Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: Inferno
Os pneus, conforme seguiam pela trilha de terra molhada, espirravam lama e sujeira para os lados. As poças espichavam com vontade ao toque fazendo sons agradáveis. Em meio à natureza, agraciada com o silêncio do pós-chuva, um céu aberto se revelou acima de Ryota. Sob a grande extensão escura acima dela, as estrelas cintilavam com timidez, revelando-se aos poucos por trás das nuvens que acompanhavam à força pela ventania que fazia mover as folhas e galhos das árvores ao redor.
Pedalando neste clima agradável, Ryota se viu refletindo sobre a conversa com Sasaki há alguns minutos. Enquanto tentava entender melhor todas as coisas que escutara do homem, todas as frases misteriosas e a própria aparição estranha dele, um arrepio lhe percorreu a espinha.
A princípio, ela achou que tivesse sido por conta da ventania. Mas foi só quando finalmente piscou para se concentrar na estrada que reparou na anomalia. Não estava ventando. Na verdade, não havia qualquer sinal de movimento nas árvores ou folhas — o que era estranho, considerando que havia acabado de chover, e com certeza o que mais deveria haver era sons da natureza se adaptando ao clima molhado.
Porém, sequer havia som. O único barulho contrastante tinha sido o contato violento das poças d´água com os pneus da bicicleta e o rangido das engrenagens girando. Mas Ryota parou de repente, freando de forma tão bruta que quase caiu, mas por pouco isso não ocorreu, pois conseguiu equilibrar-se e parar apoiando os pés no chão molhado, ao qual os pés praticamente afundaram na terra mole e nojenta.
O puro silêncio a atingiu profundamente.
A falta de qualquer sinal de vida era assustador. Não havia o som de gotas caindo das folhas, o farfalhar dos galhos, o ruído do vento que levava as nuvens embora e revelava o céu... Respirar parecia difícil, como se estivesse prestes a pisar e manchar um solo sagrado. Se mexer parecia difícil, o som das batias descontroladas de seu coração cresceu e cresceu, batucando contra seus ouvidos e se tornando a única coisa que a mantinha sã. A ciência de sua existência.
— ... Mas o quê... — sussurrou tão baixo que mal se ouviu, que mal pareceu sequer ter pronunciado aquelas palavras. Inspirou e expirou algumas vezes, até que percebeu uma movimentação no ambiente. Ou melhor, diante dos próprios lábios, que se abriam para soltar o ar e expelir uma nuvem branca. — Há quanto tempo... Como foi que esfriou tanto...?
Seu nariz parecia ter congelado. Tinha certeza que ele e a ponta de suas orelhas estavam vermelhas, assim como a ponta de seus dedos cálidos. Ryota fungou diante dessa descoberta e da dúvida que pontava em sua mente. Sentiu os braços se arrepiarem com a jaqueta fina que os cobria, e se pôs a querer pedalar novamente para Aurora.
— Mas que merda que tá-
Foi naquele momento. Tão rápido que mal processou a visão de ver a própria bicicleta voar para longe devido o impacto da ventania vinda da sua esquerda, e como ela mal tinha conseguido se manter de pé quando foi atingida, também. Não só ela, mas também algumas árvores se entortaram e fizeram voar pedaços e galhos pelo ar, rasgando o silêncio sem dó.
Ryota não se feriu, mas acabou ficando em choque completo. Seus ouvidos quase ensurdeceram com a pressão do vento sobre seu corpo, ao qual precisou fixar os pés com toda a força para que não voasse para longe. Então, tão rapidamente quanto começou, a estranha ventania parou, e o silêncio quase ensurdecedor retornou. A respiração, ainda se condensando, saía em descompasso devido à surpresa. Quase podia sentir sua pele formigar.
— O que... O que foi...
Quando finalmente saiu do estado de choque, ela assim murmurou baixo antes de uma ideia atingir sua mente. Arregalou os olhos na direção de onde viera a estranha ventania, piscando lentamente com confusão.
— Por que saiu uma ventania tão forte do meio da floresta? Isso com certeza não foi natural...
