Volume 2 – Arco 2
Capítulo 6: Discussão
— E sabe o que mais?! Aquele Beterraba de uma figa ficou o dia todo me esculachando só porque eeeeuzinha aqui tinha gostado do desenho! Foi um absurdo, sabe? — Ryota grunhiu e deu outro gole no vinho, sentindo o líquido descer pela garganta e o rosto esquentar ainda mais.
Fuyuki gargalhou baixinho, cobrindo a boca com a mão. Ainda na varanda, elas conversavam freneticamente havia algumas horas sobre coisas aleatórias, principalmente depois que Ryota ficou bêbada após tomar uma taça inteira. Um rubor forte preenchia as maçãs do rosto e sua voz saia meio arrastada e confusa.
— Aaaah, você tá rindo mesmo, Fuyukiii? Eu fiquei muuuito triste, sabia?
— Sinto muito, é só que... — Fuyuki limpou as lágrimas dos olhos, apertando a própria barriga e sorrindo abertamente. Nesse ponto, ela havia bebido quatro vezes mais que Ryota. — Ah, desculpe, é que sua voz fica muito engraçada assim.
— Eu te perdoo só porque você é linda de morrer. Calma aí, eu já te falei isso? — Ryota riu com Fuyuki, que afirmou que aquela conversa tinha se repetido umas três vezes. — Mas, boom, tinha uma outra paradinha que eu ia te perguntar: Você conhece algum Albert, ou alguma Stella por acaso?
A duquesa piscou, levando os dedos ao queixo. Apesar da tonalidade da pergunta ter soado de forma engraçada, a jovem levou-a à sério e parou para pensar.
— Não me vem à cabeça ninguém com o nome Stella, mas ouvi falar de um certo Albert quando estive na capital real mês passado. Aparentemente, era uma pessoa da nobreza que estava envolvida com a família real e o evento da coroação do príncipe herdeiro.
Embora Ryota já imaginasse que fosse possível descobrir algo sobre Albert na capital, não esperava que fosse tão rápido. Se esse Albert mencionado por Fuyuki era o mesmo que procurava, então deveria partir para lá o quanto antes. Apenas pensar nisso fez a garota sorrir.
— Quando que vai acontecer esse evento aí?
— Em dois meses.
— Ah, perfeitinho! — Ryota juntou a ponta do indicador com o dedão formando um sinal de "ok" — É tempo mais que suficiente pra minha teoria da Maniazinha se comprovar como real ou não.
Fuyuki ficou em silêncio, parecendo não querer tocar no assunto de novo. Algum tempo se passou até Ryota decidir que deveria ir embora. Já haviam se passado alguns bons minutos desde que tinham começado a conversar e, definitivamente, apesar de estar se divertindo, não queria parecer abusada demais. Afinal, as duas tinham acabado de se conhecer, e parecer confortável demais diante de alguém de tal patamar poderia soar grosseiro. Ao menos, foi assim que Ryota interpretou a situação, apesar de sua mente estar uma bagunça completa devido ao álcool.
Com isso mente, ela pigarreou antes de falar:
— Mas, aí, valeu pelo papo. Foi muito bom falar com uma menina da minha idade, ou quase isso, sobre qualquer coisa. E, também, obrigada por ter me escutado sobre aquilo lá de antes.
Os olhos esmeralda acompanharam a garota dizer aquelas palavras num grande sorriso e seguir até a porta a passos bambos.
— Ryota.
— Hein? Que foi?
Um sorriso surgiu na face da duquesa, que a tinha parado a poucos centímetros da maçaneta.
— Pode me acompanhar até meu quarto por um momento?
***
— Coroooi que quartão!
Ainda apoiada nos ombros da duquesa para que não caísse no caminho, que logo se afastou ao chegarem no enorme quarto, Ryota ergueu o rosto e olhou curiosa para o cômodo de paredes douradas enfeitadas em branco. Girando no lugar, ela reparou na porta enorme na parede que parecia dar para uma espécie de guarda-roupa, olhou meio zonza para a cama larga de casal bem enfeitada - com um ursinho pequeno sobre ela.
Mas o que mais lhe chamou a atenção foi a mesa redonda no centro com vários livros empilhados. Se aproximando, reparou que eram todos sobre história, geografia e vários outros táticos que Ryota nunca tinha sequer ouvido falar antes. Ela pegou na mão um nomeado "Era Sombria", aberto numa página cheia de pequenos e circulares adesivos coloridos, tendo muitas anotações diferentes em letra cursiva.
— "... Entidades? Valor? O que é esse símbolo de sangue?"
— Venha. — Tomando o livro de suas mãos e o fechando abruptamente, Fuyuki arrastou Ryota para um outro canto.
O pequeno tapete azul combinava com os dois estofados onde se sentaram, um tanto longe uma da outra, em silêncio.
— Muito bem, havia algo que eu gostaria de perguntar a você.
— Uaaaau, pela seriedade, parece algo bem complicado. O que é?
