Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 12: Por Trás das Celas

Quando Edward deu um último suspiro depois da longa e decorada fala, a qual ele desejava muito profundamente ter saído menos robótica do que normalmente era, e que sua voz tivesse ganhado o entoamento certo — uma vez que o próprio não tinha tanto costume de erguer o tom —, as palmas generalizadas, gritos de “viva”, balões e sons de estouro o acordaram de sua mente. Era uma visão linda, mas ao mesmo tempo, que lhe dava um pouco de ansiedade.

As pessoas lá embaixo eram irreconhecíveis, como pontos coloridos saltitantes. Talvez ele mesmo parecesse assim para elas, no entanto, a câmera que sobrevoava o castelo e transmitia o evento por todo o mundo não permitia que ele relaxasse a expressão séria, ainda. Mais do que isso, a presença do soberano ao seu lado o deixava tenso, o corpo enrijeceu só de lembrar onde ele estava agora. Engoliu em seco e conteve um tremor no corpo quando a palma robusta apertou seu ombro, um toque que pareceu de apoio para os telespectadores, mas que, para o príncipe, era um sinal de aprovação, mas também de aviso. Como palavras silenciosas, uma mensagem que o fez desfazer a expressão por um mísero instante.

Um frio gelado subiu por suas costas e atiçou seus pelos na nuca quando uma sensação pesada o invadiu, e ele virou levemente o rosto para o lado, quase para trás, como se algo o chamasse. Como se algo estranho, algo ruim… 

— Edward.

Edward inflou o peito e voltou à sua postura ensaiada, tal qual o sorriso mais preguiçoso e duro que conseguiu fazer. Era um retrato, um teatro para todos. Era dessa forma que o próximo rei tinha vivido e aprendido a viver, e era assim que também seria quando subisse ao trono: uma mentira.

Por trás dele, Fanes mantinha seu sorriso inocente e caridoso no rosto, os olhos fechados demonstrando a simpatia que ocultava algo muito maior.

***

Quando Ryota acordou, estava num chão frio e duro.

O lugar era escuro demais para seu gosto, úmido de um jeito nojento. O som de um gotejar parecia ecoar por sua mente durante um longo, longo tempo. Enquanto se sentava contra a parede, a cabeça se erguendo, os olhos demoraram para focar no que estava à sua frente.

As janelas nada mais eram do que pequenos retângulos na parede, minúsculos demais para passar sequer uma mão. A grade que rodeava todas as celas não era grande, nem pequena. Na realidade, era tudo tão aberto e à mercê de qualquer coisa que parecia mais uma espécie de cativeiro. Como animais expostos, machucados e abandonados.

A visão turva não ajudava muito a se situar. A tontura era terrível, apenas mexer um pouco a cabeça — que, diga-se de passagem, estava terrivelmente pesada — era como um terremoto interno. O corpo reagia com dor por todos os lados, a garganta estava tão seca que parecia não ter bebido água por uma semana. Era natural que gemesse. Apenas mexer os dedos dependia de um tremendo esforço.

O que caralhos que aconteceu…? Eu tava no Debute… E daí… 

Ryota apertou os olhos. Lembrar-se dos eventos também era terrivelmente difícil. Por alguma razão, uma parte de sua memória estava bem bagunçada, apenas algumas sensações estranhas a faziam reconhecer seus próprios atos. Coisas como as manchas roxas no corpo, lembrando-a de que havia lutado e recebido golpes feios, e também um ardor no braço indicavam que havia sido vítima de algum kiai.

Eu perdi a consciência do nada. Que droga… E… É mesmo. A Marie… Eu tava procurando ela.

— Ugh… — Com todo o esforço que conseguiu juntar, a garota se arrastou da parede onde estava até a grade, segurando-a com uma das mãos. Até respirar era difícil. — M-Ma… Rie…?

Era silencioso demais. Não porque haviam poucas pessoas presas ali, mas porque todos estavam em uma situação semelhante, senão pior do que ela. Fracos demais até para se sentarem, quem dirá então para se movimentarem ou falarem. 

A voz de Ryota soou tão baixinha e seca que nem parecia ela mesma falando.

— … Hm?

— M-Marie…?

Após mais algumas tentativas, quando uma voz aguda gemeu próxima a ela, Ryota repetiu o nome pelo qual vinha tentando chamar há algum tempo. Desta vez, por ter soado mais nítido e alto, alguém se pronunciou a respeito.

Era a própria Marie, que apertava os olhos fechados e fazia uma expressão de dor. Quando Ryota a avistou, um sentimento de alívio preencheu seu peito e ela sacudiu em vão a grade da cela.