Olhando com atenção para a floresta sombria e silenciosa, a garota se sentiu desconfortável. Muito pior e mais esquisito que a visão e a audição da falta de qualquer vida era a sensação que percorria sua pele, eriçando seus pelos e a congelando no lugar. O ar parecia pesado e terrível de inspirar, meio úmido demais. As condensadas e frias nuvens de ar brancas que se moviam ao ritmo de sua respiração estavam frias. Era dolorido respirar, o pulmão parecia tremer a cada inspirada.
Ryota apertou os olhos, tentando se concentrar e não se distrair com qualquer outro pensamento desnecessário.
— Iihk!
Até que algo frio... Não, até que um toque frio repentinamente fosse sentido na parte traseira de seu pescoço, logo na nuca. Sua resposta natural foi dar um grito de horror e se virar rapidamente. Mas não havia nada. Estava completamente sozinha na floresta cheia de neblina densa.
Os olhos que tinham se arregalado de susto lentamente voltaram ao normal, mas a respiração que tinha ficado frenética devido ao gelado toque estranho e a estranha sensação de não estar sozinha ainda permaneciam. Sentia como se a observassem, como se quisessem tocá-la. Definitivamente não era humano. Mas talvez estivesse longe de ser uma criatura. Fosse o que fosse, Ryota desgostava puramente e tinha nojo só de estar perto daquilo.
Um vulto preto passou à toda velocidade pela mata ao seu lado, e ela se virou rapidamente, incapaz de acompanhar os movimentos. Os olhos azuis, arregalados de terror e lutando para tentar encontrar uma forma de lidar com a situação, se viam girando e girando no lugar, lutando para se manterem sãos e firmes.
Até que, repentinamente, pararam.
— ... Ué?
Ryota baixou os ombros que tinham se erguido ao levantar a guarda e suspirou lentamente, franzindo a testa suada.
— Eu...
A bicicleta ainda estava lá, caída na horizontal, levemente machucada após a ventania que a atingiu, com sinais de batidas fortes por seu corpo após ter caído com força e de forma torta no chão, sendo levada para longe.
— Eu... Vim de qual lado, mesmo?
Não importava o quanto olhasse, tudo parecia igual. A floresta ainda dividia frente e costas, mas devido a forte neblina e o ângulo torto da bicicleta, Ryota já não podia dizer de qual lado viera. Era estranho. Muito, muito estranho.
O instinto de perigo que a fazia querer ter vontade de simplesmente sair correndo a fez se arrepiar. Era quase como algo primitivo do ser humano quando estava diante de algo sobrenatural, quando diante de um obstáculo insuperável ou de alguém muito mais forte. Era natural que quisesse fugir e gritar pela própria sobrevivência. E, tal qual era esperado de uma reação humana, Ryota começou a tremer.
— Não...!
Mas, ao mesmo tempo em que se viu fazendo isso inconscientemente, fincou as unhas na pele para se manter de pé. Não foi forte o suficiente para sangrar, mas as marcas das unhas permaneceram na pele de cor bronzeada.
— Não é hora disso! Eu preciso... Preciso...! Hm! — bateu as mãos no rosto para afastar o medo e as indecisões, forçando a voz trêmula a sair. — Beleza. Não devo estar tão longe do vilarejo. Só preciso... Sim, só preciso seguir andando e logo vou conseguir chegar. Certo.
Respirando fundo uma, duas vezes, afirmou o que precisava fazer em voz alta de forma que pudesse firmar isso consigo mesma. Se fosse capaz de lidar com o arrepio e a insegurança, o resto poderia ser ignorado. Desde que assim pensasse, ela poderia...
— Mas...
Quando estava prestes a pegar a bicicleta no chão, Ryota parou e olhou na direção de onde antes viera a ventania. A floresta permanecia silenciosa e sombria além da neblina.
— Seria possível que... Aquilo de antes... Foi um kiai de vento?
Pensando logicamente, fazia sentido. Em primeiro lugar, não havia razão para venta em uma situação daquelas, muito menos considerando que havia vindo do meio das árvores.
Com as sobrancelhas unidas, Ryota começou a andar e entrou na floresta, andando devagar e em silêncio.
Se estou correta, então seria perigoso denunciar que existe outra pessoa por perto. Não sei de onde e nem porque alguém usaria um kiai de repente assim, mas...
