Volume 3 – Arco 3
Capítulo 15: Uma Mentirosa Perfeita
A caminhada silenciosa e estritamente densa foi incômoda. Era quase fisicamente dolorosa para Ryota, que precisava reter as aparências, manter o espírito calmo e a expressão o mais neutra possível, enquanto seguia com um dos braços cruzados ao do homem responsável por quase matar Marie.
Apenas lembrar-se daquilo a fazia ferver por dentro. Quase podia garantir que queimaria de dentro para fora, de preferência, derretendo e fazendo Miura se tornar cinzas aos seus pés. Sua mente fervilhava com mil e uma formas de matá-lo, remoendo cada vez mais o nojo. Seu braço estava tenso naquela posição, o calor dele era desconfortável. Repugnante. E o guardião sabia disso.
Ryota percebeu como ele lhe dava olhares laterais vez ou outra, como que ciente de seus sentimentos internos, por mais serena e pacífica que parecesse por fora.
— Sua respiração está desenfreada, senhorita.
O jeito que ele a chamava também era irritante. Lembrava-a de um certo alguém, mas, por alguma razão, era mil vezes pior quando saía de sua boca.
Com todo o auto-controle que conseguiu manter, Ryota respondeu com um sorriso duro:
— É apenas ansiedade.
Miura assentiu com condescência.
— Estar em meio à alta classe deve ser, de fato, motivo de muita apreensão para pessoas como a senhorita.
— Longe disso — Ela apertou um pouco o aperto no braço, de forma que esperasse transparecer a sua irritação — Me acostumei com isso enquanto estive com Fuyuki.
Um riso, que pareceu involuntário, escapou dos lábios de Miura.
— Aquela garotinha não possui um décimo da nobreza ao qual acredita cegamente viver. Em realidade, ela é uma grande piada.
Ryota prendeu a respiração, então a soltou devagar. Uma veia saltou de sua testa.
— Acredite em mim, senhor Miura: A Fuyuki é muito mais incrível do que parece.
— ... É o que veremos.
Ela não tinha muita ciência sobre como era a relação na alta sociedade, se os nobres realmente viviam em uma grande rinha, buscando rebaixar uns aos outros o máximo possível com palavras bonitas e gestos tão delicados que se tornavam sutilmente hostis.
Ryota tinha presenciado na pele o quão assustador e perigoso um Akai podia ser, e, se Miura demonstrava tanta tranquilidade naquele momento, e ainda assim parecia ameaçador... Engoliu em seco só de pensar. Na verdade, o que vinha à mente era a cena da cela, no entanto, tentou afastar imediatamente a cena e se concentrou no que viria à frente.
Não precisava se preocupar tanto com Marie. Embora ela ainda estivesse enjaulada naquele lugar podre e frio, e Ryota desejasse muito poder visitá-la, precisava ser paciente. Seria um grande problema caso maus olhos, ou maus ouvidos, descobrissem o que estava fazendo e tentassem tirar vantagem dela ou de Edward — embora Ryota suspeitasse muito que alguém pudesse ameaçar o príncipe. Mas nada garantia o contrário, principalmente agora que tinham firmado um voto.
Além disso, Edward havia dado sua palavra que garantiria a liberdade de Marie, embora não houvesse dado um tempo limite ou data específica. Ryota corroeu-se com a ideia dele tentar chantageá-la, porém, logo lhe ocorreu que o voto duraria somente até o fim da coroação. Ou seja, até o final de semana, o que, em teoria, significava que Ryota conversaria com seu avô e veria Marie livre até lá.
Um cutucão do cotovelo de Miura a acordou para a realidade. Foi rápido, e ele indicou com discrição para algo à frente usando o queixo. Os olhos de Ryota se arregalaram quando a figura que se aproximava a passos lentos, a retaguarda preenchida de guardas, surgiu diante deles.
Era um homem com um semblante gentil. Os cabelos e olhos em cores alaranjados pareciam destacar-se perante a luz do sol de igual tonalidade. Emitia uma aura simpática, um sorriso largo conforme andava, quase saltitando.
