Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 10: Um Passo de Cada Vez

O sol apareceu cedo naquela manhã. No quarto meio iluminado, Fuyuki terminou de conferir sua aparência no espelho assim que dispensou as empregadas. A passos lentos, ela caminhou até a varanda de seu quarto e puxou as cortinas. Ainda estava bastante frio pelo jeito que as janelas estavam embaçadas.

Seus olhos esmeraldas baixaram até a frente do grande jardim e se estreitaram, afiados. Seus lábios se comprimiram um pouco e ela se perguntou o motivo de ainda estar tão irritada, mesmo após uma boa noite de sono. 

***

— ... 184, 185, 186...

Movia-se rapidamente, pois já estava acostumada com a prática regular de exercícios durante a manhã e parte da tarde. Entretanto, ela decidiu passar um pouco dos seus limites daquela vez e dobrou a contagem, mas não perdeu o ritmo. Os agachamentos eram rápidos, e um pouco do seu suor escorria pela barriga.

— Você acordou cedo.

A voz, que Ryota logo reconheceu como a de Fuyuki, vinha de trás e se aproximava. A duquesa caminhou pela estrada de pedras brancas, ainda na sombra, e parou a alguns metros de onde a outra jovem estava. 

— Ah! É meio que um costume meu, não posso evitar. — Terminando a contagem no duzentos, Ryota se virou para ela, limpando o suor da testa e fazendo uma reverência — Bom dia.

Fuyuki apenas devolveu o cumprimento com um meio sorriso. Para sua surpresa, Ryota estava agindo normalmente naquela manhã, como se o ocorrido entre elas no quarto não tivesse acontecido. Achou que seria melhor assim, pois seria trabalhoso demais se desculpar à essa altura, e detestaria voltar a falar sobre o tema em questão.

A duquesa a observou esticar as pernas e pressionar os joelhos.

— Quer me acompanhar?

— ... Eu?

Parecendo surpresa com o convite, tendo em vista que a mesma nunca se exercitava com tanta frequência, Fuyuki inclinou a cabeça. Quase que imediatamente, Ryota abanou as mãos.

— Não precisa se não quiser! É só que deve ser chato ficar me vendo fazer isso... Então, sei lá. Ué?

Ryota acabou parando ao ver Fuyuki passar os braços pelo seu casaco azul claro e colocá-lo cuidadosamente ao lado da jaqueta vermelha dela, no chão. A passos lentos, a duquesa se aproximou e parou logo ao lado da outra garota com um olhar tranquilo. O vestido azul rodado escuro que usava diariamente revelou-se como sem mangas, o que foi uma pequena surpresa, pois estava frio o suficiente para a respiração delas condensarem no ar.

Ela parecia ainda mais pálida debaixo do sol fraco.

— Vai mesmo me acompanhar?

— Não posso rejeitar um convite desses. Pode começar, por favor.

— Ah... Tá.

Ela vai mesmo conseguir me acompanhar? Acho que vou começar fazendo uns alongamentos meio básicos...

Cuidadosamente, Ryota virou o braço direito para a esquerda e o puxou ainda mais com a mão, segurando no cotovelo. 

— Vamos fazer isso por uns dez segundos em cada braço...

Repetindo o mesmo movimento, Fuyuki dobrou seu braço da mesma forma, sem dificuldades. Em seguida, começaram a repassar todos os alongamentos mais comuns, da cabeça aos pés, esticando e movimentando algumas vezes as várias partes do corpo.

Ryota se surpreendeu com a praticidade e, principalmente, com a maldita elasticidade que Fuyuki tinha. Quase tomou um susto ao ver como ela conseguia puxar a perna e dobrá-la como uma bailarina. Não teve problemas para acompanhar o ritmo e, ao final, a duquesa deu um suspiro.

— Terminamos? 

— Aham. Mas, olha, preciso admitir que não sabia que seu corpo era tão... Flexível. 

Dando um risinho com um ar convencido e orgulhoso, a duquesa voltou para a sombra e vestiu o casaco.

— Surpresa? Eu costumava dançar balé quando mais nova, e, curiosamente, ainda mantenho comigo os resultados das práticas. 

— Isso é incrível mesmo, Fuyuki! 

