Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 4: Retribuição

Um suor frio escorreu por seu rosto enquanto ainda mantinha o contato visual com ele. O guardião de cabelos longos e negros ergueu o queixo e manteve o olhar nela, como se a testasse em silêncio. Naquele momento, mais do que nas outras vezes, Sora parecia irritado de verdade. 

Ué? Ele não devia estar na sala em reunião com a Fuyuki e o Zero?

— Meu irmão, está sendo extremamente rude com a convidada. Desculpe-se imediatamente. — Kanami interferiu no silêncio tenso dando um passo à frente, ríspida.

Sora mudou seu olhar para a irmã e sua expressão murchou.

— Sinto muito, irmãzinha. Não era de minha intenção prejudicar a frágil moral de nossa convidada. — O tom colocado na palavra final deixava claro que Sora não tinha abaixado a cabeça ainda.

Mas, mais do isso, ficou claro pra Ryota que o guardião continuaria a provocá-la nos próximos dias. Ela precisou de muita força de vontade pra não revidar como sempre fazia com Zero, pois tinha ciência de que não tinham intimidade para tal. 

E estava claro como o dia que ele não gostava nem um pouco dela.

— Pare de resmungar.

— Ai!

A inexpressiva e sempre direta Kanami deu um tapa violento na nuca do irmão mais velho, curvando as sobrancelhas pela primeira vez. Ryota piscou algumas vezes, esperando alguma reação explosiva dele, mas Sora fez uma careta ainda maior — lê-se bico — e desviou o olhar, finalmente. A gêmea pôs uma mão na cintura e gesticulou:

— Quantas vezes precisarei repetir até que melhore esse seu comportamento? Faça o favor de não nos envergonhar mais, entendido?

Caraca, a irmãzinha deu um puta dum tapão na nuca dele... 

Ouvindo um barulho vindo de trás, os gêmeos se voltaram para Ryota.

— Algum problema, senhorita?

— Algum problema, ô senhorita?

Ela virou o rosto cobrindo a risada que queria escapar, embora o jeito que Sora a fitou deixou bem claro que tinha percebido o que estava escondendo. Ryota agradeceu mentalmente pela existência de Kanami.

— ... S-Sim. Eu só... Engasguei. — Ryota pigarreou, ao que a irmã mais nova apenas piscou, aceitando a resposta. Mas, atrás dela, um par de olhos encarava a garota com ódio. Então, a garota bateu palmas, ainda lutando contra o riso. — Por que não continuamos a conversa no jardim? Ah, há, há... Há?

Os irmãos inclinaram a cabeça simultaneamente para o mesmo lado.

***

O jardim era tão extenso que parecia mais um campo aberto com estradinhas de pedra e moitas bem ornamentadas. Já estava começando a entardecer, e o sol os alcançava pelos lados e costas conforme os gêmeos guiavam Ryota pelos arredores.

No entanto, o trajeto era uma mistura de um silêncio desconfortável e das falhas tentativas de puxar conversa sendo quebradas por Sora. Kanami nunca se colocava à disposição para falar qualquer coisa, o que dificultava um pouco a interação e a iniciativa da convidada levemente ansiosa.

Mesmo depois daquilo tudo, Ryota tentou fazer mais uma tentativa, embora temesse uma repreensão dura de algum deles.

— Então... A reunião ainda tá rolando lá em cima?

— ... Sim.

Ryota não sabia dizer se a forma que Sora respondeu foi somente natural à ela, ou soou um pouco diferente. Talvez tivesse acontecido algo e ele foi colocado pra fora? Nesse caso, estariam Fuyuki e Zero sozinhos?

— Aaah, entendi. Mas, ei, que tipo de relação tem um guardião e seu mestre? 

Ela viu Sora bufar, mas foi Kanami quem respondeu, virando suavemente o rosto para trás:

— Um mestre é alguém de respeito e grande importância para a sociedade, então é natural que haja pessoas para apoiá-lo. Guardiões ocupam esse espaço e atuam conforme o mestre deseja.

— Então é tipo um guarda-costas?

A gêmea considerou aquilo por um momento antes de assentir.

— Entendi... Deve ser uma posição bem privilegiada. — Pensando em Zero, Ryota considerou mais uma vez o quão especial e incrível ele era. Mesmo trabalhando para alguém com um patamar tão alto e tendo habilidades absurdas, o rapaz sempre se dispunha a ajudá-la sem pedir nada em troca. 

Por um instante, se perguntou qual o motivo de fazer tanto por ela, embora fosse meio idiota questionar a bondade de alguém, ainda mais de um amigo de longa data, onde era natural um ajudar ao outro simplesmente por se gostarem e possuírem um laço a longo prazo. Afinal, da mesma forma que Zero tinha se proposto a ficar ao seu lado e se sacrificar diversas vezes por ela — fisicamente ou não —, Ryota também gostaria de retribuir por tais ações e sentimentos.