A primeira impressão que Ryota teve do rei de Hera... Não foi exatamente o que esperava.
Ele deslizou o olhar pelo corredor. Então finalmente os avistou se aproximando, e, por alguma razão desconhecida e de um jeito que fez a garota ficar completamente sem graça, o soberano se aproximou a passos rápidos. Os olhos dele brilharam para Miura, que manteve uma inexpressividade admirável diante de um homem maduro, quase na casa dos quarenta e poucos, que agia como um menino de dez.
Ryota se esforçou muito para não rir, mas seu queixo caiu um pouco.
— Aaah! Olha só quem está aqui! — Fanes gesticulou com as palmas para cima — Miura e acompanhante!
— ... Acompanhante?
— Vossa Majestade, por favor, evite erguer o tom de voz.
A forma educada com que Miura repreendeu o rei surpreendeu ainda mais Ryota, que se sentia completamente deslocada. Fanes, percebendo que estava praticamente gritando no corredor, cobriu a boca de um jeito bobo antes de endireitar a postura. Ato que parecia muito bem ser apenas treinado para que o soberano não passasse vergonha diante de seus súditos.
— Mil perdões.
— Majestade, o senhor não deveria pedir- Oh, esqueça — Miura desistiu de tentar corrigir os modos dele, então pigarreou — Está a caminho de seus aposentos?
— Exatamente. Preciso de um traje exuberante para o jantar de hoje à noite. Afinal...
Quando Fanes tocou as bochechas com as próprias mãos, Miura praticamente leu em sua mente as palavras que viriam, então fez um gesto com a própria palma para que parasse de falar.
— Sim, sim. Haverá um esplêndido jantar, de fato.
Ele ergueu um músculo da maçã do rosto, fazendo seu olho semicerrar. Fanes ignorou por completo o tom de voz e a expressão claramente incomodada do guardião.
— Seria um desastre caso sujasse minhas roupas com comida, não acha?
Ryota percebeu que ele estava falando com ela, e engasgou.
— A-Ah, sim. Uhum, claro. Seria um desperdício de comida.
Só percebeu que tinha falado besteira quando a dor em seu braço percorreu seu corpo, Miura beliscando sua pele com raiva pela resposta nada...
— Exatamente! Seria uma pena!
... Porém, Fanes concordou imediatamente com o apontamento, fazendo Miura bufar, praticamente escondendo o rosto atrás da mão de vergonha. Ou cansaço, mesmo. Por sorte, ou talvez por estarem acostumados, os guardas que estavam na retaguarda do monarca permaneciam com o rosto neutro em relação às falas e jeito dele.
— Tantos pratos preparados com tanto cuidado pelos meus queridos chefs... Sim, sim, seria mesmo uma pena — Fanes cruzou os braços e assentiu sozinho, até que parou olhando para cima, então baixou o rosto focando em Ryota — E quem é a senhorita, mesmo?
Só agora me reparou?!
— Eu sou...
Por mais descontraído que o ambiente estivesse, por mais bobo e gentil que Fanes parecia, por mais condescente que Miura agisse naquele momento... Estava sendo testada. Para ver se era capaz de atuar corretamente, de ingressar como esperado dela na alta sociedade, de manter as aparências como o príncipe Edward exigia dela.
Por isso, quando começou a falar num murmúrio, acabou hesitando e parou, fechando os lábios para pensar melhor. Não deveria fazê-lo, na realidade. Faria com que o monarca duvidasse dela, e acabaria ainda mais com a consideração e expectativa de todos sob si. Por mais estúpido que fosse, esperava poder cumprir com isso. Fazer o que esperavam dela, honrar a lealdade de Zero, a confiança de Fuyuki, e as esperanças, ainda rasas, de Edward.
Ryota inspirou fundo pelo nariz, endireitou a postura e, imitando o máximo que podia da duquesa Minami, ergueu o queixo, piscou com simpatia antes de fazer uma reverência.
— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Vossa Majestade — disse, assim que se endireitou novamente, com um sorriso educado no rosto. Os olhos se estreitaram, não de um jeito cínico, mas da forma que Fuyuki costumava fazer quando conversava com ela em momentos sérios — Me chamo Ryota, e sou, como disse anteriormente, uma acompanhante do senhor Akai. É uma honra estar aqui.
Foi menos pior do que ela imaginou que seria. Talvez as palavras ainda não fossem de alto cunho, e a forma que se curvou durante a reverência não tivesse sido direita o suficiente. Entretanto, sua apresentação desastrada e que nem chegava perto do nível de treinamento e educação dos demais nobres pareceu passar despercebida por Fanes, que emitiu um som de agrado com a garganta, e sorriu largamente.
— Certo, muito obrigado. Fico feliz que faça parte de um momento tão importante na vida de nosso país, e de nosso mundo, também — O monarca abriu os braços ao falar, como se pudesse gesticular o que dizia — Espero que aproveite o evento e o jantar esta noite. Garanto que não se arrependerá de ter vindo!
Fanes balançou os ombros com ânimo, fazendo Ryota abrir um sorriso genuíno.
Até que ele é legal... Comparado com certos príncipes aí.
Ryota torceu para que o clichê de espirrar ou da orelha esquentar quando se fala de alguém pelas costas funcionasse agora. Já imaginava feliz a cena acontecendo quando uma voz interrompeu seus pensamentos:
— De toda forma, creio que é melhor não o atrasarmos por mais tempo.
Para dar mais ênfase às próprias palavras, Miura empurrou com toques rápidos as costas de Ryota, que se viu sendo praticamente arrastada para a frente. Fanes desfez o sorriso ao perceber que não era um ato voluntário dela, mas ao ver a garota dar um sorriso sem graça, como que pedindo desculpas silenciosamente, o monarca inspirou fundo e assentiu, pondo as mãos atrás do corpo.
— Sim. Bem, nos vemos mais tarde, então! Miuraaa! Nada de roupas brancas, hein?!
— Como se eu pudesse usá-las... — murmurou ele consigo mesmo, entredentes, num sorriso raivoso, sem olhar para o homem que acenava animadamente enquanto se afastavam. Não demorou muito para que os passos dos guardas marchando pudessem ser ouvidos à distância, então sumissem conforme atravessavam os corredores em direção aos aposentos do rei.
Houve um instante de silêncio entre a dupla que, agora, andava lado a lado, sem a necessidade de estarem próximos de forma necessária. O que foi um alívio para Ryota. Passar um tempo a sós com aquele cara já era terrível o suficiente ao lado de outras pessoas. Sozinha, então...
Mas ficar de boca fechada era mais tortuoso do que qualquer coisa no mundo naquele momento, então, quando a garota abriu os lábios...
— Nem. Uma. Palavra. — Parecendo ler a mente dela, o guardião prontamente repeliu suas perguntas e prováveis afirmações estúpidas. Ryota engoliu em seco e desistiu de comentar sobre Fanes Fiore com seu jeito curioso de ser.
Ela dilatou as narinas e desviou o olhar, esperando não receber um puxão de orelha por admirar a paisagem do jardim do palácio pelas vidraças muito bem limpas. O sol desaparecia lentamente no horizonte, ainda em tons amarelos e laranjas, despontando por todo o castelo de Hera e seus criados, quando a dupla parou diante de uma porta de madeira dupla. Sem qualquer explicação, ou olhar que indicasse qualquer coisa, Miura a empurrou para dentro.
Assim que Ryota entrou, as portas se fecharam atrás dela quase que automaticamente.
Era a primeira vez que via um salão de treinamento. Era um lugar grande, as paredes de pedra eram altas e possuiam lustres pendurados no topo. O chão, apesar de muito bem limpo, ainda tinha traços de linhas gastas de tanto andarem com armaduras e botas para lá e para cá, a cor branca desbotando num cinza, agora.