— Marie. Marie… Marie! Sou eu… Ei.

Seu braço passava pelo vão, mas não era o suficiente para alcançar a cela de Marie. Mal teve forças para erguê-lo e tentar tatear o outro lado quando a menina gemeu de dor mais uma vez antes de abrir os olhos rosados, sombrios.

— … Ryota?

— Isso, sou eu. Aqui. Ugh. Não se mova muito… Parece que eles fizeram alguma coisa com a gente.

Marie prendeu a respiração e lutou contra as dores para se sentar onde estava, recostando-se contra a parede como a própria Ryota. Ela estava mais machucada, as marcas de mãos a apertando com força nos pulsos e braços eram evidentes, mesmo nas sombras. 

— O que aconteceu?

— … Eu… — Marie segurou os cabelos amarelos, agora sujos, chegando perto de um tom bronze, parecendo ter dificuldades em pensar.

— Não precisa se esforçar, ok? Vou tirar… A gente daqui.

Era bem evidente que não seria tão fácil fazer isso. Ryota precisou inspirar profundamente logo depois que falou aquilo. Seu pulmão parecia bem menor do que realmente era, necessitando de bem mais ar do que o normal para formular uma frase simples.

Pode ser completamente estúpido, mas… 

Torcendo para as mínimas possibilidades dessem certo, Ryota fechou as mãos na grade suja e fria, concentrando-se. Sua testa enrugou e suor escorreu por ela quando o esforço demonstrou-se totalmente em vão. Nem um sinal de chi.

Por quê…? 

Nem mesmo uma faísca, nem um sinal de calor percorrendo suas veias. Nada. Nem um resquício de poder.

Quando tentou fazer mais uma tentativa em vão, os olhos rosados de Marie acompanhando seu esforço estúpido, um barulho alto as assustou. Então passos rápidos soaram de algum lugar. Vários deles. Tinham pessoas se aproximando das celas, e tanto Marie quanto Ryota recuaram para o fundo das suas na esperança de não serem vistas. 

No entanto, quando a porta pesada foi aberta com tudo, batendo contra a parede ao lado, e um par de olhos vermelho-sangue cintilou no escuro, Ryota quase engasgou. 

E ficou ainda mais tensa quando aquelas íris desceram em sua direção.

***

Eram quatro deles. As figuras eram poucos distinguíveis pela falta de iluminação, mas quando se aproximaram, Ryota conseguiu analisá-las um pouco melhor. A pessoa que caminhava a passos fortes na frente era alta e magra, o porte de um soldado espelhado até mesmo como posicionava as mãos atrás do corpo e mantinha o queixo ereto. Ele parecia sério, mas com uma ansiedade claramente oculta no rosto. Uma gota de suor escorria por sua pele, como se não estivesse realmente à vontade ali.

Houve um pequeno tempo para que o raciocínio se desenrolasse, e, finalmente, para que ela finalmente pudesse reconhecer a face do capitão da guarda.

Os outros dois que vinham logo atrás, um ao lado do outro, eram guardas uniformizados com uma aura um pouco mais hostil. Talvez maldosa. Ao contrário do primeiro, eles olhavam para todos os presos com um sorriso estranho, um brilho afiado no olhar que indicava uma clara repulsa, mas divertimento por vê-los onde estavam agora.

Por fim, eles deram espaço para o quarto e último membro que surgiu a passos lentos. Era a pessoa com olhos vermelhos, os cabelos negros quase se misturando às sombras. Um arrepio familiar percorreu a coluna de Ryota quando eles se encararam.

Ele é… 

Incapaz de concluir a linha de raciocínio, ela apenas se concentrou na visão dos quatro, que se voltaram para a cela de Marie. Agora, a menina estava recostada contra a grade, bem nos fundos, longe deles. 

— Senhorita — A voz do quarto homem irrompeu o silêncio de forma grave e grosseira. Marie tremeu. — Não precisa ter medo. 

Não era como se a situação em que estava e as pessoas estranhas que a rodeavam fossem convencê-la do contrário. A menina se agarrou mais firmemente na cela, os lábios trêmulos selados. Não parecia disposta a falar nada, seja lá do que estivessem atrás.

O homem de olhos vermelhos sacou um molho de chaves, o tilintar agudo irradiando pelos seus ouvidos, e abriu a porta da cela, entrando ao dar um passo.

— Ei. O que vocês querem com ela? 

A pergunta de Ryota foi ignorada. 

