Volume 2 – Arco 2
Capítulo 11: Patrulha na Floresta
O farfalhar das folhas das árvores era bastante agradável aos ouvidos. Embora fracos, os feixes da luz do sol tocavam os rostos do trio que caminhava silenciosamente pela extensa floresta. Inspirando o ar meio frio, Ryota soltou um pouco os ombros, fazendo movimentos que lembravam alongamentos com os braços para relaxar.
— Como é bom fazer uma caminhada logo de manhã! Esse clima fresco me lembra um pouquinho lá de casa…
— … É mesmo?
Se afastando de uma árvore após tocá-la com a mão durante alguns poucos segundos, Eliza deu um meio sorriso ao comentário da garota, parecendo sem graça em puxar um assunto tão delicado. No entanto, Ryota não hesitou em continuar a falar quando a outra voltou a caminhar ao seu lado.
— Sim! Aurora era um vilarejo bem pequeno perto do oceano e tinha uma vista muito bonita de cima dos morros. A gente sempre tinha a presença da natureza, e toda hora aparecia um animalzinho perdido pra morar com a gente. As crianças adoravam correr com os cachorros pelo campo.
Num largo e emocionado sorriso, ela abriu os braços e gesticulou enquanto falava. Mais à frente, em silêncio, Sora andava e mantinha certa distância.
— Bom, tinha a Grande Árvore Aurora, que era a árvore mais velha de lá. Dizem que ela tem mais de trezentos ou quatrocentos anos de vida. Em todas as estações, as suas folhas mudam de cor e elas choviam por Aurora com o vento. Era lindo de ver. Ah! Tinha várias flores também, mas a galera dizia que a maioria era uma “praga” pras lavouras, e tal. — Ryota coçou a nuca, rindo, lembrando do campo amarelo florido — A gente sempre acordava bem cedinho e ia dormir logo quando anoitecia. Todo mundo junto, se ajudando.
As lembranças eram calorosas conforme falava. Ryota não conseguia deixar de sorrir largamente ao pensar naquelas pessoas que foram sua família mais querida. Nas crianças, que sempre se divertiam juntas e a tratavam como a irmã mais velha - haviam poucos adolescentes no vilarejo. Lembrava de Nessa, que era como uma tia, tão próxima quanto Jaisen era. Pensou com um sorriso melancólico no sorriso deles antes de ficar em silêncio.
Sora virou um pouco o rosto quando percebeu que o clima tinha mudado de repente, mas Ryota logo abanou as mãos, rindo meio nervosa.
— D-De qualquer forma, obrigada por ter me trazido junto! Eu sei que não vou fazer nada demais além de assistir, mas…
Piscando, Eliza acenou com a cabeça e se afastou na direção de uma árvore à esquerda, tocando-a com a palma da mão.
— N-Não precisa se preocupar. Fico feliz que esteja… Gostando.
Inspirando fundo para lidar com a sensação que começou a preenchê-la, Ryota soltou um som de surpresa ao ver um símbolo piscar com uma luz fosca na madeira.
É o mesmo de quando eu e o Zero teleportamos pra mansão.
Consistia em um floco de neve simples, ramificado e piscando em tons frios como o azul e o roxo. Curiosa em saber o que aquilo significava, mas percebendo que Eliza estava concentrada no trabalho, Ryota olhou de escanteio para Sora.
O rapaz tinha se encostado contra uma pedra grande mais pra frente, de braços cruzados e cabeça baixa. Era uma boa oportunidade para abordá-lo de novo. Ou será que não? Eliza estava logo ali, do lado.
Aaaaah! Eu preciso dar um jeito nisso, e rápido! Beleza, é só ir e falar. E acabou. Né? Sim. Certo. Tá.
Dando tapinhas suaves no rosto, fez menção de marchar até ele, embora estivesse claramente nervosa pela careta e o jeito trêmulo que seus dedos se mexiam.
— Me desculpem, mas será que vocês poderiam ir na frente? Preciso resolver uma coisa…
Com uma voz séria, Eliza chamou a atenção de ambos, ainda olhando para a árvore.
— Certo.
Sem interrogar o motivo, Sora apenas lhe deu as costas e voltou a caminhar. Da mesma forma, a curandeira adentrou mais na floresta pela mata e logo desapareceu. Por um instante, Ryota ficou surpresa em como, apesar de ambos possuírem personalidades bem opostas um ao outro, e provavelmente não serem próximos ao ponto de conversarem amigavelmente, eles estavam em sintonia quando o assunto eram seus trabalhos. Essa forma profissional de se portar, com uma clara confiança nas habilidades um do outro, era, no mínimo, era digno de se tirar o chapéu.
