Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 7: O Maior Temor do Subconsciente

De forma meio desastrada, a garota tímida tentou novamente levar a colher com sopa para a boca do homem sentado na cama, que mais uma vez grunhiu e a fez se afastar.

— Eu já falei que posso comer sozinho, guria!

— M-Mas, senhor... Seu corpo a-ainda está-

— Hã?! O que foi? Fala mais alto que não te ouvi!

Eliza se assustou com o tom de voz de Jaisen, que tinha avançado um pouco contra a garota sentada num pequeno banco ao lado esquerdo da cama, deixando escapar uma gota da sopa no lençol branco. Pedindo desculpas pela sua falta de atenção e se erguendo rapidamente, ela correu para limpar a sujeira e tropeçou no caminho.

Um tapa voou no braço de Jaisen, e, embora não tenha sido feito com intenção de doer, ainda assim ele recuou.

— Ei, tio! Você tá sendo muito grosso com ela. E pára com esse seu jeito ranzinza aí.

Parecendo bastante sensível ao toque, Ryota ameaçou dar um beliscão quando Jaisen revirou os olhos, embora tenha recuado mais um pouco para evitar que ela o fizesse. O trio estava de volta ao quarto cerca de meia hora depois do reencontro. Ainda era possível ver as marcas das lágrimas que deixaram seus olhos um pouco enrugados.

Mas não eram só aquelas marcas que deixavam o rosto dele estranho. Jaisen estava em um estado meio terrível, parecendo fraco e com muito stress - não apenas físico, como Ryota pôde perceber pelas caretas de irritação que o tio fazia, estando bem mais tenso que o comum, coisa que a perturbou e preocupou internamente.

— E-Está tudo bem, senhorita... Já estou acostumada com isso. — Eliza suspirou em resposta com um sorriso fraco, ainda parecendo temer encarar o paciente.

— Não tá nada. O tio só tá agindo assim por pura birra. Aqui, deixa que eu cuido disso. — Ryota se apressou para pegar o prato com sopa e deu dois tapinhas no ombro de Eliza, que estremeceu ao toque — Pode nos deixar à sós por alguns minutos?

A curandeira abriu a boca para retrucar, mas acabou parando quando percebeu uma chama de seriedade nos olhos azuis da garota. Então, Eliza prontamente endireitou a postura e acenou com a cabeça.

— Muito bem. S-Se precisarem de mim toquem o sino...

O quarto entrou num silêncio quase profundo quando a jovem saiu pela porta e a fechou silenciosamente atrás de si. Ryota tamborilou a colher no prato, fazendo um som meio agudo, como se tentasse focar naquilo que precisava fazer. Ou melhor, naquilo que precisava contar à Jaisen.

A destruição de Aurora e o que tinha acontecido aos moradores. 

Era um tema delicado que nem mesmo Ryota gostava de pensar. As memórias voltavam facilmente ao ocorrido, como sempre acontecia quando ela pensava em situações ruins que tinha passado. Foi quando lembrou-se, mais uma vez, de que a maldição ainda estava bastante sensível. Precisava ter cuidado com o que fosse dizer, e como iria dizer.

Por isso, forçando um sorriso simpático, ela ergueu a colher:

— B-Bom... Pega aqui mais um aviãozinho! Diga "aaah".

Sem reclamar, Jaisen aceitou a colherada e engoliu a sopa - agora morna. 

— Ah, tio Jaisen? Tem uma coisa que eu realmente preciso te falar. É sobre... Sobre o que aconteceu antes lá em Aurora. — Seus dedos começaram a tremer, e o sorriso a desmanchar — Olha, na verdade...

— ... Todos morreram, não é?

Um tanto surpresa pela dedução rápida, Ryota ergueu o rosto para Jaisen. Ele estreitou os olhos marrons quando a garota assentiu devagar.

— Foi há uns dois dias. Sobraram só eu, o Zero e você.

Embora tivesse acontecido há "tanto" tempo, as memórias do ocorrido surgiam como se tivesse presenciado o inferno há só alguns minutos atrás. Engolindo em seco, Ryota inspirou fundo e tentou continuar:

— ... Me perdoa. Eu não pude fazer nada. Nem por você, nem pela Nessa, nem... Por ninguém.

Suas sobrancelhas e lábios se contorceram, formando uma expressão melancólica em seu rosto. 

— Eu tava lá. Eu vi tudo acontecer, mas só pude assistir. 