— Se a senhorita está pensando no Zero, fique tranquila. Nossa graciosa mestre não teria nenhum caso estranho com um guardião meia boca como ele. Por isso — Sora, com os braços atrás do corpo, olhou-a de relance — Não precisa ficar com ciúmes.

Era perceptível uma dúvida no rosto de Ryota e Kanami. Quase como se uma grande interrogação tivesse sido estampada, ambas interrogaram, respectivamente:

— Ciúmes?

— Um caso?

— ... Esqueçam. 

Foi quando Ryota disparou:

— Calma aí. Tu chamou o Zero do quê?

— Ficou surda, senhorita? Ou talvez sua memória seja só terrível por conta da sua falta de autodiscernimento?

A boca dela se torceu, e, sem hesitar, Ryota agarrou o ombro do gêmeo, o parando.

— Pouco me importa o que você tá falando de mim com suas palavrinhas metidas a chiques, mas é melhor não falar dele assim na minha frente. 

Sora apertou firmemente os olhos para a mão em seu ombro, como se visse um inseto grotesco.

É mesmo? Huh. E o que a senhorita pensa em fazer? Chorar e espernear como a dileta mimada que é?

Ela queria socar a cara dele. Bem forte. Conforme continuavam a se encarar, a mão de Ryota tremia um pouquinho, mas ela tentava não se intimidar com sua presença. Sora emanava uma aura fria e afiada, como se pudesse matá-la a qualquer momento. Seus braços se arrepiaram quando ele suspirou e o ar soprado bateu em sua mão, quase como num aviso para se afastar.

— Meu irmão. Ryota. Parem com essa discussão imediatamente. — Kanami se intrometeu prontamente, tirando com cuidado a mão do ombro do irmão, olhando para os dois. — Tenha um pouco de paciência com ele, por favor. Meu irmão pode ser um pouco rude com as palavras, mas garanto que ele só tem boas intenções.

— E desde quando a senhorita convidada passou a ser chamada pelo nome por você?

— A partir do momento em que a Ryota se tornou uma das prioridades da mestre Minami e merece tanto respeito quanto qualquer um de nós. Por isso, meu caro irmão, se for para abrir a boca e dizer coisas desagradáveis sobre qualquer um deles, mantenha-se calado.

Segurando o pulso com a mão, Ryota assistiu a conversa entre eles se desenrolar rapidamente, e Kanami prontamente calar Sora, que, ao contrário de mais cedo, não aliviou a expressão de raiva e somente estalou a língua.

***

O café da tarde foi servido no pergolado do jardim. O mordomo e uma das empregadas apresentaram a refeição constituída de vários pães, bolinhos coloridos, frutas cortadas em formatos bonitinhos, chá e café. Esperava que, depois da tensão no jardim, ela pudesse ter um tempo pra si mesma e relaxar sozinha, pois Kanami dissera que precisavam partir por um momento. E ambos sumiram num piscar de olhos, nas sombras.

O bolo que comia era fofinho e gostoso, mas o café puro parecia de outro mundo. Ryota já nem sabia mais quantas daquelas pequeninas xícaras já tinha tomado quando uma batida na porta alcançou seus ouvidos.

— Quantos bolos você já comeu, hein?

— Foram só uns pedacinhos, eu juro! — Erguendo as mãos como que pedindo por redenção, se virou sorridente para Zero, que estava parado na porta. — E não é que você fica bem de moletom? 

A camiseta larga azul parecia algo bem confortável de se usar unido da calça cinza de moletom dele. Era uma vestimenta tão destoante do cenário que estavam que ele mais parecia estar na própria casa que numa mansão nobre. 

— Fica quieta e limpa essa boca toda suja de chocolate.

Passando por ela, Zero fez menção de tocar sua cabeça, mas acabou hesitando e só se sentou ao seu lado. Ele a observou limpar as manchas da bochecha com o guardanapo antes de passar os olhos por seu cabelo enfeitado. Seus lábios se comprimiram uma vez antes dele os tapar com os dedos e baixar os olhos.

— Você também está linda...

— Sério? Ou tá só me bajulando? 

— Acha mesmo que eu bajularia você? — Ele sorriu para o riso dela, e apoiou o cotovelo na mesa redonda branca antes de aproximar a mão dos cabelos dela, passando os fios por seus dedos. 

Só até reparar no pingente azul cintilante, e parar. Ryota tinha começado a falar algo sobre as presilhas combinarem com o colar, mas Zero nem conseguia prestar atenção nas palavras dela. Nesse momento, enquanto a garota continuava a tagarelar como sempre, ele contemplou a beleza da jovem durante um momento, até que, percebendo que precisaria quebrar aquele feitiço por conta própria, o rapaz forçou um pedaço da torta de limão na boca dela, a fazendo mudar o foco para a mastigação.

Foi o suficiente para que ele escondesse o rosto enrubescido e o sorriso emocionado embaixo da mão.