Quando alguns instantes se passaram e Marie não demonstrou qualquer sinal de desistência, um dos guardas se inclinou na direção do homem agachado:

— Senhor Akai… 

— Estou ciente.

Recebendo um olhar apertado do homem, o guarda enrijeceu o corpo e se afastou, temendo ser o alvo dele.

— Senhorita Marie, temos algumas perguntas para você, e espero que possa nos responder — Aquele chamado de senhor Akai assim disse, se voltando para a menina encolhida — Quando nos disser, poderá sair daqui imediatamente.

Marie não pareceu relaxar muito. Na realidade, ficou ainda mais tensa. E Ryota percebeu claramente pela forma que o homem soldado engoliu em seco que não seria assim tão simples. 

— A senhorita estava acompanhada de um homem, não é? Qual era o nome dele?

Quando o silêncio prosseguiu, uma gota d’água ecoando pelo lugar, Akai falou novamente, sacando um canivete da manga comprida:

— Manter-se em silêncio não é muito sábio.

Ele se aproximou com mais dois passos, a lâmina do canivete brilhando na escuridão quando foi apontada de forma ameaçadora.

— Responda. Agora.

As lágrimas de Marie não suportaram mais serem seguradas e escorreram por seu rosto. 

— Responda!

— Ei! Ei, ei, ei! Sai de perto dela! — Ryota gritou instintivamente, a voz rouca e terrível, quando o homem puxou o braço direito de Marie e a jogou contra o chão, a fazendo conter um grito. 

— Calada! — O guarda mais próximo chutou a cela logo onde estavam seus dedos, mas Ryota foi mais rápida em recuar.

— Marie!

— Você estava acompanhada do ex-capitão Luccas, não é? — Marie tentava lutar em vão contra ele, os dentes trincados para suportar a dor do pé do homem pisando vez após vez em sua mão. 

Um estalo alto fez Ryota se agarrar com tudo nas grades passando parte do rosto para enxergar melhor. 

— Marie! Ei, Marie! 

A menina não conseguiu suportar a dor dos ossos se quebrando e gritou. E berrou mais uma vez quando o golpe se deslocou para seu rosto, em seu nariz. O sangue espirrou pelo chão. Os pequenos dedos de Marie estavam tortos de um jeito bizarro. De um jeito horrível. O cheiro podre que pairava no ar apenas piorou o enjoo de Ryota vendo a cena.

Ela sacudiu a jaula, desesperada, conforme via Akai repetir as perguntas sobre Luccas, a chutando, agarrando-a pelos cabelos apenas para lançá-la contra as celas de novo, o sangue fresco se espalhando ao redor. O canivete fazia cortes lisos, mas doloridos, em seu pulso. O líquido quente vermelho escorria com vigor por sua pele branca, manchando-a, enquanto seus gritos contidos ecoavam de novo e de novo.

Akai estalou a língua quando largou a menina completamente surrada e cheia de sangue no chão, então guardou o canivete manchado. 

Ryota sacudia a grade com todas as suas forças, mas era o mesmo que nada. Sua voz mal saía. Ela queria abrir aquelas celas com tudo, correr até Akai e cortá-lo com aquele canivete ali mesmo, esgoelar todos os guardas. Mas a única coisa que pôde fazer foi assistir e chorar de frustração com a tortura de Marie, que em momento algum demonstrou qualquer sinal de que falaria, mas não podia suportar as dores que lhe eram infligidas. 

Por mais que o sangue escorresse por seu nariz, pingando no chão. Por mais que um de seus olhos estivesse roxo e inchado. Por mais que seus braços pequenos e magros estivessem cheios de cortes. Por mais fraca que estivesse, ela nada disse.

Ryota não sabia como ela tinha tanta força. Como tinha tanta determinação em se manter em silêncio até agora, em não falar nada.

“O Luccas me criou, então ele é meio como um irmão mais velho pra mim.”

Marie… Marie… Me perdoa, Marie… 

As palavras que a menina uma vez lhe dissera flutuaram em sua mente, e Ryota soluçou.

“…Só achei que poderia retribuir ao menos uma vez”

— Marie!!

A bicuda que atingiu seu queixo fez a garota cambalear para trás, engasgando com o sangue. Ryota se virou, apenas para receber mais um golpe na barriga e perder o fôlego por completo, saliva voando por sua boca. Então sangue, quando a atingiram com um soco no nariz.

Malditos… Malditos…!

Ryota vislumbrou por um dos olhos que Marie foi colocada para sentar, sozinha na grade com o homem Akai.

— Saiam da minha frente!