Ela viu o fogo se espalhar. Os corpos caídos. O sangue escorrendo e respingando. Ouviu os gritos de desespero e os grunhidos altos de agonia. Encarou a Insanidade e memorizou os traços de seu sorriso diabólico. 

Sim, ela viu. E ver foi tudo o que ela fez.

Mesmo agora, enquanto tentava organizar os próprios pensamentos e palavras, frustração e arrependimento inundavam seu coração ao ponto de sentir vergonha. Seu rosto queimava. Seus olhos ardiam suportando as lágrimas.

Não conseguia nem olhar mais nos olhos de Jaisen, que ficou em silêncio...

— Ryota, não foi culpa sua. Foi nossa. Sempre foi.

— ... Hã?

— Era o nosso destino. Nosso fim chegaria em algum momento. Todo mundo sabia disso. A gente só não esperava que você estivesse lá na hora. Deveria ter sido diferente.

... Até ele começar a falar. A dizer coisas que Ryota não conseguia entender. Palavras ditas como num murmúrio melancólico e solitário enquanto encarava o teto com olhos vazios, até, finalmente, eles se voltarem para o rosto da jovem.

— Espera, calma. Tio, do que você tá-

— ... Era pra eu ter morrido.

Ela escutou um zumbido no ouvido. Prendeu a respiração, e seus lábios abriram devagar. Não só dubiedade, mas também certo medo estampavam o rosto de Ryota.

— Por que eu tô vivo?

— ... Como assim "por quê"? Eu não... Jaisen, o que você...

Ryota apertou o braço enfaixado do tio e o ergueu, chamando sua atenção com certa ansiedade. O calor subia por seu corpo de forma fervente, mas as palavras não saiam direito. O coração disparou ao vê-lo daquele jeito cabisbaixo, falando de uma forma completamente diferente do tio rabugento que conhecia.

Tudo o que pôde fazer enquanto ouvia Jaisen se lamentar foi morder os lábios com força.

— Era pra só você e o Zero terem sobrevivido... E os pecadores imundos terem queimado e sucumbido.

***

O crepúsculo parecia solitário com a enorme lua no céu. Carregando dois livros, parou para admirar a noite e o forte brilho que abraçava todo o jardim da mansão, deixando-a com um aspecto fantasioso entre o preto e o branco.

— Aaah, nossa, como esfriou hoje. Até começou a nublar... — suspirando, Eliza entrelaçou os pequenos dedos frios e falou consigo mesma, admirada com a vista — Será que o inverno virá mais cedo esse ano?

— Está sofrendo de ataques esquizofrênicos novamente, madame Eliza?

Engasgando com a voz que cortou o silêncio de repente, Eliza deu um salto e virou, se deparando com alguém quase imperceptível saindo das sombras com seus reluzentes olhos vermelhos.

— S-Sora... É você.

— Algum problema com isso?

— Ja-Jamais! Só fiquei... M-Meio surpresa. Ah, há, há... Ah. — Um tanto nervosa, ela riu sozinha quando o gêmeo andou até o seu lado em silêncio, mantendo as mãos atrás do corpo.

Mesmo que o gaguejar denunciasse seu nervosismo, Eliza estava mais surpresa do que nunca. Ela não era alguém que costumava puxar assunto ou dialogar com muita frequência, nem mesmo com aqueles que era próxima. Então, estar ao lado de um companheiro de trabalho - que, por sinal, era absurdamente assustador e emanava uma aura afiada - era uma situação que jamais tinha considerado estar.

Ainda mais sozinhos. No meio da noite. Numa casa gigantesca em que sons poderiam facilmente serem perdidos dependendo de onde viessem. 

— É raro te ver andando pela mansão despreocupadamente.

O olhar lateral que Sora lhe deu a fez se arrepiar por um momento, e ela quase deixou os livros caírem quando percebeu que ele estava falando com ela - pela primeira vez, sem ser instigado pela irmã ou pela duquesa.

— É-É mesmo?! 

Então o quê?! Isso é um sinal de perigo?! Eu não deveria estar aqui? Será que eu atrapalhei a ronda noturna deles? Que cara é essa? Será que ele ficou irritado com o que falei? Ah, Deuses, ele me olhou de lado... Iiiih! Ele vai me matar!

— E então? Como ela está?

Envolta nos próprios pensamentos que giravam e giravam, Eliza mais uma vez demorou a entender com quem ele estava falando. Pela forma que tinha arrastado o "ela", pôde compreender a quem o guardião se referia.