Suas suspeitas só seriam confirmadas caso mais uma movimentação suspeita fosse percebida nas sombras. Ou, talvez, o som de movimentações. Para tanto, ela precisaria andar com calma e manter a atenção no alto, os olhos focados em tentar distinguir qualquer figura.
Conforme assim seguia, a visão se acostumou completamente à escuridão e Ryota só se viu preocupada com o frio e a indiscrição.
Não, na verdade, havia outra coisa que a preocupava profundamente.
A única pessoa que conheço que pode usar um kiai de vento... É o Zero.
Fazer bom uso de seu chi já era algo que pouquíssimas pessoas eram capazes de fazer. Porém, moldá-lo e fazê-lo ser capaz de se conectar com algum elemento da natureza, como o vento, era extremamente difícil e exigia uma concentração e um controle de poder delicado.
Por tal razão, e também porque pouquíssimas pessoas conseguiam desenvolver suas habilidades sozinhas, que Zero, alguém que descendia de uma família de alta classe, era admirado não só por ela mas também por todos de Aurora.
O povo do vilarejo não costumava fazer uso de seus chis com frequência pois exigia muito esforço. É claro que algumas crianças gostavam de criar bolas de água para brincar e outras manejavam um pouco o movimento de objetos leves, alguns até conseguiam criar pequenas brasas com estalos de dedo, criando o início de pequenas chamas.
É claro que eram coisas simples, mas que muitas vezes podiam ser uma pequena ajuda no dia-a-dia. Ryota, em especial, não tinha tal capacidade, e tudo o que podia fazer para ajudar era criar distrações para as crianças, fazer os outros sorrirem e se apoiar completamente em sua força advinda de seu treinamento físico.
Não era nada especial, mas já a fazia se sentir um pouco mais útil. E ajudava a distrair a mente.
Em contrapartida, apesar daquela rotina não ter sido feita com o objetivo de fortalecer o corpo, saber que possuía uma certa capacidade de defesa pessoal caso fosse necessário a fazia seguir andando pela mata com mais segurança e confiança. Ela podia não estar no nível de Zero, mas, no mínimo, não estava completamente indefesa.
Foi naquele momento que algo quebrou sua sensação de equilíbrio e segurança.
O que a atingiu primeiro foi o som altíssimo de um estalo, então, logo em seguida, a terra tremeu com força unida do som de algo grande caindo. Ryota lutou para se manter de pé e olhou para o lado, percebendo que uma grande árvore havia sido cortada ao meio e caíra.
Ryota resfolegou e apressou o passo.
O uivo violento do vento cresceu e chegou aos seus ouvidos de repente, assim como uma brisa que balançou suas roupas e cabelos. Em meio à escuridão e névoa que dificultavam a visão e faziam a necessidade do uso total da audição, a garota se encolheu atrás de uma árvore e observou a situação.
Seus olhos captaram uma movimentação. Eram silhuetas que se moviam como vultos na névoa em alta velocidade, causando choques de luz conforme as lâminas das duas se chocavam. Barulhos de tilintar seguiam um após o outro, assim como o da troca de golpes corporais com mãos, braços e pernas.
Ataques invisíveis lançados por movimentos de braços, que cortavam a névoa, eram repelidos por uma linha branca que parecia desenhar no ar conforme soltava sons agudos ao contato.
Ryota inspirou fundo e tentou acalmar o coração disparado, querendo se aproximar, então escutou a respiração de alguém. A pessoa expirou profundamente, como se tivesse dificuldade em respirar, ao mesmo tempo em que resfolegava em surpresa.
A figura se virou para trás e acertou um tapa com a parte traseira da mão o ar. Foi uma ação estranha.
Quando finalmente percebeu que não era nada, a silhueta uniu os dedos indicador e médio da mão direita, abaixando os outros, e cortou a névoa com vento, limpando e finalmente clareando a visão das duas pessoas em combate.
Conforme as duas figuras se revelavam sob a luz da lua cheia que cobria a floresta, Ryota apertou os olhos.
Uma das pessoas de pé, com o braço direito e os dois dedos ainda esticados, era Zero.
