocentemente para o lado, como se tivesse dito um fato há muito conhecido e nada ameaçador, mas que pareceu irritar muito Juan, que apertou a taça em mãos, a fazendo rachar.

— De toda forma — continuou Sofia, com o sorriso enigmático de sempre no rosto, enquanto erguia o dedo indicador e do meio para cima, interrompendo o movimento veloz das sombras, o vento balançando seus cabelos — Já que Sua Alteza acaba de chegar, que tal interrompermos nossa trivial discussão, senhor Juan? Pode acabar estragando o jantar.

Sofia riu com a garganta para Juan, que fitava irritado a moça, com os dois respectivos guardiões tendo sacado suas armas e exibindo uma aura hostil, encarando-se por trás dos seus mestres. 

Fuyuki ergueu os olhos para a jovem atrás de Sofia. Era uma mulher de cabelos negros curtos, que colavam logo no meio do pescoço, e possuía uma longa franja que cobria seu olho direito, chegando ao queixo. Seu olho vermelho sangue estava estreitando numa linha fina, sem qualquer sinal de hostilidade, a não ser pela mão que havia parado na cintura, onde, por baixo do longo vestido preto, devia ocultar uma faca, ou qualquer coisa do gênero. 

Ela encarava o guardião de Juan, um homem bem apessoado de corpo forte, músculos transbordando de suas vestimentas, o cabelo de cor rubi era despontado, mas os olhos puxados de cor basalto indicavam grande experiência em combates. Não parecia do tipo que perdia o controle facilmente, e sequer havia levado as mãos para o corpo em busca de uma arma, porém, os dois passos que dera na direção do mestre, os olhos fixos na guardiã em frente, deixava claro sua intenção defensiva.

Ouvindo suas palavras, a guardiã de Sofia foi a primeira a recuar para seu posto, mantendo a guarda, os olhos ainda fixos nos outros dois homens, quando o outro guardião a imitou.

— Que noite agradável.

— Sim, sim! É mesmo! Ah! Será que interrompemos algo?

Edward Fiore adentrou no salão, quase que ao mesmo tempo que seu pai, Fanes, logo percebendo o clima pesado e passando os olhos alaranjados por todos os presentes, que prontamente se curvaram com a cabeça, quase que ao mesmo tempo, à sua chegada.

— Está tudo em ordem — tranquilizou Sofia, abanando a mão no ar.

— Sim! Com certeza! — Omar, como sempre, afirmou prontamente as palavras da moça, e acenou de um jeito nada formal ou educado para o monarca, que retribuiu o cumprimento.

O aceno foi interrompido por um cutucão nas costelas de Fanes, que fez uma careta de incômodo para Miura, logo atrás dele, flanqueando-o com a mesma inexpressividade e rigidez de sempre. Ryota permaneceu em silêncio logo atrás de Edward, sem receber qualquer sinal ou ordem dele, então, imitando Miura, e lembrando-se do que fora ensinada a fazer, deu a volta com o príncipe pela longa mesa até seu posto atrás do mesmo. 

Ao longo do caminho, vários olhos despontaram em sua direção. Uns, avaliativos, outros, completamente desconfiados. Apenas o de Sofia parecia surpreendentemente... Neutro. Ryota não soube dizer pela pequena troca de olhares se ela a havia reconhecido, embora um arrepio frio tivesse percorrido sua espinha.

— Certo, certo! Atenção, pessoal! — Batendo palmas como se chamasse a atenção de um bando de animais para uma refeição e não pessoas civilizadamente sentadas, Fanes sorriu abertamente para todos os presentes e esticou os braços perante a mesa — Que o jantar do Debute comece!

O ronco da barriga de Ryota soou ao mesmo tempo em que as centenas de criados irrompiam pela outra porta do salão, fazendo uma grande comoção.



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