Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 11: O Debute | Parte 2

A faixa dourada passou lentamente pelo corpo da duquesa, permanecendo apoiada de forma suave em seu ombro e recaindo em sua cintura. O tom dourado era contrastante com sua vestimenta usual azul, mas o brasão em forma de um trevo de quatro folhas branco bordado ao menos combinava um pouco com ela. 

O suspiro dado por ela ao olhar para o espelho uma última vez foi o suficiente para fazer as duas criadas se retirarem em um silêncio absoluto, fazendo uma reverência rápida antes de desaparecer pela porta fechada por Kanami. A guardiã manteve o queixo reto, e analisou a pessoa que chamava de mestre. 

Uma aura fria cobria o cômodo, o quarto designado para a duquesa de Minami era gigantesco, maior do que o costume, mas não pareceu impressioná-la vendo de longe. Na realidade, Fuyuki parecia preocupada com outras coisas mais importantes do que a aparência ou o tamanho do próprio quarto — uma preocupação trivial e tola, coisa que provavelmente apenas Ryota se importaria de comentar a respeito.

Fazia algum tempo que ela não pensava na garota, inclusive. Na realidade, desde que o Debute se tornou o tema principal de suas pautas, a moça não tinha parado um só minuto para descansar, fazendo o máximo possível para não demonstrar, apesar de tudo. Mesmo tendo passado menos de três dias desde que Ryota havia partido para Hera, as noites de conversa jogadas fora com uma boa dose de vinho fizeram falta, no entanto.

Fuyuki balançou a cabeça discretamente para espantar aqueles pensamentos, quando um par de olhos vermelhos surgiu por trás de seu reflexo sério no espelho.

— A senhorita está bem? — A voz de Sora ciciou em seu ouvido, dura, mas uma pequena demonstração de preocupação.

— Sim, estou. 

… É o que gostaria de dizer com mais confiança. 

Se Sora reparou na expressão meio melancólica, meio rígida dela, não comentou. Apenas forçou um passo para trás.

— Creio que vamos acompanhá-la até o camarote, não é? — Sora deu um olhar de escanteio para irmã, que estava plenamente ciente de que o “nós” se referiam apenas aos dois. — Quanto ao palanque-

— Irei por conta própria. Apenas permaneçam em seus lugares. 

Os olhos esmeraldas se voltaram para trás, para o quarto onde os seus quatro guardiões estavam espalhados: Sora, logo à frente dela; Kanami, colada na porta; Zero, nos fundos do quarto, recostado numa pilastra, Eliza permanecendo próxima a ele com as mãos unidas no peito, uma expressão de foco em seu rosto. A duquesa olhou para todos eles, então respirou fundo devagar, o máximo que poderia mostrar de fraqueza perante um momento tão importante daqueles. 

Ela não era mais uma menininha que precisava ter a mão segurada quando estava perante a corte. Já não era mais um ser a que era olhado com maus olhos. Ela era Fuyuki Minami, duquesa e matriarca, alguém que merecia respeito. E, caso não o recebesse, os faria impôr custe o que custar.

— Zero. Eliza.

— Sim, senhora. — Ambos prontamente responderam, arrumando a postura.

— Espalhem-se na multidão, mas permaneçam atentos. Dentro de uma hora, talvez duas, estaremos de volta ao Palácio de Hera para uma provável reunião com a corte. Não duvido que Sua Majestade não tenha planejado algo para nos entreter até a noite.

— Como desejar — Zero e Eliza responderam em uníssono, a voz calma e formal.

Fuyuki estreitou os olhos, encarando Zero por um pouco mais de tempo quando falou:

— Em nome da responsabilidade e posto que me foi dada, peço perdão.

Quando a duquesa repentinamente os reverenciou, todos ficaram boquiabertos. Até mesmo Sora demonstrou surpresa, provavelmente sem ter percebido a tensão e vergonha que percorriam a mestre naquele momento. Durante os segundos que se passaram, os quatro aguardaram que ela novamente endireitasse a postura, as bochechas dela ruborizando.

— … Senhorita Fuyuki — murmurou Eliza, inspirando fundo ao perceber os olhos esmeraldas dela embargados.

— Estou ciente de minha posição, e também das condições que me trouxeram até aqui neste momento. E é justamente por ter ciência disso, mas não ter tido coragem o suficiente para me impôr, que lhes peço perdão. Uma mestre não deveria permitir que seus guardiões passassem por tal humilhação, principalmente quando a culpa é inteiramente dela. 

O corpo de Fuyuki estava enrijecido de tensão e vergonha. A duquesa, uma garota que mal havia completado dezenove anos de idade, mas que carregava tanto peso em suas costas, poucas vezes podia se dar ao luxo de expressar os sentimentos que há muito guardava. Por vezes, porque não era algo digno de se fazer perante aqueles a quem deveria ser um exemplo de disciplina, orgulho e poder — talvez fosse aquele o motivo de Ryota ter sido uma pessoa que trazia tanta tranquilidade à ela —, outras, porque conforme o tempo se passou, a jovem era incapaz de expressá-los com exatidão. Sentimentos, dores, humilhações e tristezas… Tantas coisas com as quais, desde pequena, desde sempre, foi privada de fazer e dizer. Agora, eram correntes e dificuldades com as quais deveria lutar sozinha.

Mas quando essas mesmas incapacidades particulares afetavam aos outros, isso a frustrava. Tanto que a chateava, a fazia remoer cada pedaço seu, cada erro e deslize. 

Um olhar para os gêmeos bastava para perceber que eles tinham percebido, talvez até mais do que Eliza ou Zero, os olhares de desprezo e descrença para com uma matriarca tão jovem e inexperiente. Mais do que isso: Para uma garotinha órfã, esperançosa e que buscou vingança durante dois anos de sua vida, isolando-se do resto do mundo. 