Inúmeras armas estavam dispostas nas mesas encostadas contra as paredes, que também tinham algumas facas, espadas e adagas penduradas por tamanho e modelo. Pareciam ter sido feitas com um material absurdamente resistente, e, apesar de ser uma completa leiga no assunto, Ryota as achou belas. Lembrava-se casualmente das facas que Zero portava, e das armas de Sora e Kanami. Também haviam sido feitas sob demanda, aparentemente. Embora aquelas ali dispostas fossem básicas para qualquer tipo de treinamento.
Talvez fosse esperado que os guardas soubessem usar todas. Afinal, em batalha, nunca havia a garantia de poder escolher a hora, o lugar e a arma com que lutaria. Isso se tivesse uma em mãos.
Alguns arcos estavam pendurados no fundo do salão e a boca dela se escancarou pela primeira vez.
Caramba, que maneiro!
Ela nunca tinha visto um arco de verdade. Nunca teve a chance de olhar um de perto, o delineado em formato curvo de seu corpo, o jeito que parecia leve e, ao mesmo tempo, letal, com suas flechas praticamente implorando para serem pegas da aljava. Esta que, inclusive, era feita de um couro muito bonito e gelado ao toque.
— Era de um antigo guerreiro — disse Miura de repente, percebendo seu fascínio pelo arco. Ela não se virou, apenas continuou a passar com muito cuidado o dedo pelo couro da aljava, com medo de que pudesse derrubá-la ou sujá-la — Ele morreu em combate.
— E ainda assim trouxeram isso de volta? Não é muita falta de consideração?
— Mortos não precisam de armas — Miura arqueou uma sobrancelha, virando-se para um dos mostruários de espadas, então pegou uma mediana, fazendo movimentos lentos com os pulsos para os lados, como se a testasse. — Os vivos, sim. Ao menos se tornou útil de novo.
Ryota torceu a boca para a conclusão que ele chegara, mas não queria discutir sobre aquilo. Embora discordasse por completo do argumento, embora o arco estivesse praticamente intacto — tirando alguns arranhões e marcas de uso —, era completamente leiga no quesito guerra. Principalmente nas que envolviam armas. Falar sobre honra, consideração, respeito... Com um Akai, principalmente, parecia idiotice.
Certo, foi um pensamento presunçoso, e uma grande ofensa aos gêmeos, então Ryota prontamente se corrigiu: Falar sobre isso com Miura era uma estupidez completa. Só ouvir sua voz era motivo para sua garganta arder, seca, e os olhos lutavam para não se revirarem.
— E o que é que viemos fazer aqui?
— O que acha?
A espada voou em sua direção do completo nada, então foi uma completa luta para pegá-la no ar sem o perigo de agarrar em sua lâmina ou derrubá-la. Ryota suspeitou que, se cometesse tal erro, seria cortada ao meio pelo guardião sem hesitação.
Segurando de um jeito completamente torto e inexperiente a espada, a garota não sentia exatamente o peso dela, e manejá-la parecia fácil, a princípio. No entanto, quando trocou olhares com Miura, esperando uma explicação, ficou claro como o dia o que fariam quando ele saltou para o ringue, a areia se erguendo sob seus pés como que o recepcionando mais um dia.
— Ande logo.
— É sério que vamos lutar com espadas?!
À resposta dela, claramente inconformada com a situação, Miura revirou os olhos de um jeito que lembrou Sora.
— É claro, gênia.
— Mas eu não sei usar uma espada!
— Então aprenda.
— ... Fácil falar, né?
Numa careta desgostosa, Ryota bufou para a conclusão direta e rápida que o guardião chegou, tão típica que ela se perguntou o motivo de não ter percebido isso antes. Manejou a espada para os lados, girou os pulsos com ela, então virou a lâmina para si, o reflexo a encarando de volta.
— Um guardião de verdade — exclamou Miura, brincando com a espada como se fosse um lápis — Precisa saber um pouco de tudo! Se não quer se tornar uma chacota nacional e perder ainda mais sua dignidade como o ser humano incompetente e ignorante que é, desça aqui imediatamente!