Suor escorria por suas têmporas e rosto devido ao cansaço. Na realidade, ele parecia estar mais lutando para manter-se atento aos arredores ao invés de demonstrar sinais de exaustão por uma longa luta. Seus olhos prateados, que brilhavam à luz da lua, estavam arregalados e tremendo, indo de lá para cá lentamente. O peito subia e descia rapidamente, a respiração densa.
Vendo esse estado lamentável enquanto estava sozinho, Ryota se viu preocupada. Pensando em se aproximar para ajudá-lo, ela tentou dar um passo adiante, mas foi impedida por outra onda de ar que cortou a floresta.
A lâmina de ar que atravessou o espaço ao redor e limpou ainda mais a visão foi lançada em direção ao nada, parecendo querer assustar ou afugentar alguma coisa. Zero resfolegou mais uma vez e lançou outro golpe na direção atrás de si, cortando outra árvore.
As cenas estranhas e que arrepiavam os pelos se repetiam. Diante disso, com os olhos ainda focados no rapaz que lutava contra o nada...
— Ihh!
Uma mão pesada segurou o ombro de Ryota.
Ela gritou de forma aguda e se virou, o coração disparado e a respiração acelerada. Mas não havia nada atrás dela. Foi tão de repente que quase caiu sentada. A cabeça começou a doer com a falta de lógica e a sensação, de novo, de estar sendo observada.
Lutando contra isso, esfregou os olhos para se focar na luta diante de si de novo, vendo Zero desferir outro corte de vento na direção das sombras. Mesmo tendo usado tanto chi em seus kiais, em nenhum momento ele demonstrava sinais de exaustão pelo uso excessivo e sequencial de ataques. Na realidade, sua expressão mudou de preocupação para frustração.
— Aargh! — gritou ele a plenos pulmões, a garganta oscilando, ao lançar um corte nos ares mais uma vez, desta vez numa direção paralela.
Porém, ao contrário das outras vezes, não foi ouvido o som de algo ser acertado. As sombras e névoa pareceram engolir o golpe.
O silêncio, apesar de ter sido estranho, pareceu deixar Zero satisfeito. Isso porque, pela primeira vez, algo não foi acertado. Ou melhor, na realidade, foi. Pois, do mesmo ponto em que o ataque foi desferido, o som de palmas sendo batidas soou.
— Maravilhoso. Sim, simplesmente maravilhoso. Aaah, estou, de fato, estupefato com tanta habilidade. Ah, mas espero que ainda não tenha acabado com a exibição, seria deveras indelicado de sua parte interromper um combate com um deslize tão descuidado, imagino — disse assim, ao som das palmas, uma voz masculina que soava como uma canção. De fato, ele falava de forma musical, quase divertida.
Passos soaram no gramado e então uma silhueta esguia e alta surgi em meio às sombras e a névoa. A luz da lua, brilhante, iluminou todas as três pessoas na cena com clara distinção.
— Detestaria encerrar um embate tão emocionante de forma tão sem graça, sem qualquer harmonia.
O homem que surgiu andando elegantemente, passo a passo, tinha cabelos longos, lisos e negros como seda que faria qualquer mulher admirar o cuidado colocado neles. Ele soprou a franja que caiu sobre seu olho direito. Ou melhor, que caiu à frente de sua máscara em cores preto e branco que cobria dos olhos ao nariz.
Não era possível enxergar suas íris através da máscara, mas percebia-se que era um homem de rosto magro e bonito. Porém, em contrapartida a essa boa aparência, um sorriso largo e maldoso se estendia em seus lábios.
— Ora — o homem de aparência meio elegante meio fora de moda ergueu a vista para o céu, abrindo os braços com suavidade — A lua está realmente linda esta noite. E, vendo-a refletir sobre minha espada... É realmente uma bela visão.
Na mão direita, ele segurava o cabo de uma espada com formato peculiar. Se fosse nomeá-la, o modelo estilo esgrima seria mais adequado. Com uma lâmina extremamente semelhante a uma agulha, o espadachim admirava a própria espada com um sorriso agradável, analisando o brilho da lua sobre ela.
— Suponho que ficaria ainda mais bela manchada com uma tonalidade vermelha...
— Você tem gostos bem estranhos para alguém que age como um cavalheiro.
O mascarado riu baixinho.