Fuyuki tinha percebido perfeitamente como os olhares de Shin Akai e Miura Akai eram desferidos cruelmente para seus sucessores, para aqueles que faziam parte da própria família, e por terem sido escolhidos e contratados por alguém como ela, agora eram mal vistos — não que fosse algo com o qual eles demonstrassem se importar, mas a duquesa sabia perfeitamente que, no fundo, eles também sentiam.

Principalmente Sora, aquele que sempre protegeu a irmãzinha.

Zero permaneceu sério perante suas palavras, como se esperaria dele, mas o olhar que sustentaram um ao outro pareceu abalá-lo internamente, da forma como ela esperava. Mas era tudo o que faria.

— No entanto — continuou ela, após um silêncio desconfortável — Não permitirei que continuem a nos tratar desta forma. Estou ciente de que cada um de vocês possui uma razão para estar aqui, neste momento, neste quarto. Não trouxe minha elite para a capital por puro capricho, como eles devem imaginar. Vocês sabem muito bem do valor e da responsabilidade que lhes imbuí. Não olharão mais a vocês como indignos ou insolentes, mas como pessoas... Como guardiões que merecem respeito. Lembrem-se muito bem disso, e do quão orgulhosos devem ser de si mesmos por estarem onde estão hoje, entenderam?

— Sim! 

As vozes dos quatro se uniram para respondê-la, numa entonação forte e confiante ao qual ela esperava ouvir.

Fuyuki relaxou internamente, se permitindo sorrir um pouco ao suspirar.

— Muito bem. 

***

Hera tinha mudado bem menos desde a última vez em que estivera na capital.

Os passos de Zero eram constantes, ritmados pela multidão que o cercava, o levando e guiando para qualquer que fosse o lugar. A capital real continuava tão chamativa e barulhenta quanto se lembrava, e andar por aquelas ruas lhe trazia um misto de nostalgia com algo denso no peito. Era uma sensação estranha, um pouco longe da dor física, mas era tão pesada que quase se manifestava de tal forma.

No entanto, por mais que um pedaço dele quisesse descobrir o que era e o motivo disso existir, outra parte dele, uma parte sombria e covarde, um lado que viera tomando conta desde aquele dia há mais de uma década atrás, não queria… Zero sacudiu a cabeça com força, disparando pela avenida e cruzando todas as que via pela frente, buscando se distrair. Ele enfiou com força as mãos nos bolsos do calção, distraindo-se por um momento com uma pequena barraquinha de crepes que tinha um sininho barulhento chamando sua atenção.

Comer era uma boa distração enquanto andava. Permitia que seus pensamentos vagassem um pouco menos longe, e sua barriga roncando não lhe deixava viajar por tanto tempo quanto queria — o que era bom.

Mas isso fez com que ele inconscientemente andasse para qualquer lado que lhe chamasse a atenção, para qualquer coisa que achasse interessante, até que acabou em uma das extremidades da capital. O grandioso muro se estendia a uma altura absurda acima dele, fazendo sombra no leste. Era quase assustador olhar para sua extensão e imponência. 

Uma ventania fria fez suas roupas farfalharem, o fazendo resmungar de frio. No entanto, um arrepio percorreu sua espinha logo quando reconheceu para onde tinha sido levado. Fosse por sua inconsciência, fosse pelo destino. Ou, até mesmo, pela própria natureza, que insistia em fazê-lo lembrar e jamais esquecer.

Zero não queria andar até o final da rua. Não queria ter virado e se deparado com a construção em pedaços logo na avenida. Não queria estar sozinho naquele momento, com todos os moradores e pessoas unidas no coração da capital, ansiosas para o início do Debute. Não queria ter andado até as grades enferrujadas do portão, há tempos queimada e destruída, o ferro com cortes lisos em várias partes. Tocá-lo era bem perigoso, mas ele não se importou.

Seus olhos prateados escureceram quando os pequenos feixes de memória ressurgiram em sua mente como lapsos. Pequenas cenas que ele se lembrava perfeitamente, embora com menos nitidez do que — ou melhor, com mais — nitidez do que queria. Sendo bem sincero, gostaria de apagar aquilo de sua memória e fingir que nada daquilo aconteceu ou existiu. Queria esquecer quem era, quem um dia fora… E quem poderia se tornar.

A casa era grande, mas não tanto quanto qualquer uma das mansões a qual estava acostumado a frequentar. Havia um pequeno jardim, e a construção, tal como ele, estava completamente destruída e abandonada. Pelo tempo, por sua família e por ele mesmo. 

Quanto mais Zero continuaria a fugir? 

Para sempre.

A resposta não hesitou em vir à sua mente, mas ele logo se arrependeu. 

Tinha certeza daquilo? Por que continuar fugindo do próprio destino? Até quando?

Queria responder àquelas perguntas com a mesma certeza que as teria respondido há um ano, ou dois. Mas, agora, depois de tudo, já não tinha certeza do que fazer. 

Zero inspirou fundo e se afastou da grade, lutando para não olhar para trás quando caminhou a passos pesados na direção do barulho e das vozes.

***

A música tocava em um padrão que parecia se repetir infinitamente. Era como se fosse uma pequena trilha que era colocada para tocar de novo e novo, num loop que fazia parecer não ter começo nem fim. 

No início, soou de forma irritante e enjoativa, os sons grudando com força na mente do rapaz que andava em meio à multidão. Mas, depois de um tempo, ela quase se tornou parte do evento, se misturando a todas as diversas sensações — o que não a deixava menos chata. 