O pé de Miura bateu no chão com tanta força que o solo tremeu, erguendo mais poeira no ar. As partículas se agitaram quando chegaram perto de Ryota, que, após olhar mais uma vez para a espada, prendeu a respiração e saltou para a arena. Ela apertou os lábios. O ringue era razoavelmente grande para os combatentes poderem andar e serem lançados contra as paredes, baixo o bastante para não acertar os prováveis telespectadores que deveriam ficar no andar superior, e largo de um jeito que os lutadores podiam rodear um ao outro, como felinos observando a presa.
O ato silencioso da garota pareceu agradar Miura, que ainda girava a espada em mãos. Não combinava com ele, por alguma razão. Assassinos não deveriam portar armas tão grandes, imaginou Ryota. Não que fosse um bom momento para considerar aquilo, uma vez que o Akai à frente parecia completamente à vontade. E ela, em comparação, ainda lutava para encontrar uma pose adequada. Deveria estar cheia de aberturas, o rosto estampado com sua perturbação. Em desvantagem completa.
Se fosse um combate corporal, não haveria problema. Ryota era bastante habilidosa, embora tivesse pouca experiência. Ainda assim, não tinha se recuperado por completo dos ferimentos na cela, e seu chi ainda parecia se mover preguiçosamente por seu corpo. Imaginou que seria um pouco desonroso usá-lo naquele combate, em especial, quando estava claro que era um primeiro teste. Para ver como se sairia portando uma arma.
Se for isso mesmo, me ferrei.
— Olhos atentos.
Ryota só percebeu a presença de Miura à sua frente quando chocaram as lâminas, o tilintar delas ruindo em seus ouvidos. Foi por pura sorte, ou talvez proposital devido ao jeito que ele avançou, que tivesse se defendido, encurtando os braços, lutando para manter-se equilibrada.
— Postura.
Um passo para trás, então o guardião girou num golpe duplo, a espada passando por cima e, logo em seguida, uma rasteira que a fez tropeçar quando se agachou. A lâmina cortou alguns de seus fios escuros no processo.
Ryota trincou os dentes quando chutou a lateral de Miura, mas foi rapidamente bloqueada pelo braço dele, aproveitando-se do impulso que o levou para a esquerda enquanto rasgava a pele dela na barriga. Contendo o chiado de dor, o sangue se aglomerando nas suas roupas novas, voltou a avançar de forma desastrada com a espada, mais jogando-a para os lados que usando-a propriamente.
— Maneje-a!
A exclamação de Miura veio junto de uma fincada da espada dele em sua coxa, quase a fazendo se ajoelhar. Após uma boa troca de golpes, eles se afastaram. Miura, plenamente limpo e atento; Ryota, sangrando, portando com ainda mais dificuldade a arma. Os ferimentos estavam abertos, ardendo brutalmente, o sangue se alastrando cada vez mais, a fazendo arfar com a boca.
— Já acabou?
— ... Tô só começando, relaxa — sibilou ela num sorriso desafiador, embora estivesse claro como o dia que não havia chances de vencê-lo naquelas condições.
Ryota inspirou fundo pelo nariz, então expirou pela boca, enrijecendo o corpo e preparando-se para o que viria a seguir. Então ela saltou na direção dele, fazendo areia voar para trás, como um jato. E passou por baixo da espada que passou cortando o ar ao se lançar no chão, escorregando para trás dele. Mas é claro que Miura não era estúpido o bastante para não se proteger de um ataque daqueles, então, logo quando manejou a espada contra o guardião, uma adaga de luz violeta brotou de sua manga, impedindo o corte.
Os olhos deles se encontravam bem perto agora. Havia um liso fio de luz nos olhos de Miura, que fez os pêlos da nuca da garota se arrepiarem. Foi como num dejavú bastante desagradável que sua espada, após o pulso ser contorcido para o lado, voou para longe, fincando na areia, e a lâmina da arma branca se postasse contra o pescoço dela. Estava respirando com dificuldade àquela altura, e inspirar por si só já requeria um esforço glorioso por parte dela.
Um pequeno movimento de respirar bastou para que a adaga, encostada contra seu pescoço, fizesse um corte superficial nela, manchando-a em sangue vermelho quente. Ryota quase implorou mentalmente para que estivesse com chi o suficiente para derretê-la, mas nada aconteceu.