Fuyuki balançou uma mecha de seus cabelos com as mãos.

— Já está fazendo barulho logo cedo?

Se aproximando a passos largos na estrada de pedra, uma figura conhecida fez Ryota sorrir largamente com o comentário. Zero estava de volta com sua roupa casual ao invés do moletom do dia anterior. Ao receber o olhar da duquesa, o guardião prontamente fez uma reverência.

— Eu não fiz nada não, ô besta. — Fazendo uma careta propositalmente mal humorada, Ryota deu um chute suave na canela do rapaz, que devolveu o "cumprimento" com um peteleco na testa dela. 

Um riso suave escapou dos lábios da garota, que tocou o lugar golpeado com as mãos. Os olhos de Fuyuki se arregalaram um pouco ao perceberem o olhar de Zero suavizar, e um sorriso diferente brotar em seus lábios enquanto continuava a provocar Ryota.

Era a primeira vez que via uma expressão daquelas no rosto dele. Quem diria que aquele jovem recluso que conheceu há alguns meses, que tinha sempre um olhar ameaçador e mantinha a calma mesmo com as provocações de Sora, poderia fazer aquela cara?

Fuyuki piscou algumas vezes antes de voltar a se concentrar na conversa.

— Vim chamá-las para o café da manhã. O senhor Wilhiam estava muito preocupado porque um certo alguém sumiu do quarto e ele acabou ficando desesperado achando que algo ruim tinha acontecido.

Percebendo que Zero estava se referindo ao único mordomo da mansão, um senhor de idade, Ryota engasgou ao imaginá-lo correndo de sala em sala atrás dela. 

— Não se preocupe. Tenho certeza de que ele a perdoará.

O jeito que Fuyuki falou era como se tivesse certeza absoluta das próprias palavras. Ryota torceu o nariz, ainda com uma expressão de culpa, enquanto caminhavam em direção à mansão. Zero deu alguns tapinhas em suas costas, a consolando com um sorriso torto no rosto.

A travessia até a copa foi um tanto silenciosa. A duquesa andava na frente, a alguns passos de distância dos outros dois, que conversavam baixinho.

— E então? Como foi ontem à noite?

As sobrancelhas dela se torceram.

Ah, se você soubesse...

— Foi bem, eu acho. 

— Não me convenceu com essa cara.

— Ah, desculpa aí. É só que... Te conto mais tarde.

Zero deu de ombros, embora estivesse curioso sobre a conversa que ela tivera com Fuyuki. Ryota tinha lhe contado que queria se encontrar em particular com ela, mas não comentou a respeito do que iriam falar. Decidiu não insistir ao ver o rosto sério que a garota fez.

As portas da copa já estavam abertas quando chegaram. Era um salão grande com janelas altas e um teto oval. Uma mesa retangular com talheres e panos estava disposta no centro. Meio encabulada, Ryota foi guiada por Zero a se sentar no meio, e ele na borda, logo ao lado de Fuyuki, que ficava na ponta, de frente para todos.

Um cheiro delicioso invadiu o lugar de repente, e várias empregadas surgiram com bandejas de prata, carregando pratos e copos. Mas Ryota não conseguiu se concentrar muito no conteúdo. Seu estômago se revirou quando um par de olhos atrás de Fuyuki se dirigiram à ela com frieza.

Não teve coragem para encarar Sora de volta. Mas tentou olhar de relance para Kanami, que mantinha a postura de sempre ao lado esquerdo da mestre, com as mãos atrás das costas. Ela devolveu o olhar assim que encarou seu rosto. Seus lábios tremeram.

— M-Me perdoem a demora... 

Quem chegava aos sussurros era Eliza, que fazia uma longa e desastrada reverência para todos do salão antes de sentar do outro lado da mesa, de frente para Ryota. Ela sorriu timidamente antes de juntar as palmas das mãos e começar a sussurrar algo.

— ... Obrigada por esta refeição, Hosana.

Proferindo a parte final em uma voz um pouco mais alta, Eliza abriu os olhos e sinalizou com a cabeça para Fuyuki, que ergueu o copo com um líquido laranja.

— Muito bem. Podemos iniciar a refeição.