— Ah... A senhorita Ryota, não é? Ela está conversando com o s-senhor Jaisen em seus a-aposentos. — Percebendo a mudança na expressão do outro, Eliza acabou gaguejando o final da frase e abaixou a voz. — M-mas e-ela tem sido-

— ... Um estorvo. — Estalando a língua, Sora apertou os olhos com raiva antes de se voltar para a jovem trêmula ao lado, e reverenciá-la. — Com sua licença.

Então, num piscar de olhos, ele desapareceu na escuridão da noite sem fazer qualquer barulho. 

E a curandeira, quase tendo um ataque do coração, soltou um longo suspiro de alívio, quase caindo de joelhos ali mesmo.

***

O silêncio da noite era acolhedor. Os pequenos barulhos de insetos e pequenos animais vindos da floresta causavam certo conforto nela. Era quase uma música para seus ouvidos. Sentada de forma que pudesse se movimentar a qualquer sinal de perigo, Kanami fechou os olhos quando o vento balançou seus longos cabelos negros, e um som a mais de movimento foi detectado atrás de si.

A faca, que passou raspando por sua bochecha, foi segurada com os dedos indicador e do meio. Kanami, sem mudar de posição ou desviar os olhos do jardim, lançou-a de volta para o rapaz que parou atrás dela.

— A mansão está ordem por enquanto, meu irmão.

Sora estreitou os olhos.

— Você não parece muito certa disso, minha irmã. 

— ... Há um rastro incômodo nas redondezas, mas estou de olho nele. Não precisa se preocupar.

Erguendo o rosto pálido, Kanami falava com o tom de voz baixo para o gêmeo, que parecia um pouco diferente naquela noite. Embora não tenha dito nada, ela percebeu que sua aura estava um pouco instável.

— É por causa dela?

— Não quero falar sobre isso.

Kanami inspirou fundo e se ergueu, girando suavemente os ombros. Sora olhou para a irmã por um momento e a deixou partir nas sombras com um pequeno uivo.

***

— Desculpe, Ryo. Acho que apressei demais as coisas... — Os olhos cansados e vazios de Jaisen se ergueram para a garota paralisada ao lado da cama — Na verdade, eu preciso te contar uma coisa.

Ela não queria ouvir. Queria tapar os ouvidos e sair daquela sala. Queria dizer que não se importava com nada que ele fosse dizer. Não precisava saber. Não queria saber. 

— Aurora era...

Pára. Por favor. Não fala. Eu não quero mais saber de nada... Eu não preciso. Porque se eu souber... Eu vou...

Jaisen hesitou um pouco ao ver a expressão de tristeza e desespero que a garota fez, sentindo um aperto no coração. Entretanto, era preciso falar. Ela precisava e tinha o direito de saber.

— ... Um refúgio. Um abrigo para pecadores, para pessoas que sujaram suas mãos no passado.

— ... Um refúgio. Um abrigo. Todos...

Ela repetiu as palavras como se tentasse processá-las. Como se aquilo não tivesse ligação com a sua terra natal. Com o lugar que cresceu envolta de tantas pessoas incríveis. As pessoas que eram sua família, que amava e prezava...

Jaisen assentiu para ela.

— Nós sabíamos que esse dia chegaria. O momento em que nossos pecados precisariam ser pagos com nossas vidas, e não só fugindo de tudo. Fingindo começar a vida do zero, como se nunca tivéssemos feito nada. Como se o passado nunca tivesse existido. — Ele piscou, lembrando de algo — Foi tudo graças ao Albert. Ele nos deu uma família, uma casa e um recomeço.

— ... O vovô? Então, a minha mãe também... 

— ... Sim. Por favor, me escute até o final, Ryo. Você precisa saber-

— Saber agora? Depois da desgraça já ter acontecido? Do que adianta?

A voz dela falhava toda vez que tentava se recompor. Ryota já não conseguia olhar para o tio. Seu punho cerrou quando ouviu seu pedido em voz baixa, e ela franziu ainda mais a testa, agora de pé no quarto.

— Quando fomos pra Aurora, um lugar tão longe de tudo, achamos que poderíamos começar de novo. Ninguém se importava com o passado de ninguém. A gente não precisava falar, porque não importava. Todo mundo só queria... — A pausa que Jaisen fez foi dura, e ele pareceu prender a respiração por um momento — As crianças do vilarejo não sabiam de nada, é claro. Não tinha como a gente contar tudo isso pra elas, não enquanto não fossem adultas de verdade. Íamos te dizer em algum momento... Mas era difícil... Muito.