— Você é resistente e fisicamente forte — disse Miura quando recuou, Ryota tocando o local cortado com os dedos calejados — Mas é inexperiente demais para compensar qualquer uma de suas outras dez mil falhas, mentais e corporais.
Obrigada pelo elogio.
Engolindo o pensamento sarcástico, que Miura praticamente ouviu em voz alta ao ver sua expressão de desconforto, o guardião limpou a adaga com um lenço antes de guardá-la de volta na manga.
— Ainda falta muito para se tornar uma guardiã minimamente aceitável.
Ryota franziu a testa, puxando um dos cantos da boca com aquelas palavras. "Tempo" não era algo que conspirava a favor dela, infelizmente. Tinha pouco tempo para provar seu valor ao príncipe, ou ao menos fingir o suficiente para convencer os outros ao redor dele.
— Desse jeito, se tornará um estorvo constrangedor durante o jantar.
— Eu sei — ela conseguiu murmurar, fechando a expressão, contemplativa — Preciso fazer melhor que isso.
— Uma fachada perfeita. É isso o que precisa ser.
— ... Uma mentira perfeita, não é? — Ryota quase riu, então olhou para o homem que desejava muito poder matar agora mesmo com as próprias mãos. O silêncio entre eles se dissipou com as palavras roucas dela — Não quero ser um estorvo, não quero preocupar ou causar problemas a ninguém.
Ela baixou a mão que tocava o ferimento em seu pescoço, o sangue escorrendo por seus dedos pálidos de fraqueza.
— Se eu puder cumprir com as expectativas de todos eles... Não me importo de me tornar uma mentirosa perfeita.
São só palavras bonitas, era o que estava escrito na cara de Miura. Mas, por mais que assim fosse, pareceu ser o suficiente. Afinal, era assim mesmo que deveria agir, não é? Uma fachada para o mundo, e para ela mesma. A mentira começava ali, consigo, para então se espandir ao mundo.
Miura lançou a espada fincada para ela — desta vez, Ryota a agarrou perfeitamente.
— Vamos recomeçar.
Ainda tinham muito o que ensaiar.
***
O tratamento dos curandeiros terminou rapidamente, embora os cortes e rasgos ainda manchassem sua pele. Cicatrizes brancas e beges, nas mãos e ombros, pernas e braços, eram ocultas por sua roupa. Era o mesmo modelo que tinha sido dado à ela por Edward antes. Aparentemente, haviam feito vários para o caso do treinamento causar estrago à elas. Ryota decidiu que trocaria a roupa durante o combate, já ciente de que Miura podia ser bastante "afiado".
De frente para o espelho nos próprios aposentos, olhou para a tatuagem em seu pescoço e torceu os lábios. O brasão da família real agora parecia um desenho feito na sua pele. Uma marca do que era agora. A quem pertencia no momento. Uma pessoa amarrada à outra por necessidade. Para cumprir com um desejo egoísta, algo que poderia muito bem ter sido solucionado de outra forma.
Teria havido outra forma? Provavelmente. Talvez Ryota pudesse simplesmente ter encontrado Albert durante um outro momento mais oportuno, encarando-o diretamente. Ele a reconheceria, com certeza. Não havia mudado tanto assim ao longo dos últimos... Dez anos. Certo, talvez ela tivesse mudado um pouco, sim. Mas, se estivesse usando aquela jaqueta vermelha, a mesma dada por ele de presente há tanto tempo... A reconheceria, com certeza.
Podia ser mais uma esperança vazia. Ryota sempre as criava, como se elas pudessem se tornar reais, mas eram tão pesadas de carregar quanto todas as cruzes, quanto todas as vidas que havia deixado para trás. Todas as pessoas que haviam se sacrificado por ela, dando a vida ou a própria honra, para que ela vivesse, para que fosse feliz, para que... Para o que mesmo?