A duquesa apertou os olhos na direção da garota com a cabeça inclinada de forma brincalhona, sem ter conseguido ler o clima sério.
— Você conheceu Shai, o Fatiador Mascarado, certo?
Ao concordar num grunhido e sem pensar duas vezes, a tensão no cômodo pareceu crescer. Fuyuki tinha iniciado a conversa sem enrolações e firmando o tom de voz, algo que só tinha feito durante sua discussão sobre o papel de Ryota no embate futuro com a Insanidade.
Percebendo que era algo realmente sério, Ryota lutou contra as sensações aéreas e se focou. Esfregou um pouco os braços, percebendo que a temperatura parecia ter baixado um pouco repentinamente, mas Fuyuki permanecia séria e inexpressiva. Talvez a inexpressividade fosse sua forma de demonstrar raiva.
— Mas, Fuyuki, por que me trouxe pra cá só pra perguntar isso?
— Aquele homem... Fez coisas terríveis no passado. — Ignorando sua pergunta, ela continuou a falar — Coisas imperdoáveis. Desde então, estou à procura de sua localização.
Fuyuki apertou os dedos no colo.
— É por isso que queria perguntar um pouco sobre ele em particular.
— Mas, tipo, você não falou sobre ele com o Zero ou algo assim durante a reunião?
— Sim. Mas, como alguém que mal sofreu com os efeitos alucinógenos da Insanidade, acredito que lembre melhor de sua aparência, habilidades e outras informações relevantes.
Fuyuki parecia realmente séria a respeito do assunto. Embora Ryota ainda tivesse suas dúvidas a respeito do que exatamente Zero havia lhe dito durante a reunião particular, ela se esforçou para dar todos os detalhes que se lembrava sobre o mascarado. Sobre sua vestimenta estranha, forma curiosa de falar, sua espada fina como uma agulha... Mas nada do que disse pareceu ter surpreendido Fuyuki, e ela apenas soltou um suspiro pesado ao final.
— Me desculpa, mas isso é realmente tudo o que eu sei sobre ele.
— Eu compreendo, e acredito que não esteja mentindo. Não é sua culpa.
Um sorriso sem-graça brotou no rosto de Ryota, que piscava meio freneticamente enquanto tentava pensar em algo para falar.
— ... Mas, mais importante que isso, Fuyu-
— "Mais importante"... É?
— ... Ué? Ah! Não, espera, eu falei de um jeito estranho...
Embora tivesse reparado que falar sobre o espadachim mascarado deixasse Fuyuki tensa e pensativa, Ryota nunca imaginou que o tom de sua voz pudesse se tornar rouca e fria daquele jeito. Não tão fria quanto a própria temperatura ambiente e o olhar que a duquesa dirigiu à ela após vê-la tentar se desculpar.
— ... Saia.
— Fuyuki, olha, me desculpa, eu não-
— Saia.
Mesmo com as janelas fechadas, uma onda de vento gelado atingiu Ryota, que quase foi lançada para trás. Fazendo uma careta de preocupação e culpa, ela decidiu obedecê-la e, após fazer uma reverência travada, saiu do cômodo frio e que lentamente começava a ter suas paredes cobertas por uma fina camada de gelo.
***
Estalando a língua com força, Fuyuki fechou os olhos, irritada.
Como eu sou idiota... Falando uma coisa dessas pra alguém que mal conheço.
Os arredores esfriaram rapidamente conforme sua irritação aumentava. Na verdade, a raiva não era só direcionada para a tolice que havia cometido há pouco, mas também para o homem mascarado que era o centro disso tudo.
Quando suspirou, o ar se formou numa pequenina névoa. Foi então que ela se lembrou de como o mesmo havia ocorrido algumas horas antes, durante a reunião com Zero e Sora.
Conforme o guardião relatava os acontecimentos, Fuyuki ficava mais e mais impaciente. Naturalmente, seu humor se alterava e era demonstrado por seus tiques de batucar os dedos na mesa e mexer os pés. O clima começou a esfriar.
Sora permaneceu imutável ao seu lado, mas Zero percebeu a alteração repentina no clima e esfregou as mãos.
— ... E descobri que Shai, o Fatiador Mascarado, estava presente na cena.
Foi a gota d'água. A janela se abriu com violência e os vidros tremeram, rachando. Uma ventania passou pelo cômodo e balançou tudo, mas o quarto se manteve intacto. O gêmeo direcionou seu olhar para a mestre, que tinha feito uma expressão de puro ódio naquele momento, representada pela sua inexpressividade que parecia lutar para conter a raiva interna dentro de si, antes que explodisse de uma só vez. Uma veia saltava de sua testa branca.
Mesmo Zero, que parou de falar, aguardou que a duquesa se acalmasse antes de continuar.
— Isso é tudo.
— Muito obrigada, Zero. Antes que se retire, preciso que me confirme algo.
Eles trocaram olhares.
— Aconteceu algo em especial há dois dias?
— O que quer dizer, senhorita?
— Você sabe o que quero dizer.