— Esperar que maneirismos antiquados se adequem ao meu estilo particular de vida é bastante estúpido, imagino. O mundo se desenvolve e evolui com o tempo, as coisas e as pessoas se adaptam com o tempo, a cultura e tradições também, imagino. — Ainda sorrindo, apontou a ponta da espada para Zero — O senhor, mais do que ninguém, deveria saber disso.
— ... Tentar entender o que vocês falam, que não tem nem pé ou cabeça, é perda de tempo.
— Se fingir de desentendido é tão estúpido quanto.
Erguendo a espada diante do corpo, o espadachim, após responder o rapaz de cabelos violeta, avançou tão rápido quanto um piscar de olhos. O reflexo de alguém que estava acostumado ao combate foi capaz de rebater o corte horizontal que veio de baixo para cima, algo que teria surpreendido qualquer um, uma vez que a ponta dela estava para cima e não para baixo antes de avançar.
A curvatura do corpo permitiu uma alta velocidade. À lâmina que era estranha e perigosamente longa para um desvio descuidado, Zero refletiu o golpe com uma faca sacada de algum lugar ao mesmo tempo que saltava para trás. As pernas, como se presumissem o corte seguinte em sua direção, foram dobradas no ar e fez o corpo subir alto o suficiente para um desvio duplo. Zero pousou à uma distância segura antes de se colocar em pose de combate novamente.
Tão rápido quanto se posicionou, ele sacou outra faca e desviou o corte que mirava sua cabeça, fazendo chocar três lâminas afiadas como se soltassem raios. O som desconfortável delas deslizando uma sobre as outras era terrível, mas durou apenas um único instante. O chute que veio de baixo do rapaz passou pertíssimo do rosto do mascarado, acertando por pouco sua franja em movimento.
Aproveitando-se da posição em que estavam, Zero fixou o pé esquerdo no chão e rotacionou em sentido horário a fim de acertar com a perna direita, que ainda estava erguida no ar, a cabeça do homem. Foi neste instante em que ele se desequilibrou, pois a espada, repentinamente, estava por um milésimo instante de atravessar seu olho esquerdo, tendo recuado e avançado. Dito isto, Zero lutou, ainda em movimento, para curvar o pescoço e desviar por pouco da lâmina, que apenas fez um corte leve na maçã do rosto. A perna, entretanto, não atingiu seu objetivo e se tornou apenas um estorvo ao qual o rapaz precisou lidar antes de ser pego desprevenido novamente.
— Jin!
Gritando uma palavra que entoava poder, o mascarado desfez um pouco o sorriso ao golpe que se concentrava na palma direita ereta, com todos os dedos voltados para o céu.
O homem saltou para longe quando uma pressão de vento foi emanada da mão, rasgando o solo e destruindo as árvores no caminho.
Agora Ryota sabia de onde o tremor na terra e os barulhos altíssimos de algo grande caindo vinham.
— Ora, ora... Já se cansou? — Tão rápido quanto se recuperou do golpe que quase o acertou, o mascarado avançou novamente com a espada em mãos, as facas nas duas mãos de Zero deslizando contra a lâmina dele — Que desperdício de talento! Vamos, vamos, vamos! Mostre-me um pouco mais do que pode fazer e não se contenha tanto, imagino!
Uma batalha extremamente perigosa se iniciava novamente. Como a espada exigia um espaçamento a mais e permitia um combate em até alcance médio, enquanto as facas de Zero exigiam que ele chegasse perto, tudo o que o rapaz podia fazer era desviar dos golpes com o corpo e mandar a direção dos ataques para longe, incapaz de revidar.
Sob a luz da lua que brilhava nos olhos prateados e nas lâminas que faziam reluzir raios ao brusco contato, após uma sequência difícil de golpes consecutivos a serem desviados, alguns que passavam raspando por sua pele e rasgavam a roupa, Zero inclinou a cabeça para trás e bateu com a própria testa na do mascarado. Um ataque fora de seu padrão até então, que pareceu surpreendê-lo momentaneamente, mas o suficiente para permitir que um chute fosse desferido em seu estômago e eles pudessem se afastar novamente.
A respiração estava agitada. O coração disparado. Os olhos desfocavam, então precisava piscar com muito mais frequência do que o normal para se manter focado no verdadeiro inimigo diante de si.