Com uma expressão amarga, Ryota apressou o passo e alcançou Sora, mas manteve a distância. Um silêncio meio perturbador os envolveu, e ela sabia que precisava fazer alguma coisa. Já tinha tentado falar algo várias vezes, mas um frio na espinha a impedia de sequer pronunciar algo antes de temer ser acertada na cara pela faca dele de novo.
Se aquela cena se repetisse e ambos começassem uma discussão seria problemático. Principalmente por estarem em patrulha. Não queria tirar a concentração dele, mas… Estavam sozinhos, finalmente. Como poderia iniciar a conversa? Ele não respondia, nem a olhava, e a mera tentativa sempre acabava de um jeito ruim.
— … Ué? Ué?! Sora? Alô?!
Ele sumiu. Do nada. Olhando ao redor, ela percebeu que estava sozinha no meio da floresta e o gêmeo havia simplesmente evaporado no ar.
— Muito legal da sua parte me abandonar assim, viu?! Valeuzão!
Esperando que uma pequena provocação pudesse fazê-lo voltar, o que não aconteceu, Ryota apenas suspirou longamente.
— Que droga… Pra onde que eu vou agora? Eu vim pela estradinha de terra, então se eu andar de volta talvez encontre eles.
Acreditando na sua intuição, Ryota voltou a andar devagar, esperando ouvir algo que denunciasse onde os dois guardiões estavam. Nenhum deles havia dito o motivo de tê-la trazido - a não ser que fosse só pra passear, o que lhe deixaria um pouco irritada -, e Fuyuki não comentou nada também.
Fazendo bico, seguiu pela trilha resmungando qualquer coisa até ver uma luz à distância. Como a floresta era bastante fechada e era possível enxergar pouco com os feixes de luz, aquela abertura parecia promissora. Talvez, de um lugar mais alto, pudesse localizá-los. Ou se localizar.
As árvores foram abrindo espaço na trilha, e ouviu-se o som de pássaros cantando. Não, na verdade, não era uma cantoria, mas grasnos de gaivotas. O pequeno campo que viu tinha espaço o suficiente para fazer um piquenique com a bela vista do oceano.
O penhasco trouxe um vento frio e a garota esfregou os braços, se aproximando da borda. Se caísse, provavelmente acabaria morrendo batendo a cabeça nas grandes rochas, que eram ricocheteadas pela água furiosa. Ali, o sol a confortou, e Ryota sentiu que estava em casa.
Era estranho pensar que um lugar tão comum como aquele traria sentimentos nostálgicos. Talvez a conversa com Eliza a tenha influenciado demais. Mas era, de fato, uma visão muito semelhante do lugar onde havia passado a noite com Sasaki e Zero após o incidente. O lugar onde se exercitou durante a manhã e decidiu encarar tudo de frente daquela vez. Sem virar a cabeça ou correr.
Mas, no fim, a dor e frustração acabaram vencendo, e ela chorou nos braços de Zero abaixo da Grande Árvore Aurora.
— Devia prestar mais atenção por onde anda, senhorita. Não, na verdade, dê mais um passo e nos dê um pouco de felicidade fazendo algo de útil.
— Tu quer mesmo que eu morra, ô cabelinho bem hidratado?! Vai acabar se enroscando nas árvores uma hora dessas, viu?
Em reflexo à provocação, Ryota girou os calcanhares e apontou com tudo para o rapaz que se aproximava com as mãos atrás do corpo e uma expressão neutra demais para o apontamento feito.
Sora estreitou o olhar.
— Limpe esse rosto antes de qualquer coisa. Seria uma vergonha termos alguém com uma expressão dessas entre nós.
— … O quê?
Tinha demorado pra perceber a lágrima que pendia em seu queixo. Ryota enxugou as maçãs do rosto com a manga da jaqueta, se perguntando desde quando havia começado a chorar. Devia ter superado essa fase há muito tempo, mas…
O guardião não fez nenhum comentário quando ela parou para pensar em algo. Ele apenas se virou, caminhando em direção à floresta com uma inquietação no olhar.