Quando o primeiro badalar soou, a multidão começou a se amontar cada vez mais para perto do palácio. Obviamente, não era como se todos da cidade pudessem fazê-lo, e haviam apenas algumas pessoas — aquelas que provavelmente haviam adquirido lugares especiais para acompanharem o Debute — que estariam presentes e tão perto para verem o soberano e seu sucessor no palco. Até lá, no entanto, o sino badalaria pelo menos mais duas vezes. A primeira fora para indicar que os preparativos estavam prontos e que muito em breve o evento começaria.

De onde Zero estava, podia ver perfeitamente que nem todos estavam indo para o palco. Alguns assistiam da varanda de suas casas, outros acompanhavam pela televisão. Câmeras sobrevoavam o palácio e arredores, mostrando a gloriosa e tão aguardada coroação começar. Não só ali, mas era transmitido por toda Thaleia, alcançando até mesmo Urânia e alguns lugares de Polímia.

Um pouco longe dali, um repórter transmitia as cenas e entrevistas com algumas pessoas aleatórias ansiosas para aparecer em tv aberta. Então, para evitar que fosse avistado, Zero deu meia volta e buscou um lugar onde pudesse assistir ao Debute sem qualquer interrupção ou problema.

Seus olhos vagaram para os lados e então se ergueram para os telhados das casas. Num piscar de olhos, ele surgiu sob um e ali mesmo se sentou, tomando o cuidado para não ser percebido. Porém, logo quando tinha se recostado contra a chaminé aquecida pela luz do sol, um burburinho não muito longe dali chamou sua atenção, e seu peito doeu. 

Ele não queria ter reparado na voz que soava mais alta do que deveria, mas que não havia ninguém para reprimi-la por isso. Nos cabelos negros curtos e brilhantes, que pareciam bagunçados naquele momento, talvez por ter andado e corrido para lá e para cá como uma doida. Era bem possível, uma vez que nas duas mãos ela carregava guloseimas e comia sem parar, um sorriso enorme estampado no rosto. A jaqueta vermelha cintilante reluzia com o sol, como um farol que lhe obrigava a percebê-la, a observá-la com um sorriso fraco no rosto. 

Zero riu com o nariz quando a garota quase derrubou tudo no chão, fazendo uma careta de sofrimento, então mudando a expressão por completo para um alívio explícito quando conseguiu salvar a tempo o café. Seus olhos prateados se estreitaram um pouco quando finalmente conseguiu ver quem era a figura com quem interagia tão abertamente, a mão segurando o pulso do pequeno garoto inexpressivo. Era um menino bem mais baixo do que ela, vestido inteiramente de preto, a pele tão pálida que parecia doentia. Não reagia ou parecia dizer nada, muito embora a garota — Ryota — continuasse a falar e gesticular o tempo todo, mas ele também não insinuava estar incomodado com aquilo, e apenas a seguia com os olhos, parecendo escutá-la, pelo menos.

Zero prendeu a respiração e controlou seu impulso de simplesmente surgir entre os dois ali mesmo, desejando poder afastá-los a pelo menos cinco metros um do outro. Percebendo o quão forte apertava as unhas contra a própria pele, a memória da mesma garota sorridente pedindo para confiar nela ressurgiu em sua mente, assim como as próprias palavras que havia dito durante a despedida.

Ainda não era o momento certo, então repreendeu a si mesmo segurando o próprio braço, se forçando a desviar os olhos dos dois. Quanto mais cedo o próprio Zero entendesse isso, melhor. Mais fácil ficaria quando ele finalmente… 

***

Quando Kuro relutou em segui-la, Ryota bufou. O barulhento evento estava prestes a começar, e a badalada do sino era claramente um indicativo disso. Ainda assim, o garoto insistia em permanecer ali, o corpo metade oculto pelas sombras. 

— Vamos, Kuro! Desse jeito não chegaremos a tempo! — Lutando como podia com a teimosia dele, Ryota deu mais um puxão no pulso que segurava, mais uma vez sendo inutilizada. Ela, então, desistiu de forçá-lo e ajustou o copo que segurava do outro lado com a mão — O que foi? Não quer ir assistir a coroação?

Os olhos violetas estavam praticamente negros na sombra, apenas uma faisca de seu verdadeiro tom resplandecia na luz. 

Kuro trocou olhares por um microssegundo com Ryota, antes de baixar a cabeça e balançá-la devagar, estreitando os olhos.

— Tá bom — Ryota soltou o pulso de Kuro, que recuou para a sombra de novo — Não precisa ir se não quiser.

Ela deu um sorriso que esperava ser reconfortante, mas o menino apenas apertou os lábios em resposta. O ato a fez encolher o corpo enquanto o via lhe dar as costas e sumir:

— Desculpa. 

O segundo badalar a fez acordar para a realidade, mas Ryota ainda insistiu em permanecer alguns segundos ali, como que esperando que Kuro voltasse e mudasse de ideia, mas isso não aconteceu. Num suspiro pesado, a garota disparou em direção à multidão, esperando que ainda houvesse algum espaço sobrando para ela.

***

O que veio a seguir foi uma repetição de coisas que Ryota mal se lembraria direito depois. Após o badalar final, houve um silêncio temoroso, acompanhado de centenas de milhares de pares de olhos disparados apenas para o palácio, para onde uma pessoa sairia e começaria os discursos.

Era provavelmente a parte mais chata da Coroação, e que, apesar de Ryota estar meio ansiosa para ver como seria, uma pequena parte dela queria apenas pular todas aquelas palavras que provavelmente teriam sido escritas a fim de serem lidas em público para tirar palmas repetitivas. Ou seriam apenas condecorações ou homenagens que pouco importariam para ela, em especial.