Ryota não era ninguém, na verdade. Era só uma garota aleatória de um vilarejo, que sobreviveu por sorte — uma sorte chamada Jaisen, Zero e Sasaki —, que vinha sendo levada pelos eventos, carregada pelos outros, sem saber aonde ia e nem por quê. Ela se perguntava quantas pessoas no mundo faziam o mesmo. Seguindo a maré, sem se importar de verdade com o que viria depois. Sonhos que pareciam bonitos de se pensar, mas eram um completo vazio quando pronunciados em voz alta, quando era necessário traçar todos os passos até lá.
Quando foi que se tornou assim?
O reflexo da pessoa que a olhava agora, usando aquelas roupas que nem eram dela, nem faziam parte dela... O que Ryota era, naquele momento, se não uma grande charlatona? Mentia para os outros, para si mesma, para o mundo. Seguia com coisas tão triviais em mente... Com objetivos simples, mas sem saber como alcançá-los, temia pensar nas possibilidades, nos "e se".
E se ele não me reconhecer?
E se o vovô for realmente o culpado?
E se... Ele esperava que eu morresse no atentado?
E se... Eu realmente tivesse morrido? Teria sido melhor?
Ryota deu um salto quando batidas soaram na porta. Tinha chegado a hora.
Quando saiu do aposento em silêncio, não disse nada enquanto andavam em direção ao salão de jantar, mantendo-se lado a lado com uma das pessoas que mais odiava no mundo. Alguém que adoraria poder espancar, cortar e admirar o sangue em suas mãos.
Os pensamentos sujos dela eram ocultados pelo sorriso formal em sua face, os olhos semicerrados como era de se esperar de alguém da alta classe, alguém que exalava poder e elegância. Se Miura percebeu algo nela, se percebia a enxurrada de perguntas, sentimentos e dor que se debatiam dentro dela, não demonstrou. Talvez a aura dela ainda estivesse meio pesada. Precisava melhorar em disfarçar isso.
***
— É uma bela noite, senhorita Minami.
Se o cumprimento do homem bem-vestido inteiramente de preto soou com algo além da formalidade básica, Fuyuki ignorou. Ela prontamente fez um cumprimento de cabeça, percebendo que Sora, logo ao lado dela, fez o mesmo com uma simulação de respeito, embora claramente estivesse com a atenção focada na pessoa ao lado do guardião do rei.
Miura Akai era um homem de poucas palavras, apenas se dispondo a falar quando era estritamente necessário, principalmente diante de várias pessoas. Naquele momento, em especial, seu porte era claramente obrigatório, e teria dito as mesmas palavras para qualquer outro nobre daquela casa que tivesse encontrado antes.
Os olhos esmeraldas de Fuyuki, após endireitar a postura, deslizaram para a acompanhante familiar. Não houve qualquer sinal de reconhecimento na expressão da duquesa e de seu guardião, embora, internamente, soubessem quem ela era.
Os cabelos negros amarrados, o olhar azul disperso e o sorriso educado não eram costume dela, no entanto. O esforço em parecer educada era evidente, mas não forçado. Parecia tudo perfeitamente calculado — dito isto, apenas Fuyuki e Sora perceberam tamanha mudança devido saberem como ela normalmente agia. Foi uma surpresa a garota não ter exclamado o nome deles, ou corrido para abraçá-los com um sorriso no rosto, como normalmente faria.
Tudo o que Ryota fez ao vê-los foi acenar com a cabeça, da mesma forma que os dois haviam feito para Miura um segundo antes.
A troca de olhares entre a duquesa e a acompanhante durou alguns instantes, até que o guardião, claramente numa posição de superioridade à garota, indicou com o braço livre para que a duquesa fosse na frente. Fuyuki finalmente quebrou o contato visual, agradecendo silenciosamente a oferta, e voltou a andar com uma calma controlada.
Logo à frente, após descerem as escadas circulares, seguiram pelo corredor, andando pelo tapete vermelho em direção às portas duplas já entreabertas do salão de jantar. Uma luz amarelada saia pela fresta, mas quem se adiantou a abri-la foram os dois guardas que estavam a postos nas laterais, fazendo uma reverência para as duas duplas assim que chegaram.
O jantar do Debute estava prestes a começar.