— Aargh!
Porém, a névoa já tinha se concentrado ao seu redor novamente, cortando a vista e dificultando sua concentração. Zero afastou-a quase que completamente com um movimentar de braço.
— O tempo está passando... Bem devagar... Bem devagar... Você não pode escapar dessa repetição de acontecimentos.
O mascarado, intacto, bateu nas roupas com as mãos como se tirasse um inseto e assim falou, o sorriso convencido estampado no rosto. Ele abriu os braços para continuar falando.
— Até quando vai-
Interrompendo as palavras que deslizavam como música, uma pedrinha no ar pareceu voar por cima da cabeça do homem em câmera lenta. Foi apenas uma movimentação inocente, sem qualquer intenção de causar ferimentos, mas que rapidamente distraiu o mascarado do que fazia.
A espada rapidamente cruzou os ares e desfez a pedra. Com um dos braços esticados acima da cabeça e a outra de lado para manter o equilíbrio...
— Guh!
... Era esperado que uma abertura gloriosa surgisse. Foi o momento perfeito para que um punho muito bem fechado acertasse a barriga do adversário e o fizesse voar para longe. Apesar de ser um soco simples, a força contida na pessoa que atacava estava além da imaginado ser comum.
Após esse ato que deixou até mesmo Zero de boca aberta, a garota de cabelos negros estalou os dedos com uma expressão séria.
— Esse cara não parava de falar nunca, né? Já tava me irritando esse blá, blá, blá.
— Ah...
Zero ainda estava sem palavras pra cena que tinha presenciado, uma das mãos agarrava o outro braço e os olhos prateados brilharam sob a luz da lua refletindo a visão bela da jovem que repentinamente invadiu o combate.
— Você tá bem? Ele te machucou muito? Aah, esses arranhões devem estar ardendo, não é?
— Ah. Ah? Ah, não, eu estou bem... — Sem saber quando ela tinha chegado perto o suficiente para tocá-lo no rosto e analisar os ferimentos, Zero desviou os olhos com vergonha e desconcerto. Em seguida, finalmente entendendo a situação, lutou para acalmar o coração acelerado e ergueu o olhar de novo — Por que está aqui? Aliás, como...
— Você é muito barulhento lutando, sabia? Todo espalhafatoso... Qualquer um notaria.
Ryota apontou isso erguendo as duas mãos pra cima e balançando os ombros com um sorriso bobo, esperando uma reação irritada do rapaz. Mas, ao invés disso, um silêncio momentâneo se seguiu, ao que Zero riu baixinho. Um sorriso suave e raro.
— É bem a sua cara dizer isso.
— Não é? Ei, calma, isso foi um elogio ou um insulto? De qualquer forma... Parece que não temos tempo pra ficar de conversinha.
Os dois voltaram a atenção para o lugar nas sombras onde o mascarado tinha voado, e parecia estar se aproximando a passos lentos.
— Sai daqui. Agora. É perigoso demais.
— Nem ferrando. Não vou te deixar aqui.
— Que indelicadeza a sua — Uma terceira voz se uniu à conversa, vinda das sombras, e tanto Zero quanto Ryota se viraram, enrijecendo o corpo — Não me refiro aos seus sentimentos, é claro. Não me entenda errado quando estou falando, por favor, seria uma vergonha para mim, imagino. Me refiro a como este rapaz insiste em rejeitar esses sentimentos. Mas, ora, você também é uma senhorita bastante peculiar, não? Devo dizer que também indelicada se adequa bem a como se apresenta perante os outros. Costuma sempre interferir desse jeito? Atacando quando bem entende? Não estou aqui para julgar qualquer ação, uma vez que sóis humanos imperfeitos, imagino.
— ... Você gosta de falar, né? É daqueles tipos que ficam se olhando no espelho e falando com as paredes igual idiotas?
Ryota zombou do homem que tinha começado a falar com a dupla e parecia não parar nunca mais com uma tranquilidade admirável. Não porque de fato estava bem com a situação, mas porque estava longe de entender o perigo diante dela. Afinal, o mascarado, apesar de seu sorriso sinistro, não demonstrava qualquer sinal de ser uma ameaça. A não ser pela espada que estava em uma das mãos. Talvez a falta de experiência de combate falasse mais alto naquela ocasião, porque Zero, plenamente ciente disso, logo se colocou na frente dela com um braço a protegendo.
