Volume 2 – Arco 2
Capítulo 17: Sem Levar à Sério
Ryota estreitou os olhos e franziu a testa ao sentir uma ligeira dor lhe subir pelo corpo. Foi como uma pinicação profunda que fazia a pele formigar como nunca.
— P-perdoe-me, senhorita Ryota. Está doendo?
Eliza se sobressaltou ao ver uma reação diferente no rosto dela e acabou diminuindo a quantidade de chi imbuída no tratamento. Ryota estava sentada com Eliza ajoelhada logo à sua frente, as duas mãos unidas diante de um dos machucados da garota.Vendo a curandeira entrar em choque, apenas soltou uma risada sem graça e balançou a cabeça:
— Nah, relaxa… Eu só tava vendo que a floresta virou uma confusão total.
— Sim.
Sora concordou com um murmúrio, encostado numa árvore próxima a elas. A névoa não havia se extinguido, mas diminuíra de tamanho de forma considerável. No entanto, ainda era possível ouvir barulhos ao longe de um combate perigoso. O guardião fez uma cara amarga para a fumaça negra que subiu em meio às copas das árvores.
O encontro entre os três tinha acontecido há menos de dez minutos, após teleportarem para perto da mansão. A curandeira se assustou com o estado terrível que Ryota se encontrava e iniciou o tratamento imediatamente. Sora, para sua surpresa, estava praticamente intacto, com exceção de alguns arranhões superficiais na pele.
O céu começou a se fechar. Nuvens negras se aproximavam, o sol se escondendo atrás delas. Era um mal presságio.
— Madame Eliza, cuide da cabeça de vento por enquanto e se reúnam com a mestre Fuyuki. — Sora se aproximou delas e assim disse, tocando os dois anéis nos dedos. — Irei terminar minha tarefa e retornaremos em alguns minutos.
Eliza, após um segundo, assentiu. Não houve qualquer aura de dúvida ou discórdia entre eles. Parecia uma relação profissional, digna de ser estabelecida após estarem trabalhando juntos há algum tempo. A comunicação era impecável.
— “Cabeça de vento” é meu novo apelido…? Legal. — sussurrou Ryota de forma sarcástica antes de olhar para o guardião. — Toma cuidado, ô cabelinho. E cuida da Kanami.
O rapaz deu de ombros, rindo com o nariz, e sumiu nas sombras.
— … Eles são rápidos mesmo, né?
— Sem dúvidas. Os Akai têm habilidades físicas impressionantes, e também possuem um longo histórico de lealdade para com os seus mestres. Não é à toa que todos os nobres sempre desejam contratá-los.
— Sério? Que maneiro.
Eliza torceu os lábios, não parecendo concordar muito.
— Embora a família Akai seja muito famosa no mundo todo por suas habilidades assassinas e treinamento árduo, os membros são considerados muito perigosos. E, também, as suas vidas não foram nada fáceis comparadas às de muitos outros nobres, por aí.
Será que é por isso que os dois são tão fechados? Achei que era algo relacionado à personalidade deles como gêmeos, ou algo assim, mas…
Repensando nas coisas ditas e nas ações tomadas por eles, principalmente por Sora - que era mais radical -, ambos tinham em mente uma ideologia forte e racional.
E também tinha aquela coisa maluca que ocorreu na luta entre ela e o gêmeo, na noite anterior. Sora pareceu perder o seu raciocínio, tomado por um estímulo brutal de combate. Como se tivesse virado uma besta por sangue.
Relembrar aquilo a fazia estremecer.
— … Eles vão ficar bem, não é?
— É claro. Não é à toa que os dois são os guardiões particulares da duquesa Minami.
Ouvindo uma resposta clara e confiante no que dizia, Ryota suspirou. Já tinha visto de perto as capacidades de combate de um dos gêmeos, então se preocupar com Kanami, que deveria ter um poder equiparável ao dele, era idiota. Rindo de si mesma, observou Eliza terminar de limpar o sangue. Todos os ferimentos foram cicatrizados e fechados. Ryota movimentou o corpo um pouco, ainda sentada no chão.
— T-Tome cuidado, s-senhorita. Você perdeu s-sangue demais, então deveria… Ficar aqui.
A garota, ouvindo aquilo, fez um grunhido de insatisfação e se colocou de pé, apontando para trás com o dedão.
— Nem pensar. Eu vou entrar na mansão junto com você.