***
Sora não conhecia o luto. Embora a morte sempre estivesse presente na sua vida, a dor da perda nunca o alcançou. Não reagia a nada, nem mesmo quando seus familiares eram noticiados como mortos após uma missão, ou quando sua tia foi expulsa da família por atos vergonhosos e torturada pelo patriarca - seu avô.
Seus sentimentos eram perturbados. Alegria, amor, tristeza, medo… Eram coisas que havia esquecido há anos. Mas Kanami era diferente. A gêmea, debaixo da atuação profissional, ainda conseguia sorrir. Ainda conseguia se importar com os outros. E isso era bom.
Seu sacrifício não tinha sido em vão.
***
— Sora.
Ela parou de andar fazendo um estalo com os pés, esperando que o guardião a ouvisse. E assim ele fez, interrompendo os próprios passos, ainda de costas. Esperava, de olhos fechados, que a garota começasse a tagarelar de novo, pedindo desculpas ou falando qualquer outra bobagem, quando ouviu um farfalhar. Não, era o som de pedras. Ela tinha se ajoelhado na terra arenosa e áspera.
Sora conseguiu sentir que ela tinha levado a mão ao coração. Estava fazendo a posição formal usada para demonstrar arrependimento, ou para punir alguém. Era um método antigo que forçava os joelhos da pessoa em um lugar doloroso, como pequenas pedras ou até mesmo no arroz, mantendo os pés virados e não deitados.
Inclinando a cabeça, de olhos fechados e a outra mão cerrada atrás do corpo, murmurou:
— Obrigada.
Sora resfolegou com a palavra estranha.
— Eu queria te agradecer por ontem. Hoje, acabei percebendo que… Não me arrependo do que fiz. Nem um pouco. Mas, mais do que isso, eu estava errada em achar que deveria me achar importante, tentando me aproximar de vocês pelo meu próprio bem. Por isso, peço perdão pela minha grosseria, mas também agradeço.
Quando ergueu o rosto e abriu os olhos, havia um brilho de determinação nas íris azuis.
— Não quero ser um peso pra nenhum de vocês, então vou me esforçar pra mudar isso. Eu prometo.
A decisão foi feita, e a declaração também. Ficar mais forte e mudar… Era o seu desejo. E, agora, uma promessa. Algo que queria desde o começo, mas nunca teve coragem para pôr em prática. Mas, agora, não era mais uma opção, e sim uma necessidade.
Nunca mais deixaria tudo nas mãos de Zero. Dessa vez, ela ficaria lado a lado com ele e enfrentaria as dificuldades.
Ryota nunca mais iria abaixar a cabeça.
Ela podia ser uma pessoa que fazia promessas levianamente para si mesma. Mas, quando se tratava de outras pessoas, jamais deixaria de cumpri-las. Isso fazia parte do seu estilo de vida. Desde bem antes, quando ainda vivia em Aurora. Quando se esforçava para ser uma boa pessoa, alguém que nunca estava para baixo ou tinha problemas para que não incomodasse. Preocupá-las com seus próprios problemas, que nem eram tão importantes assim, era errado. Seus problemas, se compartilhados, apenas incomodavam os outros. Percebeu isso há muitos anos, quando sua mãe começou a adoecer por razões ainda desconhecidas para ela.
Como uma boa criança que deixava sua mãe orgulhosa e a fazia sorrir com gracinhas, Ryota se esforçou. Muito. Ela parou de chorar e reclamar na frente de Stella. Percebeu que isso só a deixava ainda pior. Quase sentiu que era por sua culpa que a mãe tinha adoecido ao ponto de ficar de cama.
Seguiu cumprindo com aquele juramento de infância até hoje, e continuaria até o fim.
No fim das contas, Ryota só queria ser alguém capaz de fazer os outros felizes.
— Levante.
A passos lentos, o gêmeo se aproximou e parou a uma distância segura. Havia algo diferente no olhar dele que Ryota não conseguia identificar. Não era raiva ou remorso, como achou que ele reagiria, nem pena, como uma vez viu nos olhares de Fuyuki e Kanami.
— Me dói ter que te ver nessa posição honrada por gerações. Vamos, levante.
— Era esse o problema?!
Porém, para a garota que retrucava, uma mão foi estendida em sua direção. Sora já não a encarava nos olhos - tinha virado o rosto- e voltou a falar com a neutralidade de sempre.
— Eu também não me arrependo do que fiz ontem. E, se quer saber, faria de novo se pudesse.