Entretanto, quando uma singela parcela de pássaros brancos sobrevoou os céus, e uma música baixa, mas elegante e sutil, começou a tocar, todos ficaram vidrados na pessoa que atravessou o caminho até o palanque do discurso. As câmeras deram zoom direto nas roupas e feição do homem de postura ereta e uniforme da guarda, mas com uma diferenciação clara nas cores — usava um inteiramente vermelho com alguns destaques em dourado. Os cabelos e olhos eram pretos, mas haviam algumas mechas douradas que lhe destacavam as roupas. O passo confiante retumbava à distância na mesma marcha dos corações dos que assistiam.

Os balões que flutuavam eram um cenário quase destoante em relação ao sério homem. Os cochichos vinham daqui e dali. As câmeras instaladas, vezes paradas, vezes se movimentando e dando zooms eram bastante práticas. Algumas delas apenas voavam de lá para cá com algum mecanismo bastante avançado, tendo uma hélice no topo que provavelmente ajudava no impulso.

Quando ele se postou diante do microfone, seus olhos se baixaram para a multidão, então, com um piscar, encarou a câmera diante de si.

Graça e penhor ao Pequeno Sol.

Hosana.

A resposta ecoada em retorno, quase que instantaneamente, soou por toda Hera de forma pacífica, porém entoada com importância. Como um termo de anuência tão presente na vida de todas aquelas pessoas que, toda vez que ouviam as palavras chave, sabiam exatamente o que responder. Palavras do tipo que ficavam na ponta da língua e você dificilmente resistiria à vontade de falar.

— Agradeço imensamente à presença e atenção de todos aqui. É de suma importância para mim, e para nosso reino, os dias que estaremos festejando ao longo desta semana. Em nome da Guarda Real, como o representante líder, eu vos saúdo.

Após aquelas palavras rigidamente ditas, o homem deu um passo para trás, tomando distância do microfone, e se curvou numa reverência de quase noventa graus. A mão direita tocando o peito, diretamente no lugar do coração, os olhos fechados sem qualquer demonstração de hesitação ou medo eram de se admirar.

Mais do que isso: O barulho de pés batendo contra o solo e o tilintar de armas sendo arrancadas de suas bainhas chamaram a atenção de todos que o assistiam: Em outra tela, uma câmera filmava perfeitamente os guardas reais, todos uniformizados, em fila uns atrás dos outros. Eles marcharam no lugar, ergueram suas espadas na altura do peito e soltaram um grito de guerra. Tudo isso em respeito ao reino e às palavras do homem que foi escolhido para estar ali diante de todos, naquele momento.

Ryota escutou alguém fungar ao seu lado, seguindo de um soluço de alguém mais à frente. Após alguns minutos naquela posição, o capitão da guarda endireitou a postura e caminhou novamente até o microfone.

— Vamos aplaudir agora o monarca de Thaleia: Sua Majestade Fanes Fiore!

Com essa deixa, o homem se uniu aos aplausos que urravam das pessoas reunidas e se afastou andando de costas quando uma outra figura surgiu. Um som de estouro soou, então confetes jorraram sobre todos quando o soberano caminhou calmamente até o microfone.

Era um homem com aparência jovem, cabelos e olhos alaranjados iluminados pelo próprio sol. As vestes brancas e douradas reluziam com elegância e nobreza. Uma coroa de ouro cintilava no topo de sua cabeça, ornada com o que deveriam ser joias caríssimas. Ao passar pelo capitão da guarda fazendo uma reverência, ele o cumprimentou com a cabeça antes de parar.

Seus olhos, antes fechados, se abriram. Foi nesse momento que as nuvens, como se acompanhassem tudo o que ele fazia, começaram a se separar, permitindo que feixes de luz atravessassem o céu e o alcançassem. Como holofotes naturais, aguardando ansiosamente para o que viria a seguir.

Havia expectativa. E uma tão densa que criava quase que uma pressão nos olhos de todos que aguardavam os movimentos e palavras do rei. Mas essa mesma ansiedade acabou sendo um tiro saindo pela culatra quando um silêncio estranho se seguiu por um longo, longo tempo.

Algumas pessoas cochicharam entre si, perguntando-se o que poderia ter acontecido. Por qual razão o monarca não dizia nada, e permanecia apenas ali parado.

— E...

Todos se voltaram com atenção para ele quando uma letra saiu gaguejante de seus lábios.

— ... Está quente... Hoje, né?

Foi então que todos perceberam imediatamente o problema: Fanes Fiore estava nervoso demais para falar com tantas pessoas. Era chocante? Sim, com certeza. De longe, nem as câmeras poderiam focar a ponto dos outros perceberem, mas ele estava com as palmas suadas e piscando de nervosismo o tempo todo.

As palavras que foram ditas ficaram no ar, zanzando, ninguém sendo capaz de entender a razão de terem sido ditas. Mesmo Ryota, olhando com uma careta pra tela, estava perdida. Os nobres, sentados um ao lado do outro numa arquibancada especial, aguardavam pacientemente o que aconteceria em seguida.

Foi só quando um cutucão discreto em suas costas o acertou que Fanes pareceu voltar a respirar, dando um olhar lateral para a pessoa que deveria tê-lo feito recompor a postura. Um sorriso trêmulo despontou de seus lábios, e então...

— Sim, de fato, está quente hoje. O que significa que nosso Pequeno Sol nos abençoou com um ótimo clima para celebrarmos este momento tão sagrado e importante na história de nosso reino.

Engolindo o gaguejar, Fanes finalmente se pôs a falar, o que tranquilizou um pouco as pessoas preocupadas, que encerraram rapidamente os sussurros para se concentrar nas palavras do homem sorridente.

Fanes, após inspirar fundo e tocar o coração com uma das mãos, prosseguiu:

— A semana da Coroação continuará como planejado. Uma comemoração que durará sete dias interruptos para que possamos dialogar e brindar, enquanto conversamos com nossos amigos e familiares sobre os planos para nosso futuro. Após tantos anos, finalmente, o herdeiro prometido tomará seu lugar no trono.