— M-Mas… S-Seu corpo…
A curandeira, mexendo os dedos, estava claramente preocupada com seu estado de saúde. Afinal, da mesma forma que ocorrera com Jaisen, mesmo que os machucados sejam curados, a perda de sangue e chi não podia ser restaurada. Era preciso repousar. Estava fraca demais para fazer qualquer coisa.
Podia sentir os dedos tremerem ao fazer qualquer mísero movimento. Estava meio zonza, o corpo leve. Precisava de muito autocontrole para suas pernas simplesmente não desabarem no chão.
Mas, mesmo assim, não era algo que Ryota podia se deixar levar. Não agora, depois de chegarem até ali.
Foi com aquilo em mente que se virou para Eliza, segurando suas duas mãos, a fazendo resfolegar, surpresa.
— Olha, muito obrigada por se preocupar comigo. E muito obrigada por ter me curado. Você é incrível, Eliza. Sinceramente, do jeito que sou, ainda vai ter bastante trabalho comigo.
Ryota riu da própria falta de cuidado quando se tratava de combates, uma vez que sua única arma era o próprio corpo, e sempre acabava bastante ferida.
— Ah… Bem…
O rosto de Eliza ruborizou um pouco ao ouvir os elogios, parecendo mais nervosa do que nunca.
— Mas eu preciso continuar. Dando um passo de cada vez, como você me disse. — Um sorriso casual estampou seu rosto. — A Fuyuki confiou em mim, ao menos um pouquinho. A Kanami também. E o Sora… Bem, não sei dizer, mas acho que evoluímos um pouco.
As pessoas que conheceu há menos de dois dias haviam lhe ensinado muito. Houveram situações de diversão e constrangimento, de dor e reflexão… E nem todos os problemas foram resolvidos ainda.
— O Zero disse pra mim que ia ficar tudo bem, e eu prometi que iria me virar. Então, assim como ele me ajudou, quero ajudar ele também. Não só ele, mas todo mundo aqui… Por isso, vamos juntas lá pra dentro.
Outra explosão sacudiu a floresta, e pássaros voaram desesperados para longe.
A expressão preocupada de Eliza se desmanchou quando suspirou, desistindo, e sorriu de volta.
— … Está bem, mas não saia do meu lado.
Ryota riu, balançando as mãos ainda unidas.
— Pode deixar.
***
A luz fraca do sol era refletida pelos cacos de vidro espalhados na escadaria. O som de serem pisados era bastante desconfortável, assim como provavelmente era a sensação. No entanto, para a garotinha de largo sorriso e olhos amarelos, não parecia ser um problema. Muito pelo contrário: Parecia apreciar a dor.
Nuvens escuras tomavam conta do céu lentamente e a temperatura baixava a cada minuto. Mania estremeceu quando uma ventania invadiu onde estavam, mas Fuyuki permaneceu em silêncio, inexpressivamente furiosa.
— Já faz taaaaanto tempo, não é, princesinha? Ah! Acho que não nos vimos pessoalmente ano passado, mas ainda tá valendo as apresentações… Tardias, não é?
A Insanidade fez uma reverência exagerada, e acabou inclinando a cabeça ao tentar usar uma palavra diferente do usual. Entrando no joguinho dela, ao perceber uma figura de serviçal passando às pressas no corredor acima, Fuyuki estendeu a palma da mão.
— É uma honra conhecê-la pessoalmente, senhorita Mania.
— Ah! Ah! Eu também fico muuuuito honrada em estar aqui pessoalmente pra ver uma alma tãããão maravilhosa! Um azul desses… Ah. Mesmo que o chatão do Shai fique me enxendo o saco com a minha… O meu… Er, a paradinha lá da fala, ele não entende que é meu charme!
— … Seu sotaque, imagino? No entanto, me parece que… O senhor Shai está sendo bastante diligente em sua tarefa.
Fuyuki acabou hesitando ao pronunciar o nome daquele homem, mas seguiu, tentando ao máximo desconcentrar a Entidade de seu objetivo. Ao máximo afastá-la do terceiro andar.
— Ih, é. Mas o ChatoShai tá me ensinando a ler e escrever! Ah, assim é como eu chamo ele quando fica me encheeeendo o saco toda hora! Hm! — Mania cruzou os braços, bufando. Então abriu sua boca, revelando um sorriso assustador. — Mas acho que ele me encheria ainda mais o saco se eu não fizesse meu trabalho.