— Ora. Até a forma de falar é pouco delicada. Fascinante, eu diria.
— Nossa, cara, só fica quieto, namoral. Te ouvir falar tava me dando dor de cabeça, por isso te bati. Mas se quiser mais uma, tô disposta a abrir uma exceção pra te estourar na porrada até ficar quieto.
— Ei...!
Embora Zero tenha soltado uma exclamação baixa à provocação barata e sincera de Ryota, que parecia realmente pronta para começar a brigar, o mascarado não havia sequer reagido às palavras.
— Que anômala.
— Não entendi nada, mas também não gostei.
— Não se precipite, minha cara. Foi apenas um elogio, imagino.
Ryota arqueou uma das sobrancelhas, torcendo os lábios, desgostosa. Por estar concentrada no homem à uma distância segura, demorou para reparar no jeito irregular que a respiração de Zero estava. No suor que lhe escorria pelo rosto e no jeito com que tentava controlar o corpo que tremia.
— Zero? O que foi?
— Uh...?!
Ao toque no ombro, o rapaz se virou e arregalou os olhos para a garota, como se se assustasse.
— Ei, o que aconteceu? Ele fez alguma coisa?
— ... Estou bem. Estou... Bem.
Ryota olhou com clara fúria para o mascarado que permanecia parado como uma estátua, sem sequer respirar. Zero, no entanto, após respirar fundo, a acalmou.
Não é o que parece. Será que isso é efeito da espada dele? Mas... Antes, eu também me senti ansiosa desse jeito.
Um tempo antes, tinha experimentado por conta a estranha sensação de estar sendo observada. Pareciam ser os mesmos sintomas que atingiam o rapaz, mas de uma forma mais intensa.
Isso não é bom.
Ela rapidamente percebeu que estavam em desvantagem. Provavelmente, não, com certeza, o que tinham sentido era efeito de alguma habilidade oculta daquele espadachim, uma vez que o mesmo não parecia ser afetado.
Por mais que quisesse ajuda-lo no combate, tinha que admitir que lhe faltava experiência. Não apenas isso, mas força também. Zero, em comparação, era sem dúvidas mais capacitado para isso. Por mais que o enfrentassem juntos, seriam derrotados. Ela conseguia sentir isso. Ryota podia achar que ele era apenas um cara com uma espada de formato estranho, mas não tinha visto qualquer uso de kiai durante o combate ou conseguira detectar o tipo de chi que era usado por ele.
Diante disso, ela só conseguia pensar em fugirem o mais rápido possível antes que os efeitos de qualquer que fosse a coisa que os pressionava piorasse, ou que fossem mortos um seguido do outro. Parecia que Zero tinha chegado à mesma conclusão, pois tinha pedido para ela escapar antes.
— Ze-
Foi de repente. Antes que pudessem formular as palavras e dizê-las em voz alta, um barulho singular atingiu sua mente. Era como se interrompesse seus pensamentos e fizesse se concentrar completamente nele. Na realidade, era um som agudo e que parecia tinir, alto, porém distante. Como um pequeno sino sendo tocado. Como se transmitisse uma mensagem sonora. Ryota piscou e, tão rápido quanto perdeu as palavras e se distraiu, voltou ao normal.
— Ora... Parece que teremos que interromper nosso pequeno show. O dever me chama. De toda forma, fico honrado de tê-los conhecido oficialmente e pessoalmente, e espero poder revê-los em uma oportunidade futura, imagino — O mascarado, após ergueu o rosto para o céu, olhou de novo para a dupla tensa e inclinou o corpo para eles, como se os reverenciasse, antes de guardar sua espada na bainha e recuar alguns passos.
— Oi?! Quê?! Peraí, doido! Peraí!
Antes que pudesse alcançá-lo, o homem desapareceu nas sombras e névoa. Ryota apenas correu em direção ao nada e xingou baixinho, batendo com o pé no chão, sem entender nada do que tinha acontecido.
Ainda com suor cobrindo o rosto, mas parecendo mais são, Zero chegou até a garota e a tocou nas costas.