Não era um ponto que pretendia esconder da duquesa, mas também não gostaria de tocar nele. Ele sabia muito bem o que viria a seguir a partir do momento que colocasse Ryota como foco do assunto. Entretanto, não poderia negar uma ordem da mestre, então respondeu, após uma longa pausa:
— ... Ela completou a maioridade. — Percebendo que a duquesa continuava a encará-lo, Zero engoliu em seco — E uma situação semelhante aconteceu há dez anos.
— ... Eu sabia que não podíamos confiar nela. — disparou Sora, que parou com o olhar afiado de Zero em sua direção — Foi um erro a termos recebido nesta casa. Mestre, por favor, reconsidere sua estadia imediatamente.
— A Ryota não tem nada a ver com isso.
Sora cruzou os braços, agora demonstrando uma irritação iminente em seu olhar e voz.
— Poupe-me de suas palavras vazias. Não adianta tentar defendê-la de ser inocente agora, quando ela poderia muito bem ser a responsável pela morte dessas pessoas... Há, ou vai continuar a latir como o cachorrinho enjeitado e baldio que é por uma desafortunada?
Ao largo sorriso que Sora deu ao disparar os xingamentos, uma veia saltou da testa do guardião sentado, que prontamente se ergueu e cerrou o punho.
— Sora.
— Por favor, mestre, me permita dizer algumas verdades para seu querido e tão prestigiado guardião que está sempre fugindo com o rabo entre as pernas, antes que mais pessoas se tornem vítimas.
Ignorando a advertência de Fuyuki, Sora continuou a falar, sem desviar o olhar de Zero, que hesitava em ir até ele e erguê-lo pela gola de raiva. Estava prestes a dar um passo, quando estagnou no lugar e ouviu estalos alcançarem seus ouvidos conforme o clima esfriava cada vez mais. As paredes tomaram um tom azulado brilhante, assim como parte das pernas e rosto de ambos os guardiões, ameaçados pela moça sentada na poltrona.
— Saia, Sora.
Ouvindo-o grunhir, Fuyuki deu-lhe um olhar lateral como um último aviso antes do gêmeo se desprender do gelo que cobria o corpo, curvar-se para a mestre e sumir da sala como um vulto negro.
— Sente-se, Zero. E, por favor, continue o relatório.
Indicando com a mão, assim ela continuou a ouvi-lo falar, ignorando a pequena discussão de há pouco. Embora, no entanto, fossem informações importantes, ela sabia que Sora não estava errado e reparou que Zero não conseguia discordar das ofensas ditas sobre ele pela forma que se manteve em silêncio.
Mas não lhe cabia se intrometer em seus problemas pessoais.
Olhando pela varanda mais uma vez após se acalmar, Fuyuki usou os dedos para apertar a ponte do nariz.
— Não me diga que um novo índigo nasceu...? Droga...
***
Os longos corredores eram iluminados pelo forte brilho azulado da lua, que adentrava pelas largas janelas da mansão. Os passos ecoavam baixinho conforme andava, cumprimentando os servos que encontrava no caminho, em direção ao primeiro andar, pensativa.
A conversa com Fuyuki tinha sido bem produtiva. Na verdade, foi muito melhor do que esperava. Ryota tinha pensado que precisaria convencê-la durante um bom tempo antes dela dar seu veredicto - o que acabou de fato acontecendo, embora a duquesa tivesse deixado bem claro que suas ações eram de responsabilidade própria.
Rindo, cruzou os dedos da mão e os esticou.
— É o suficiente por enquanto... Aaah, minha cabeça tá pesadona depois de beber o vinho. Além disso... O que será que deu na Fuyuki, hein? Surtando do nada...
Seus passos cessaram quando um barulho estrondoso soou do andar de baixo, e Ryota disparou pelas escadas. Por sorte, a noite estava silenciosa o suficiente para que pudesse detectar de qual lado viera o som, e logo se visse de frente para o local de origem.
A caminho da porta, Ryota perdeu o equilíbrio e foi de encontro com a parede quando um pequeno terremoto ocorreu. Então, de repente, quebrando o silêncio mais uma vez, um grito abafado saiu do quarto ao lado.
— Será que...
Antes mesmo de poder concluir o pensamento, a porta de madeira foi aberta com toda a força e algo enorme saiu de lá. Na escuridão do corredor, ela apenas olhou para cima e cambaleou para trás quando aquilo se lançou em sua direção, fazendo um som oco ao bater na parede e grunhir algo.
Foi só quando os braços daquilo se envolveram no seu pequeno corpo, quase a fazendo cair pelo peso, que Ryota reconheceu a voz grogue no ouvido:
— ... Ryo!!
Ryota prendeu a respiração, tentando segurar as lágrimas que brotaram em seus olhos, antes de devolver o abraço apertado. Seus lábios se contorceram num sorriso torto e trêmulo.
— Sim, sou eu, tio.
Acalmando Jaisen, que tremia em meio às lágrimas e grunhidos, Ryota sinalizou que estava tudo bem para Eliza, que suspirou de alívio ao ver que o paciente tinha se acalmado.