Ela desviou, por pouco, de outro golpe no ar e se agachou para agarrar com tudo um dos guardas pela cintura, lançando-o para o outro lado com tudo.

O queixo de Marie foi segurado com delicadeza. Ela estava praticamente inconsciente.

Ryota usou os braços para se defender de um chute na lateral e atingiu o outro guarda com o pulso no nariz, então disparou para fora da cela.

O mundo virou de cabeça para baixo, e Ryota se debateu quando o terceiro homem a segurou no chão. O capitão se esforçava para manter a expressão séria, e não pareceu irritado quando ela lhe deu uma cotovelada, os olhos fixos em Marie do outro lado.

Akai sacou o canivete e empurrou para fora a lâmina.

— Marie!!

Mas tudo começou a se contorcer. O mundo estava turvo, lento, o som se desfez. Ryota perdeu a voz e tudo ficou em câmera lenta quando a lâmina do canivete afundou contra um dos olhos de Marie.

Um grito. Então, mais vozes se sobrepuseram. Estava arranhando as pedras, as unhas se quebraram quando rasgaram o chão. Mas Ryota não conseguiu se mexer e um ardor pesado a pressionou na barriga. 

Foi como um choque, e a sensação familiar a atingiu com tudo. Algo semelhante tinha ocorrido antes de perder a consciência. A fraqueza veio, junto da falta de ar, e ela foi ao chão como um corpo morto. 

Seus olhos turvos, seus ouvidos quase surdos, a entorpecência a atingiu com tudo. Mas Ryota não desviou os olhos da cena da outra cela, enquanto babava e era arrastada pelas pernas para dentro da própria.

Enquanto o berro da menina se fundia ao seu próprio — se é que ela estava conseguindo falar algo àquela altura —, o outro olho rosado foi perfurado e mais sangue espirrou. O que parecia um pequeno frasco era segurado contra o rosto de Marie, coletando o líquido vermelho que lhe escapava pelos dois buracos no rosto.

Um golpe em sua cabeça a fez perder a consciência, e tudo desapareceu, menos os gritos da garotinha que tinha os dois olhos cruelmente perfurados. 

***

Quando Ryota acordou, completamente zonza, ela achou que tinha sido tudo um sonho.

As celas estavam silenciosas. O som da gota pingando em algum lugar desconhecido ainda penetrava em seus ouvidos. O clima úmido, mas grotesco, ainda pairava no ar. Parecia que tinha caído no sono por alguns poucos minutos, e tudo aquilo fora um terrível pesadelo.

Porém, aquela esperança vã se desfez no momento em que trocou olhares com as íris vermelhas. E elas estavam bem perto.

Ryota tentou falar, mas nada saía. Estava ainda pior do que antes, o corpo doía só por ficar parada. Por sorte, pareceu que Akai era quem começaria a dizer algo, mas ele tinha apenas inspirado ar para desferir um tapa com a parte traseira da mão no rosto dela.

— Acordou — confirmou ele, como se apenas olhar não tivesse sido o suficiente. Bem, na realidade, não teria como confirmar isso de verdade caso ela não tivesse reagido com uma careta de dor, pois seu rosto estava terrível. 

— … Ah… — O que deveria ser um suspiro saiu como um grunhido.

— Silêncio.

O canivete… Aquele canivete ainda estava na mão de Akai. Ele ainda reluzia, mas estava manchado com sangue seco. Quando tocou e fez um corte ínfimo em sua bochecha, parecia gelado e rígido contra sua pele.

— É hora de um segundo interrogatório, e espero não ter que passar dos limites outra vez.

A ponta da lâmina já tinha perfurado um ponto no rosto de Ryota, mas seus sentidos estavam tão confusos que ela nem percebeu.

Por o que pareceu um instante, e uma eternidade, um silêncio se instalou entre eles. Foi só quando o som de algo rangendo e de passos se aproximando soaram por perto que Akai hesitou, mas não se mexeu.

— Sua Alteza a solicita. Agora.

Akai estalou a língua para o homem… O capitão da guarda, Ryota reconheceu, mesmo com a visão turva. Ao contrário do uniforme usual, sua roupa era prateada e bordô, o que se destacava em comparação com o Akai, todo de preto.

Eles trocaram algumas palavras baixas, se viraram para a garota sem qualquer noção de espaço ou tempo, e então o capitão a carregou, passando o braço por seu ombro e a fazendo ficar de pé. Era difícil manter o equilíbrio e ele precisava fazer praticamente todo o esforço sozinho conforme seguiam pelo corredor, pelas escadarias de pedra, então por todo um trajeto ao qual Ryota se esquecera por completo depois.



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