O ricochetear da corrente estourou em seus ouvidos ao bater contra a parede de gelo, a protegendo do ataque sem que precisasse se mover. Como uma serpente se arrastando, Mania puxou de volta sua arma e riu de um jeito bobo.
— Aaaah, essa sua defesa absoluta é chata demaaaaaais. Acho que se eu fizer isso — disse ela, e então dividiu a empunhadura da estrela da manhã em duas, segurando uma em cada mão. — As coisas ficam mais divertidas! Vou te rasgar todinha! Ah, há, há, há!
Os olhos esmeraldas correram para o terceiro andar rapidamente e voltaram para a adversária.
— Muito bem. Então, tente se puder.
A explosão de chi emanou do corpo da duquesa e as paredes se tornaram brancas, completamente congeladas. O chão, escorregadio, fez com que a Entidade tropeçasse, ao que tardiamente percebeu as lanças de gelo chegando voando pelo ar.
— Aaaaah! Não vale! Que injustiça! Me atacar justo quando não tô prestando atenção! Opa!
Mas a elasticidade da garotinha a permitia saltar, mesmo naquele espaço pequeno, e destruir os ataques com as correntes. Mania, após terminar, parou de pé no corrimão, ao topo da escada.
— Uéééé? Que cara feia é essa? Ficou brabinha, foi? Suas cores estão dançando taaaaaanto...
Mania chegou ao terceiro andar. O plano de fazê-la descer à força falhou. Sem dar trégua, Fuyuki disparou andar acima e se afastou da adversária, estendendo a palma para a frente. Picos de gelo nasceram do teto e do chão, fechando o corredor atrás de si. Precisava proteger aquele quarto a qualquer custo.
— Saaaabe? Uma índigo como você não devia tá desperdiçando seu tempo nesse lugar podre. Afinal… Cê não tem mais nada além de si mesma, não é? Ah! Me desculpa! Você e aquele vegetal na cama!
Uma veia de raiva estourou na testa de Fuyuki.
— … Não ouse falar dela assim! — berrou ela, antes de incontáveis lanças de gelo avançarem.
Uma risadinha desgostosa escapou da Insanidade, que apenas repetiu os movimentos para desviar. No entanto, não foi tão fácil quanto da outra vez. Até serem destruídos, os picos afiados de gelo continuavam a persegui-la enquanto saltava pelas paredes congeladas, destruindo os constantes golpes.
Fuyuki estreitou os olhos e abaixou o braço quando a Entidade se aproximou, dançando e girando, e as duas bolas de ferro voaram contra a muralha atrás dela. Mas o gelo apenas rachou com o impacto.
— Ué?
Uma lança do chão raspou por pouco no rosto de Mania, antes que ela saltasse para longe de novo e inclinasse a cabeça.
— Isso não foi legal. Fazer o quê? Acho que terei de me esforçar um tiquinho, dessa vez.
Uma expressão de repugnação surgiu na face da duquesa quando a garotinha agarrou com força um grande fragmento de gelo e começou a se cortar. A lâmina desceu lentamente pela sua pele clara, fazendo um liso corte ao longo de seu braço, e sangue escorreu, manchando o chão.
E então repetiu o movimento no outro braço, mas fazendo movimentos horizontais. O líquido vermelho banhou suas mãos. Mas a Entidade continuava com um sorriso casual no rosto, como se não fosse nada demais, chegando até mesmo a cantarolar.
— Agora sim! Aaaaah, é tão bom! Agora acho que vai! Ahá! — rindo enquanto voltava a segurar as duas armas, um olhar sério estampou subitamente seu rosto. — Sentire.
Então, como uma besta que acabou de ser solta da jaula, Mania correu bruscamente na direção de Fuyuki. Mas ela foi prontamente parada pelas lanças de gelo, que a atravessaram de uma vez, e a Entidade foi empalada.
Fuyuki inspirou fundo, esperando uma reação do corpo. Não houve. Apenas permaneceu ali, morto, com pedaços rasgados violentamente se desmanchando.
— Bu!
Fuyuki não teve tempo para reagir quando a voz sussurrou em seu ouvido, e a esfera espinhosa atingiu em cheio seu estômago. Seu corpo bateu violentamente contra a parede de gelo, que se desfez com o golpe. Ela quicou e rolou no chão até bater contra a parede no final do corredor.