— A honestidade dói, sabia? Mas eu também te socaria de novo — ela riu, e então se ergueu com a ajuda dele. O rapaz limpou a mão na roupa, como se tivesse tocado em algo nojento — Nossa, valeu a consideração.
Ele deu de ombros antes de se afastar um pouco.
— Mas não se engane. Estou fazendo isso pela minha querida irmã, não por você ou por aquele fracassado. — Pelo tom de voz, Ryota soube que Sora estava sendo sincero. — E também não vou ser seu amiguinho, independentemente do que tente fazer.
— Eu sei.
Sora refletiu um pouco por alguns instantes, e continuou com um tom de voz arrastado e que carregava um sentimento pesado:
— Eu detesto você.
Ok, aquilo doeu um pouco.
— Você fala demais, chama atenção, se veste mal, seu sotaque e voz são irritantes e é uma grande mimadinha. Sendo sincero, tenho vontade de estrangulá-la até a morte sempre que te vejo.
OK, aquilo doeu bastante. E foi bizarro.
— No entanto, respeitarei a decisão de minha mestre. Mas não a respeito.
Embora tivessem sido palavras duras e afiadas, Ryota aceitou todas elas. Porque era, em parte, verdade. Rindo com o nariz, feliz por ele ter dito algo seriamente ao menos uma vez, respondeu:
— Sim, eu sei.
— Isso é tudo. Vamos, precisamos nos reencontrar com Eliza e encerrar a patrulha.
É mesmo!
— Ah, Sora?
— O que foi, senhorita?
Ambos já tinham voltado a seguir a trilha, mas, desta vez, a passos rápidos.
— Primeiro, poderia me chamar pelo nome? Esse seu senhorita me incomoda. E segundo, qual que é a da Eliza pra sair numa patrulha? Ela não é uma curandeira?
Ryota acreditava que somente os gêmeos protegiam a mansão. Dificilmente se viam ambos juntos, e Kanami tinha saído para fazer uma ronda na noite passada, então não seria estranho que o outro tomasse o lugar de manhã.
Sora torceu as sobrancelhas.
— Não sou obrigado. Eliza é responsável por manter firme a barreira.
— Caraca… Barreira?
— Existe uma barreira de proteção que circula esse território. Mais precisamente, duas camadas: A primeira aborda a floresta; a segunda, a mansão. No entanto, na última noite, Kanami sentiu algo estranho nas redondezas e relatou que a primeira barreira estava instável.
Foi por isso que a gêmea tinha saído às pressas para a floresta.
— As barreiras possuem selos circuladores de chi conectados a todos nós da mansão, então saberemos quando um estranho entra ou sai.
Ela se lembrou do símbolo em formato de floco de neve que surgiu nas árvores quando Eliza e Zero as tocaram uma vez. Aquela era a barreira? E quanto ao teleporte? Ele fazia parte daquilo também?
Estava ciente que todas as famílias nobres possuíam brasões que as representavam. Além da Minami, lembrou-se de Gnosis, e a tatuagem feita no peito de Sasaki. Haviam várias formas diferentes dos guardiões as usarem?
Como se lesse sua mente, Sora exibiu sua faca kukri e apontou o pequeno símbolo Minami desenhado no cabo. O mesmo deveria acontecer nas facas de Zero, e talvez na arma de Kanami, se ela a possuísse.
Espera. Isso quer dizer que todos os guardiões dela usam armas? Será que a Eliza… E talvez a própria Fuyuki…
— Silêncio.
O guardião estendeu o braço e a parou, dando uma ordem. Ryota engoliu em seco quando um arrepio lhe percorreu. Os olhos de Sora se tornaram afiados de novo, como na vez em que lutaram. Na verdade, vendo de perto, sua própria íris havia ganhado uma forma diferente. O vermelho escuro, antes neutro e sem vida, agora tinha um brilho assassino. A pupila se estreitou levemente na vertical.
Um farfalhar. Sora se virou para a direita rapidamente e sacou suas facas kukri, empunhando-as.
— Fique aqui. Se eu não voltar em até dois minutos, siga para a mansão e proteja a senhorita Minami.
— So-
Rápido demais. Só pôde ver o vulto antes dele sumir completamente. Seu coração disparou ao perceber que estava sozinha na floresta. E foi só então que percebeu.
Uma fina camada de névoa começava a se formar em seus pés.
Enquanto processava o que via, outro arrepio lhe subiu pelas costas. Uma voz aguda ecoou por toda a floresta. Por toda a escuridão. Uma risada. Era uma criança gargalhando.