Uma brisa ligeira balançou os longos cabelos alaranjados dele.

— O príncipe Edward Fiore completará a maioridade em uma semana. E, neste dia, ao meio dia, quando o sol nos abençoar com seu resplendor e luz divina, a coroa de ouro recairá sobre a cabeça do herdeiro. O jovem cujo destino poderá mudar o difícil momento em que vivemos, aquele que será capaz de contornar a sombria situação e nos trará um novo futuro.

Fanes claramente gostava de falar. Talvez não exatamente em público, já que ele havia travado no começo, mas numa rodinha de pessoas ele com certeza se sairia muito bem. Sua dicção era perfeita e os gestos com os braços cativavam a multidão, que estava vidrada na tela.

O soberano uniu as duas palmas das mãos na frente do corpo, suspirando com uma tranquilidade que pareceu chegar até o povo, e encarou fixamente a câmera diante de si.

— Entretanto, essa fé e esperança apenas se fortalece a cada dia por possuir uma corte cheia de pessoas admiráveis ao meu lado — O rei indicou com a mão os cinco líderes sentados em poltronas na sombra, assistindo quase que de perto seu discurso, ao que as câmeras automaticamente se voltaram para eles — Devo minha gratidão à todos vocês por sua lealdade e capricho na busca por um mundo melhor.

Uma salva de palmas, agora menos emocionada, ecoou. A tela passou cada um dos líderes nobres, cada membro da corte, lentamente. Fuyuki Minami, bem à esquerda, inclinou a cabeça respeitosamente. Sofia, logo ao seu lado, riu com uma das mãos próximo aos lábios — Ryota quase engasgou com o café ao reconhecê-la. Omar Al-Hadid, no centro, abriu os braços e os agitou no ar, acenando com um enorme sorriso. Logo ao lado, com uma carranca enorme, Shin Akai apenas encarou a câmera antes de rosnar para o lorde exagerado ao lado. Por fim, Juan Over, de braços cruzados, apenas imitou o gesto de Fuyuki.

— Agradeceria imensamente caso pudéssemos ouvir um pouco do que tem à dizer sobre este evento.

Naturalmente, os nobres ali já estavam cientes de que iriam discursar, então não demonstraram surpresa quando o monarca passou a palavra para eles.

— E lá vamos nós... — murmurou Sofia, rindo.

Fuyuki a olhou de canto.

— O que foi, querida?

— Não é nada.

— Está ansiosa?

O silêncio da duquesa a fez rir baixinho de novo.

— É uma pena que nosso monarca seja tão bobinho. Seu carisma, infelizmente, não é o suficiente para manter a chama da esperança das pessoas queimando. Uma vergonha.

Sofia assim comentou de forma debochada, aos sussurros, de forma que somente Fuyuki pudesse ouvi-la. Ela passou os dedos com unhas pintadas pelo rosto, conformada com a própria avaliação.

— Suas duras palavras ainda causarão sua queda.

Foi uma surpresa que a duquesa tenha rebatido, no entanto.

O olhar que Sofia lhe deu após ouvir aquelas palavras... Não tinha outra forma de descrever além de frio.

— Ah, não se preocupe, docinho — Então sussurrou-lhe ao ouvido, num sorriso largo e estreito que mostrava os dentes — Elas nunca irão.

Fuyuki olhou-a bem a tempo de Fanes pedir para que a duquesa se aproximasse do palanque para discursar, mas, àquela altura, Sofia já estava entretida demais com as próprias unhas para reparar em seu rosto.

***

Quando Ryota viu a jovem caminhando na direção do microfone, os passos confiantes e o rosto inexpressivo, porém sério, um sorriso lhe escapou aos lábios. Fuyuki Minami era uma mulher que inspirava admiração e a própria face da elegância.

Os discursos dos líderes seguiam uma base bastante simples, e se repetiam ao longo de todas as vezes em que eram chamados pelo monarca para discursar.

— A Era Sombria já ocorre, assolando nosso mundo, há mais de dois séculos.

O início do discurso foi frio, direto. Fuyuki começou a falar sobre a grande ferida mundial que gerava revolta, frustração e tristeza em todos, sem qualquer exceção. Só tocar no assunto fez todo o acaloramento de até então se desmanchar num cruel silêncio.

— Por conta da Entidade Libitina, um ser terrível que causou a destruição de mais da metade do mundo, matando milhares de pessoas sem hesitação com suas cruéis bestas e assolando nossos mares com suas sombras carregadoras de uma doença incurável, fomos todos forçados a nos retirar, buscando ao máximo sobreviver. E, após uma luta infindável, aqui estamos: Um único país sobrevivente, dividido em três, unindo pessoas do mundo todo, apenas um sopro da vida que tínhamos antigamente.

A duquesa não pareceu recuar ou sequer demonstrar qualquer sentimentalismo em relação às coisas que disse. Coisas que todos já tinham ciência, uma história passada de geração em geração numa era em que o maior objetivo de todos era a sobrevivência.

Foi por isso que, há tantos anos, quando a Era Sombria começou, e a Entidade chamada Libitina expandiu seu território de destruição e horror, todos os conflitos que haviam entre nações cessaram. Diante de uma adversária com uma capacidade absoluta, que matou centenas de milhares sozinha, que causava terror em todos apenas por pensar em seu nome ou olhar para o mar — que, antes era azul, e agora estava completamente tomado pelas sombras —, o mundo se uniu contra Libitina.

Diante do silêncio frio, das lembranças cruéis, das histórias que eram passadas ao longo dos anos... Fuyuki Minami bateu um dos pés, bem alto.

— Mas e daí?!

O grito fervente assustou a todos. Uma expressão de determinação agora estava no rosto da duquesa, que antes parecia completamente alheia às coisas que dizia.