A duquesa tossiu, sem ar, vomitando saliva. Por muito pouco não foi atravessada, tendo metade do corpo arrancado. Foi somente graças à sua armadura de gelo, ou melhor, ao selo de chi imbuído no próprio corpo, que permitia uma autodefesa instantânea a ataques fora de seu campo de visão, que ainda respirava.
— Uah! Acertei mesmo! Até que foi fácil! Ah, há, há, há!
Mania colocou a cabeça para dentro do espaço. O corpo empalado havia sumido, deixando apenas as lanças fincadas no chão e muito sangue espalhado.
— Olha, olha, olha aqui! Não vai ter graça se você não me levar a sério, tá?
Erguendo-se com a mão na costela quebrada, Fuyuki riu com o nariz e endireitou a postura.
— É claro que não teria graça. Eu venceria muito facilmente, desse jeito.
Não haviam mentiras nas palavras dela, e muito menos era um blefe. A expressão de Mania dizia que tinha entendido aquilo, e isso apenas a fez rir ainda mais alto.
Estavam em um grande espaço fechado, com somente uma porta à direita e uma grande janela à esquerda. A duquesa deu alguns passos na direção da porta e, sem tocar a maçaneta, a congelou.
— Não sei o que pretendem fazer vindo até aqui novamente, depois de todo esse tempo… Mas não importa. Não permitirei que vá além deste ponto, Entidade.
Um estalo. Confusa, Mania inclinou a cabeça ao perceber que a parte inferior de seu corpo se tornara transparente e claro como cristal, mas frio como a neve. Teve tempo apenas para soltar um chiado antes de ser totalmente coberta pelo gelo.
— Será mesmo?
O escudo automático de gelo a defendeu perfeitamente da estrela da manhã daquela vez, a ricocheteando para a parede, que estourou num estrondo.
Mania avançou ao lado de suas correntes e tentou envolver a adversária. E assim o fez, mas não antes de ter a cabeça explodida por uma lança em alta velocidade.
— Ah! Ah! Me matando tantas vezes! Tem certeeeeza de que não está levando a sério?
Fuyuki ergueu um olhar de fúria para uma Mania saltando em sua direção, apenas para ter o corpo estourado novamente pelo próprio sangue virando gelo, se contorcendo e ganhando a forma de vários ramos cristalizados.
— Não — respondeu num murmúrio.
A repetição de ataques falhos continuou, embora Mania conseguisse acertar Fuyuki por pouco devido sua atenção estar voltada a proteger o quarto ao lado. Mas, ainda assim, ela era morta uma vez atrás da outra. Empalada, congelada, explodindo, perfurada… Não sabia nem mais contar quantas vezes ou de quantos modos.
Sangue se espalhava por toda a sala, e, mais uma vez, a Entidade caminhava lentamente na direção da adversária, limpando o sangue no rosto, sorrindo.
— Tu é dura na queda, não éééé?
— Eu é que deveria dizer isso.
A duquesa estreitou os olhos.
Mania não está sendo afetada pelos meus ataques. Ela está apenas me testando. Provavelmente deve ter me colocado em uma de suas técnicas de ilusão e está mudando a sua própria realidade da morte. Deve haver um limite de até onde pode ir, afinal, se pudesse mexer conforme quisesse, eu já estaria morta há muito tempo.
Não sabia se era a quantidade de chi imbuída em seu kiai com capacidades além da compreensão, ou talvez as regras que compunham o uso daquela habilidade. Tudo o que Fuyuki sabia, no entanto, era que não poderia deixá-la passar por aquela porta.
— Uma hora, seu chi deve acabar, mas os nobres são realmente assustadores… Estamos nesse loop há taaaanto tempo que nem sei mais! Mas, sabe? Até que eu queria ver mais dessa sua oscilação…
Então ela voou novamente e vomitou com o golpe. Fuyuki se sobressaltou com o impacto repentino. Nem sequer se moveu quando duas figuras surgiram do grande buraco na parede.
Uma delas chegou com o punho cerrado e atingiu em cheio o estômago da Insanidade. A outra correu até a duquesa e se agachou, realizando um processo de cura.
Ryota ergueu a mão fechada e juntou as sobrancelhas, estalando as articulações dos dedos.
— E aí, cheguei. Cai dentro, otária.