Os minutos seguintes se seguiram com Ryota contando como foi seu passeio pela mansão, e também descrevendo o momento meio complicado que teve com Sora há pouco. Por sorte, Kanami também estava presente e impediu que um conflito acontecesse —  obviamente, ela não explicou que a briga aconteceu por causa de Zero. 

— O Sora sempre foi muito cabeça-quente. Mas, deixando isso de lado, fico feliz que esteja gostando da estadia.

— É. Sim, estou. — Ryota abaixou o olhar, e recebeu uma cutucada de Zero. — É sério. Ah, tá, mais ou menos, mas seria muito rude da minha parte reclamar de como todo mundo foi legal comigo.

— Com exceções.

— É, com umas exceções aí. É só que...

Seus olhos azuis se voltaram para o jardim.

— Eles foram tão legais que me senti até mal. Tipo, ok, eu entendi que era toda uma cortesia da duquesa pra gente relaxar, e tal, mas eu me sinto meio estranha. É quase como se eu estivesse sendo premiada por algo que não fiz...

Na verdade, eu não fiz nada até agora.

— E isso não é só com eles aqui da mansão, mas com você também, Zero. — Ela começou a brincar com os dedos na mesa — Você tá sempre me ajudando, me dando conselhos e fazendo um monte por mim, quando eu nunca pude fazer nada em troca. 

Não era só um sentimento de culpa ou remorso. Era uma obrigação que pesava em seus ombros. Ryota sentia como se precisasse retribuir tudo o que os outros lhe davam, porque ela não fez nada para evitar o desastre e precisava arcar com as consequências disso. 

Ela não estava dizendo que deveria saber sobre a possibilidade do incidente. Entretanto, ela teve a oportunidade de salvar duas pessoas, mas não o fez. No mínimo, parte dela se remoía por não ter feito mais quando poderia.

— Você não precisa me retribuir, Ryota. — Os dois pares de olhos se encontraram. — Não é como se eu quisesse algo em troca por isso, sabe? Eu só estou ao seu lado porque você também está do meu. E isso é tudo.

Ryota deu um grunhido meio insatisfeito para a resposta dele. Zero sorriu antes de continuar:

— Mas se quiser devolver o favor, tem algo que eu gostaria. 

— Sério? O quê?

— Bom... Eh.

O rapaz começou a falar, mas então hesitou e parou.

— Na verdade, deixa pra lá.

— Nananinanão! Começou a falar, termina! 

— ... Ugh.

Zero soltou um resmungo que dizia claramente que estava arrependido por ter abrido a boca. Porém, sob o olhar incitante da garota, ele não teve qualquer escolha a não ser continuar com a voz baixa:

— ... Tem essa cidade do ducado Minami chamada Puccón, sabe? Um dia desses... Digo, ah, bom... Eu gostaria de ir lá... C-Com você.

Os lábios dela se comprimiram enquanto refletia a respeito do pedido dele.

— Só nós dois?

— ... Sim.

— Por quê?

— Porque... Porque é um lugar bem grande, cheio de cachoeiras e marcações histórias. A-Acho que é o tipo de lugar que você gostaria de ir visitar... 

Ela deu um soquinho na própria mão, concordando em silêncio. Ryota não questionou mais, embora ainda tivesse algumas dúvidas de como era o lugar e o motivo dele ter escolhido um onde ela gostaria de ir, ao invés de um onde ele queria visitar. 

Enquanto o tempo ia passando e ambos conversavam sobre qualquer coisa, Ryota continuou a pensar sobre as palavras de Zero. Mas ainda não estava convencida de que poderia simplesmente aceitar as coisas como eram de mão beijada. Precisava fazer alguma coisa, principalmente depois de ter prometido matar a Entidade da Insanidade. 

Se não pudesse cumprir com as próprias palavras, como os outros confiariam nela? Agora, mais do que tudo, precisava começar a agir de verdade. E, para isso, tinha que se colocar na linha de frente.

***

Caminhou até o segundo andar, em direção à porta ao final do corredor, mas acabou hesitando quando ergueu o punho para bater na porta. Ela resfolegou quando uma voz chegou aos seus ouvidos, vindo detrás de si:

— Precisa de alguma coisa, senhorita?

Ryota se virou apenas para ver Sora parado a alguma distância dela com uma expressão neutra.

— S-Sim. Eu queria falar com a duquesa, mas não sei se preciso marcar horário ou algo assim... Não quero incomodar.

— Muito bem. Aguarde um instante. — Após uma análise visual, Sora assim ciciou, antes de sumir nas sombras no corredor. Literalmente.

Demorou só meio minuto para a maçaneta ser aberta, e Ryota ver que o guardião gêmeo havia retornado e abria a porta por dentro, indicando que poderia entrar. Um tanto hesitante, ela adentrou no cômodo e logo avistou a pessoa que queria ver apoiada na bancada de sua varanda, bebendo algo de uma taça.

— Pode se retirar, Sora.

Ele olhou mais uma vez para as duas figuras antes de sumir, deixando uma bela sob a luz da lua, e a outra aflita sob a escuridão.



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