— Após todos esses anos, nós ficamos preguiçosos. Quando descobrimos a força dos selos, capazes unicamente de manter afastado por um tempo limitado as sombras da Entidade, achamos que ia ficar tudo bem. Que as coisas iam se ajeitar sozinhas... Que todos sobreviveríamos se ficássemos aqui, presos. Aguardando por um milagre... Pois eu vos digo, meus caros: Isso não existe!

Fuyuki bateu o pé novamente.

— Quem é que vai lutar por nós, quando as bestas se tornarem resistentes aos selos?! Quem vai segurar as ondas sombrias, quando tomarem nossas casas e nossa vitalidade?! Quem irá defender nosso povo, nossas famílias, nossa dignidade, quando a paz instável em que vivemos ruir?!

A duquesa, num movimento que balançou seus lindos cabelos, balançou o braço direito na horizontal, como se desse uma ordem, deixando a palma aberta de frente para todos:

— Seremos nós! Porque nós somos os únicos capazes de nos salvar! — Fuyuki deu um soco no próprio peito, mantendo a imponência na voz — Os milagres, quem fazem, somos nós! A busca por um objetivo em comum, a esperança de um futuro melhor, a luta por aqueles que já se foram... Sentimentos assim não se desvalorizam ou são esquecidos! Eles devem queimar eternamente em nossos corações, como os combustíveis necessários para nos fazer ficar de pé todas as vezes em que cairmos, todas as vezes que derramamos lágrimas e buscamos motivos para desistir e recuar!

Ciente dos olhares surpresos, antes de um jeito ruim, mas agora de um jeito surpreendentemente bom, Fuyuki estufou o peito ao exclamar:

— Eu, como representante da família Minami, presto hoje meu orgulho ao posto que ocupo, a dedicação ao meu objetivo e o total apoio à nova era que virá com a futura Sua Majestade! Lutarei até o final por esta nação, por meus guardiões e por tudo o que conquistamos até agora. Espero, de coração, que me acompanhem nessa jornada.

Assim, após gradualmente baixar o tom de voz novamente, a duquesa Minami fez uma longa reverência para as câmeras, para o microfone, para o povo, antes de caminhar de volta ao seu lugar.

— Ora, ora, é uma grande honra ser recebida com uma salva de palmas tão calorosa.

Quem assim disse ao parar diante do palanque foi Sofia, que apoiou uma das mãos no rosto e sorriu largamente para os gritos das pessoas. Foi uma reação bastante exagerada, considerando que, no caso de Fuyuki, tinha sido recebida por uma aclamação bastante simples.

— Estou muito feliz pelo convite e pela consideração de todos. É fato que estamos, neste momento, em uma situação mundialmente afável. Portanto, é extremamente aguardado que a coroação do príncipe mude tudo. Como representante não somente do Instituto Gnosis, mas também da remanescente nação de Urânia, presto minhas congratulações e apoio total à futura Sua Majestade e ao novo reino que teremos daqui em diante.

Sofia, ao contrário de Fuyuki, falava de forma baixa e quase arrastada, mas não de um jeito irritante. Parecia ser uma melodia encantadora, que fazia todos vidrarem nela. Foram palavras rápidas, mas que marcaram a todos igualmente.

— Em nome da família Akai, presto minhas congratulações e apoio total à futura Sua Majestade e ao novo reino que teremos daqui em diante.

— Um homem de poucas palavras, de fato! — Al-Hadid, ao ver que Shin Akai apenas disse uma frase antes de voltar ao seu lugar, assim exclamou, rindo. — Eu o admiro!

— Isso não pareceu um elogio, no entanto... — comentou Sofia consigo mesma.

Shin ignorou o lorde e apenas manteve os olhos fechados, como se meditasse, quando ele foi chamado para discursar.

— BOOOOOOOM DIAAAAAAAA!!

Abrir os braços que estavam cruzados, afastar as pernas e berrar: Essa foi a saudação de Omar Al-Hadid.

— Assim como meu parceiro disse, está um sol agradável hoje! Ahá! Em Polímia, os dias eram repletos de calor e suor, sabiam? Thaleia é um lugar um pouco mais refrescante do que estamos acostumados, mas os verões passam um pouco do que costumávamos viver antes! Engraçado! Ahá, há!

Era de conhecimento geral que Polímia, terras que ficavam localizadas no extremo norte, eram desérticas e o sol nunca sumia. Diziam os boatos antigos que seu povo tinha duas luas, uma vez que o sol jamais dava lugar à lua e, mesmo durante o inverno, o clima quente terrível permanecia.

Ver Omar Al-Hadid rir daquilo com tanta leviandade parecia quase uma zombaria ao sofrimento de seus antepassados.

— Como foi dito por minha colega duquesa, de fato, há mais de duzentos anos um ser tenebroso assombra nosso mundo. Entretanto, foi há somente três décadas que as sombras tomaram Urânia e Polímia, oficialmente. Lembro-me com nostalgia daqueles dias...

O sorriso de Omar era quase irônico, já que, em teoria, suas lembranças nada mais eram que o puro caos ocorrendo em suas terras enquanto todos buscavam loucamente sobreviver, escapando pelos mares na direção de Thaleia, nação a qual foi uma das únicas a se manter de pé de braços abertos aos imigrantes sobreviventes.

— É com muito orgulho no coração que dirijo minhas congratulações à sua futura Sua Majestade e ao novo mundo que virá! Portanto! Creio em meus sentidos de que, no futuro, todos voltaremos às nossas vidas normais! Sensibilizo-me com minha companheira duquesa e seu forte discurso, também. Mandou bem, baixinha!

Omar, com um sorriso radiante, ergueu o polegar na direção de Fuyuki Minami, que, ao perceber a atenção sendo voltada para si, apenas acenou de volta com a cabeça de forma respeitosa.