O som de talheres batendo nos pratos soou, e todos começaram a comer. Após respirar fundo e decidir se concentrar na comida, Ryota se serviu do café e pães recheados colocados na mesa. Ela precisava de energia para o dia que viria. Estava decidida a resolver todos os problemas da noite passada, desde a discussão com Jaisen - a qual ela ainda estava um pouco abalada, mas, após esfriar a cabeça, refletiu que precisava ouvi-lo direito -, até a briga com Sora e a conversa com Fuyuki.

A teoria do retorno da Insanidade ainda não era concreta, mas não podia se dar ao luxo de não considerar a possibilidade, principalmente depois das coisas que Fuyuki havia dito. E havia ainda a condição de agir por conta própria pairando sob toda aquela situação.

Ryota precisava agir logo. Não queria envolver mais ninguém além dela mesma em seus próprios problemas. 

A maior questão de todas era Sora, que continuava a vigiá-la constantemente. Mesmo que doesse em seu orgulho, ela precisava se desculpar e fazer as pazes com ele - ou ao menos tentar. 

Já sei que esse doido das facas vai continuar sendo um chato dos infernos comigo, e talvez nem dê bola pro que eu falar. Mas quem se importa? Não precisamos ser amigos, nem nada assim, desde que a gente possa conviver sem se matar durante o tempo que eu ficar aqui...

E Ryota esperava que não fosse por muito mais tempo, mas também não queria encarar Mania tão cedo. Seu estômago embrulhou só de pensar no que viria pela frente.

Ela quase deu um grito de surpresa quando sentiu um beliscão fraco no braço. Virou o rosto para a direita, e encontrou um par de olhos prateados a encarando de escanteio.

Percebendo que a garota estava comendo menos do que o usual e fazia algumas caretas enquanto pensava, Zero decidiu interferir e arqueou uma das sobrancelhas, como que perguntando "o que foi?".

Ryota apertou os lábios, prendendo o ar. 

Não tem como eu querer fazer as coisas sozinha... Quando tenho um pé no saco desses. 

Era sempre assim, mas não conseguia detestar esse lado dele. Muito pelo contrário: Eram naqueles momentos que lembrava do motivo de ainda estar ali, e seu coração se aquecia. Ganhava coragem para dar mais um passo.  

Foi quando ela riu com o nariz, surpreendendo o rapaz. 

Fazer as coisas no meu tempo, manter a minha palavra e poder contar com esse idiota... Será que eu consigo fazer tudo isso?

Quando Zero tentou chamar a atenção dela novamente, após ter fechado os olhos por um pequeno instante, Ryota segurou a mão dele e sorriu de volta.

"Eu estou bem, obrigada".

***

Após agradecer as empregadas e os cozinheiros pela refeição enquanto vinham retirar os pratos, Ryota reverenciou Fuyuki antes de sair às pressas da copa.

— Espera, Sora!

Os passos dele não cessaram de primeira, e Ryota não se aproximou muito. O corredor estava vazio. Era o momento perfeito.

— O-Olha, eu preciso te dizer uma coisa.

De costas, ele permaneceu em silêncio. Engoliu em seco uma vez.

— Eu-

O guardião deu um passo e sumiu. Ela estendeu a mão, em vão, e suspirou pesadamente.

— Como v-você está...?

A passos lentos, Eliza apareceu ao lado dela. Ryota esperava que a curandeira não tivesse visto a cena vergonhosa que havia acabado de acontecer. Achou que seria bastante rude dizer aquilo com os outros por perto. Só que ficava complicado quando o sujeito sumia quando bem entendia.

— Estou bem, obrigada. 

Eliza acenou com a cabeça.

— Que bom... Bem, estou indo fa-fazer uma patrulha agora de m-manhã, e a senhorita Minami p-pediu para que me acom... Me acompanhasse.

— ... Eu?

Ryota inclinou a cabeça e apontou pra si mesma, confusa. 

***

Mas por que a Fuyuki iria querer que eu fosse junto com a Eliza? E tão do nada...

Após escovar os dentes, Ryota caminhou em direção ao salão principal, onde se encontraria com Eliza em alguns minutos. Ela tocou o queixo com os dedos, pensativa.