Ryota não conseguia imaginar o que Jaisen estava pensando, e nem queria saber. Não agora. Ainda era meio difícil processar tudo o que tinha acontecido em tão pouco tempo, e logo agora... Justo depois dela ter decidido carregar todo o peso sozinha... Justo quando ela buscava loucamente uma forma de compensar pelo o que tinha - ou melhor, pelo o que não tinha feito...

— Me desculpa, Ryo. 

— Isso é idiota. Um absurdo. Eu não... Não posso aceitar isso, Jaisen.

Ryota levou as mãos à cabeça, como se fosse enlouquecer a qualquer momento. Ela queria gritar. Queria chorar. Queria desaparecer de uma vez. Não queria ouvir, pensar ou refletir sobre nada.

— E você tem todo o direito de estar brava. De nos odiar. Fomos burros. Um bando de irresponsáveis, e eu não queria que você passasse por isso... O cenário ideal era que nós morrêssemos com nossos segredos pra sempre. Como deveria ser. Mas eu acabei sobrevivendo, e achei... Achei que...

— "Achou" o quê? E as crianças? Vocês não pensaram nem um pouco nelas? Achou que eu ia aceitar as coisas como foram porque vocês mereciam isso? Que se contasse essa parada toda, ia ficar mais fácil de entender e aceitar? Hã? Eu não... Ah... Não tem como eu odiar vocês assim! Vocês são minha família, droga! Vocês... Eram minha família...!

Perdendo as forças nas pernas, Ryota caiu de joelhos no chão com as mãos na cabeça, grunhindo baixo. Engoliu em seco e inspirou fundo com dificuldade, tentando suportar a vontade de gritar, de praguejar e xingar... Do que adiantaria falar isso agora?

Já era tarde demais.

— Eu não me importo com o que aconteceu antes. Eu não ligo, não tem nada a ver comigo. Vocês cuidaram de mim, me amaram, me ensinaram a viver... Vocês eram minha família. Não tem como eu odiar vocês desse jeito, Jaisen! Não dá... Não importa o que você diga! Mas... Só... — As lágrimas abafadas de dor começaram a escorrer, interrompendo seus pensamentos... Ela nem estava conseguindo mais pensar. — Eu entendo como você se sente. Eu queria ter morrido junto, naquele momento. Não adianta nada viver e ficar sozinha... Mas também não adianta nada quando as coisas vão sendo tiradas de mim desse jeito...! Pouco a pouco... Vão sendo levadas e eu nem consigo fazer nada pra impedir! Não importa o quanto eu queira... Meu corpo... Nunca se moveu...

Não era a primeira vez que tinha sido abandonada. Que tinha assistido as coisas acontecerem sem fazer nada... Sem poder fazer nada. Sem saber o que estava acontecendo, e só saber quando era tarde demais. Que tinha tido medo demais pra se mexer e tentar mudar a situação.

— ... Não tem sentido nenhum... Não adianta... Não adianta! Que raiva! Se vou ficar sozinha no final, se eu não tiver ninguém do meu lado, se eu não tiver uma casa pra voltar, se for pra eu ficar viva e me remoendo com esse ódio dentro de mim... Do que adianta, caralho?!

O punho dela socou o chão repetidas vezes até afundar no último golpe, as lágrimas caiando sobre ele como uma pequena cachoeira. Os soluços ecoavam sozinhos no quarto. Solitários e perdidos. 

***

— C-Com licença... Posso... Ué?! Senhorita Ryota, o que houve?! Seu rosto...

— Eu tô legal. Não esquenta com isso... Boa noite, Eliza. E foi mal pela bagunça, eu pago por isso depois.

Ao abrir a porta e se deparar com uma Ryota de olhos inchados, lábios rachados - com um pouco de sangue - e uma tensão pairando no ar, Eliza estagnou e apenas perguntou à garota o que havia ocorrido. Entretanto, ela apenas desvencilhou do assunto e saiu sem olhar para a curandeira, caminhando a passos lentos para fora.

Eliza, sem entender o que tinha acontecido, voltou sua atenção para Jaisen, que tinha deitado na cama e estava de olhos fechados, mas não parecia dormir.

— ... O que foi que... Aconteceu?

Sussurrando pra si mesma, ela apenas fechou a porta do cômodo e tomou um susto ao ver o grande buraco feito no chão ao lado da cama, e pedaços de piso espalhados pra todo lado.



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