Após isso, o lorde sentou-se de volta no lugar exatamente no momento em que Juan Over caminhou até o palanque. Assim como Fuyuki, tinha um porte mais sério, nenhuma característica especialmente marcante. A aparência era relativamente comum, também.

Entretanto, em comparação, a duquesa era conhecida por seu forte senso de determinação e força nas coisas que fazia, principalmente em campo de batalha. Já Juan... Parou diante do microfone, olhou para o objeto, então para as duas câmeras que flutuavam diante de si, aguardando que começasse a falar.

— ... Ah.

Ele soltou um murmúrio, logo em seguida corrigido por um pigarrear em sua garganta. Ryota, vendo aquilo, piscou duas vezes, confusa. Ele parecia... Meio perdido. Meio confuso, meio sem entender.

— Agradeço... Agradeço pelo convite. Em nome de Clior, presto minhas congratulações e apoio à família real.

Juan não estava nervoso como Fanes, muito menos confiante como Fuyuki. Tampouco era de poucas palavras, como Shin.

Será que ele... Nunca falou num microfone antes?

A teoria mental de Ryota se comprovou no instante em que, após as palavras dele, um som agudo preencheu as caixas de som. Sem qualquer demonstração de desconforto com sua falta de interação tecnológica, e qualquer palavra a mais, Juan Over fez uma reverência e rapidamente se retirou.

— Algum problema, senhor Over?

— Não é nada.

Shin parecia prestes a provocar o homem ainda mais, mas Al-Hadid se prontificou:

— Quase fiquei surdo, ahá!

Em resposta, Juan apenas estalou a língua e virou o rosto, o único sinal de constrangimento que demonstraria, aparentemente. Sofia riu, e Fuyuki os ignorou.

— Muito obrigado por vossas palavras — Fanes logo estava falando diante de todos novamente — E agora... Vamos receber o futuro rei de Thaleia, Sua Alteza Real, o príncipe Edward Fiore!

Os aplausos firmes e frenéticos que se seguiram ecoaram rapidamente conforme as pessoas aclamavam, provavelmente, pelo momento mais aguardado da introdução do evento. O debute, finalmente, tinha chegado ao seu clímax.

Fanes, após uma reverência, afastou-se a passos largos e olhou para trás afim de receber a pessoa que caminhava a passos lentos na direção do palanque. Ryota estava tão vidrada na tela, na câmera que dava zoom na porta de entrada do palácio, que nem reparou quando alguém se aproximou.

— Ei! Qual o seu problema? Ah?

O braço que a puxou para longe relaxou o movimento assim que ergueu a voz, e Ryota recuou. Então suspirou de surpresa ao ver o rosto conhecido. O homem bem afeiçoado com olhos bicolores apertou os lábios de forma culpada, parando a mão no meio do ato antes de se afastar um pouco também.

Dentro do beco, as vozes, palmas e tudo o mais parecia um pouco difícil de discernir. Apenas o eco chegava até eles. E Ryota ignorou por completo toda a sua curiosidade em saber o que estava acontecendo quando milhares de palmas soaram, assim como assobios e berros quando reparou na expressão de preocupação de Luccas.

— Luccas?

— Tem um momento?

— ... Agora acho que tenho. O que aconteceu?

Ser sarcástica não era exatamente a vontade dela, porém o tom das palavras se assumiu sozinho a partir do momento em que ele simplesmente a havia arrastado até ali. De toda forma, Ryota cruzou os braços e se concentrou em Luccas, que ficou em silêncio durante algum tempo. Até que cerrou os dois punhos e disse:

— Você viu a Marie?

— A Marie? Não, acho que não.

A possibilidade de terem se cruzado durante toda a confusão era grande. Entretanto, como Ryota sequer reparou, apenas respondeu prontamente com indiferença. A testa de Luccas se enrugou.

— Entendo.

— Ela saiu andando por aí de novo? Ai, ai... É bem o jeito dela querer fazer as coisas por conta própria, né? Será que foi comprar algo pra comer enquanto assistia o Debute, ou talvez-

— Marie está desaparecida desde a noite anterior.

Ryota engasgou assim que ouviu aquelas palavras ásperas dele, travando enquanto gesticulava com as mãos. Então, lentamente se virou na direção de Luccas, desfazendo o sorriso.

— ... Como assim desaparecida? O que aconteceu?

— Ela sumiu... Hoje de manhã. Não tenho certeza de como, ou quando... Talvez tenha sido durante a noite. Só sei que, quando acordei, ela não estava em seu quarto. Eu tentei ir atrás dela, tentar descobrir qualquer coisa, mas...

O jeito com que Luccas falava, apertando a ponte do nariz com força, demonstrava o quão preocupado estava com a garota.

— Você já a procurou pela cidade toda? Não tem nem ideia do que ela possa ter ido fazer, ou...?

— Eu olhei os pontos principais, lugares onde sei que ela sabe como ir, ou que já tinha me dito ter vontade de conhecer. Entretanto...

Luccas travou de repente. Sua expressão, antes tensa, se suavizou.

— O quê? — perguntou Ryota, percebendo isso — Teve uma ideia?

— Há uma possibilidade pequena dela ter sido levada para as celas.

— Como?!

Gritos foram ouvidos da avenida principal, e percebendo que talvez não fosse seguro comentar sobre aquele tema ali, Luccas indicou com a cabeça o beco e seguiu andando com Ryota no encalço.

— A Marie sempre teve um instinto forte de sobrevivência. Se ela quer alguma coisa, ela vai fazer isso, independentemente do que esteja em seu caminho. Os roubos dela... Grande parte foram para sobrevivência, no começo. Depois, casos como o de antes ficaram... Digamos, mais comuns.