— Será que foi por causa de ontem...?

Após refletir por algum tempo, deu de ombros e suspirou. Acabaria descobrindo depois. Decidiu que não iria mais esquentar a cabeça com mil coisas ao mesmo tempo, e se concentraria no que estava para fazer naquele momento.

Seus ombros estavam mais leves depois da conversa que teve com Zero assim que saiu do quarto. Ele a parara no corredor, e Ryota acabou contando sobre a conversa que teve com Fuyuki e a condição de não se intrometerem nos assuntos uma da outra. 

— E tá ótimo assim. — disse ela ao final. — Não quero ficar causando problemas pra ela, e sei que posso me virar.

Zero assentiu, mas havia um brilho diferente em seu olhar. Ele devia saber que haviam mais coisas que estava escondendo, mas ela não mencionaria nenhuma das outras duas situações por enquanto. Não até solucioná-las primeiro.

— Cheguei! Desculpa a demo-

Se jogando das escadas e disparando em direção à porta, Ryota quase tropeçou e caiu de cara no chão quando viu as duas figuras na entrada. Uma delas, Eliza, sorriu timidamente e olhou meio nervosa para o rapaz encostado na pilastra de fora da mansão. 

Sora apenas cruzou os braços ao perceber a garota que se aproximava.

***

Zero passou o dedo pela lâmina da faca, confirmando se estava afiada o suficiente. Após girá-la nos dedos uma vez, a guardou dentro do colete.

Ouvindo um burburinho vindo de fora, se aproximou da janela e viu três figuras caminhando em direção à floresta. Seus olhos pousaram na garota de cabelos escuros, e então em Sora, que estava à frente do grupo.

A conversa que teve com Ryota um pouco antes ainda rodopiava em sua cabeça, mas, mais do que isso, as últimas palavras que trocaram o incomodavam.

 — Sabe, quando tudo isso acabar, eu quero seguir com a minha vida. — Havia um brilho de esperança nas íris azuis dela, que refletiam a imagem dele — Primeiro, vou atrás do vovô. E eu quero que o tio Jaisen consiga um lar e tenha de volta seus dias de paz. Quero viver numa cidadezinha, como Aurora, e trabalhar com alguma coisa que eu goste. 

Ela erguia os dedos, contando todas as coisas que sonhava para o futuro. Foi quando estreitou os olhos, e seu sorriso diminuiu.

— E é claro que eu quero você do meu lado. Mas… Também quero que você tenha a sua própria vida. Eu sei que… Mesmo que não me conte direito, também tem coisas que você queira fazer, Zero.

Sim, ele tinha. Mas não era tão fácil quanto parecia. Foi por isso que tinha prioridades, e uma delas era garantir a felicidade da pessoa na sua frente. Foi por isso, e algumas outras coisas, que se tornou um guardião - embora o convite tenha vindo de Fuyuki. Foi uma situação vantajosa para ambos os lados, na época.

Mas, agora…

— … Eu só não quero que você fique tão preso a mim. Eu queria que você pudesse viver os seus sonhos como eu. Então… O que eu quero dizer é…

Zero se afastou da janela a passos lentos assim que o grupo sumiu à distância. Ele tinha tarefas para fazer, e não podia mais se distrair. Falaria com Fuyuki. Talvez isso o afastasse um pouco daquela preocupação inconsciente. Daquele sentimento frio que parecia querer emergir.

Parou no corredor. 

É claro que tem coisas que quero fazer. Mas não ia adiantar nada… Porque tudo já acabou há muito tempo. Não tem motivo… Pra eu ficar correndo atrás de algo que já se foi. 

Ele ainda se lembrava do vazio que uma vez existiu dentro dele. De quando ficou só, e olhos com pena o envolviam. Quando Albert o encontrou e o acolheu… E como conheceu a luz que iluminou seus dias sombrios, o tornando alguém importante de novo. Alguém que podia ser amado e visto por quem era, não por quem precisava ser.

Mas era passado. Tinha encontrado uma pessoa importante, alguém que precisava dele. Alguém que jamais o abandonaria… Alguém que…

— … Eu vou ficar bem sozinha.

Uma dor agoniante afundou em seu peito, e ele escorregou na parede até o chão.



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