Roubar como forma de sustento, e como forma de ganhar na vida. Marie parecia alguém que faria aquele tipo de coisa por bem próprio, ou talvez por Luccas — embora este não precisasse daquele tipo de coisa. Entretanto, o orgulho e o senso de dever da menina pareciam fortes demais. Ou talvez... Fosse sua teimosia que a fizesse ser daquele jeito.

— Acha que ela saiu pra roubar durante a noite?

— Roubos pequenos são comuns na capital, então é difícil dizer com certeza. Mas, ontem, ela parecia meio distante, meio pensativa...

— Sabe a razão?

Eles atravessaram vários becos conforme falavam, olhando pelos arredores para ver se não estavam sendo seguidos ou observados durante a conversa. Se deslocavam apenas em linha reta.

— ... Talvez.

— E isso tem a ver com ela estar na cela?

— É meio complicado de explicar. Mas só tem uma forma de sabermos com certeza.

Luccas se apoiou contra a parede e Ryota o imitou, olhando para a pequena cabine onde dois guardas estavam de porte. Havia um lá dentro, assistindo a transmissão, e que logo gritou para os outros dois que estavam lá fora para correr ver o príncipe discursando algo. Eles não se preocuparam ou perceberam quando duas figuras se deslocaram para os fundos, sem fazer barulho.

— É o seguinte — sussurrou Luccas, quando estavam atrás da cabine, e apontou para a porta de madeira desgastada logo ao lado — Vou ficar de vigia e garantir que eles não entrem lá dentro. Você precisa entrar e verificar se ela está lá.

— Por que eu?

Ryota, percebendo que a responsabilidade maior recaiu repentinamente sobre suas costas, perguntou com certa rispidez. Luccas, entretanto, apenas deu uma olhada nos arredores e lentamente empurrou a porta de madeira, abrindo-a o suficiente para ver lá dentro e ter certeza de que não havia ninguém no lance de escadas.

— Não vão ser nem cinco minutos — Garantiu ele, erguendo as mãos com calma — Entra, confere se ela está lá ou não, e volta. Não precisa fazer mais nada. Quando sair, me dê um sinal que nos encontramos no beco de onde viemos. Prefiro manda-la lá para baixo porque tenho confiança que posso ganhar tempo. As chances de haver um guarda lá embaixo são mínimas. Estão todos concentrados demais no Debute pra ficarem lá embaixo. Será rápido, garanto.

Luccas tinha confiança na própria eloquência. Não era uma qualidade a ser desprezada, e Ryota conseguia acreditar nele, uma vez que seu carisma era parte de seu charme. Havia sentido isso nele desde a primeira vez que se viram.

E o que ele dizia fazia sentido: Não haviam guardas nas redondezas, estavam todos presentes ou concentrados demais nas telas acompanhando os discursos para se incomodarem com qualquer outra coisa. Olhando para as escadas, o silêncio lá embaixo parecia tranquilizador.

— Por favor — Percebendo que ela tinha hesitado por um momento, Luccas sussurrou pra ela, segurando uma das suas mãos, apertando-a — Por favor, Ryota. Eu faço o que você quiser em troca, mas preciso da sua ajuda agora.

— Eu não tava querendo nenhuma recompensa... — Ryota suspirou — Tá bom, eu vou. Assobio pra você assim que sair. Só toma cuidado, tá? A Marie nunca ia me perdoar se algo acontecesse com você.

Ele riu, colocando-se de pé, arqueando uma das sobrancelhas.

— Não se preocupe. Tome cuidado também.

Ambos acenaram com a cabeça um para o outro e dispararam para lados diferentes. Ryota, sem pensar duas vezes, começou a descer lentamente o lance de escadas gigantesco. Era um corredor de uma pessoa só, os passos ecoavam alto caso desse passos rápidos, então foi descendo devagar. Estava bastante escuro, mas sua visão logo se ajustou quando chegou ao fim.

Ryota entrou na única porta de metal fria, empurrando-a com certa força para entrar. Estava bastante frio. A única fonte de luz no pequeno local era uma janelinha minúscula de grade no alto. Várias celas, uma ao lado das outras, se seguiam. As pessoas dentro delas se encolheram, mas logo relaxaram ao perceber que não era um guarda que entrou.

Torcendo a boca e prendendo a respiração, Ryota adentrou e olhou pelos arredores, procurando pela garotinha de cabelos claros.

— Marie — Murmurou ela, meio alto — Marie?

— Uh.

Um gemido, vindo dos fundos da sala, chamou sua atenção. E Ryota logo se viu de frente para a cela de uma menina com cabelos loiros sujos, encolhida.

— Marie!

Ryota agarrou as grades e torceu o rosto para os machucados que manchavam sua pele, a sujeira em seu corpo e o cheiro forte de álcool em seus cabelos. Ela estava exausta e fraca.

— Aguenta aí. Vou te tirar daqui lo-

Um movimento rápido e ela estava segurando o braço dele. A mão que velozmente tentou segurar seu pescoço por trás agora se enrijecia conforme ela segurava seu pulso, e Ryota rapidamente conseguiu lidar com a ameaça do guarda que repentinamente tinha surgido.

Droga. Eu demorei demais? O que aconteceu com o Luccas?

Pensando naquilo, ela lentamente foi andando de costas, os olhos ainda no guarda, antes de repentinamente ser atingida. Ela sentiu a presença de uma segunda pessoa, mas foi devagar demais para impedir que ele a tocasse nas costas, então toda a sua energia foi sugada de uma só vez. Foi como um choque horrível, uma queimação que atravessou seu corpo, veia a veia, braços e pernas, e Ryota foi ao chão em lágrimas. A boca secou, o mundo girou. Passos de mais pessoas aumentaram, se misturando com vozes mais baixas e uma mais alta, de alguém que dava ordens. Então tudo escureceu.



Comentários