— Precisamos voltar para Aurora. Agora.
Antes que pudesse concordar com a cabeça, a terra tremeu. Muito mais forte do que qualquer coisa que tivesse sentido antes. Definitivamente não foi porque uma árvore caiu. Logo depois, um som ensurdecedor estourou à distância. Quando Ryota ergueu o olhar e viu a fumaça negra e grossa que vinha de algum lugar por perto, seus joelhos quase cederam.
***
A dupla acelerava na bicicleta até o vilarejo que brilhava à distância. A fumaça se expandia e crescia até os céus, ganhando mais e mais espaço. Ryota pedalava a toda velocidade enquanto Zero usava seu chi de vento para turbinar ainda mais o veículo. Conforme se aproximavam, a luz cegante foi ficando mais forte e sons irreconhecíveis ficavam mais altos.
Até que os dois alcançaram a entrada do vilarejo e jogaram a bicicleta para o lado antes de correrem.
Ryota parou. Seu coração parou também. Na verdade, ela já nem conseguia respirar direito com a inalação desnecessária e forte de fumaça em seus pulmões. Seus ouvidos zumbiram alto acompanhados de estalos de madeira queimando.
O que seus olhos azuis refletiam eram as chamas que cobriam Aurora, pintando o lugar de amarelo e vermelho.
Seus olhos começaram a arder, e então começaram a escorrer com lágrimas que ela não sabia dizer se eram de desespero, tristeza ou pura dor.
Vozes gritavam. Sons horríveis se misturavam aos berros que mal pareciam humanos. Como rugidos de dor que faziam rasgar a garganta. Um telhado desabou completamente. Poeira e restos de madeira voaram. Ela não sabia como não tinha espirrado ou tossido com tamanha poluição.
Ela também não sabia quando tinha começado a correr na direção do fogo, ignorando a voz que a chamava por trás.
Correu. Correu. Correu. Correu.
Ela correu o máximo que pôde, sem saber onde queria chegar.
Ela nem sabia o que queria encontrar.
Olhou desesperadamente para os lados, buscando qualquer sinal de vida. Qualquer barulho. Qualquer voz que pudesse alcançar. Qualquer coisa que a fizesse ser capaz de estender a mão e salvar alguém. Qualquer pessoa, qualquer um...
Seus passos, até então duros, de repente fizeram um som estranho. Como se pisasse sob uma poça d’água. Mas, por uma estranha razão, aquilo que tinha pisado era mais pegajoso e vermelho. O cheiro terrível de sangue a atingiu com tanta força que Ryota quase vomitou.
Mas não segurou por tempo o bastante quando viu o corpo morto logo ao lado. Vomitou enquanto gritava. Estava engasgando, não sabia mais como era respirar.
Quando finalmente colocou tudo pra fora, completamente tonta, seus olhos se ergueram e encontraram mais dois corpos completamente queimados esmagados sob um telhado que desabou. O cheiro de carne assada remexeu o estômago e sacudiu o cérebro.
Era nojento. Nojento, nojento, nojento, nojento.
O corpo ao lado dela tinha ferimentos horríveis. Era um fazendeiro que Ryota já tinha conversado algumas vezes. Haviam rasgos em seu rosto feitos pelas próprias unhas manchadas em sangue. A boca e olhos estavam escancarados, como se estivesse em desespero.
As chamas cobriram qualquer som do mundo e a isolaram da realidade. Os olhos, incapazes de fazer as informações chegarem de forma compreensíveis ao cérebro, apenas observavam toda a morte, dor e sangue que a rodeavam. Queria gritar até perder a voz. Queria correr, mas não tinha forças. Queria falar, mas a voz não saia. Queria respirar, mas o ar travou em seus pulmões, a fazendo resfolegar alto demais, como se engasgasse. Lágrimas escorriam por seu rosto no meio do transe entre a realidade e a insanidade, sem saber o que fazer. Ryota apenas cravou os dedos na terra e a puxou com fúria, rugindo internamente.
Por quê...?
Som de passos. Então, outro barulho mais alto e agudo se sobrepôs, ressoando em algum lugar, de coisas se mexendo e batendo umas nas outras. Ryota teve tempo apenas virar o rosto para o lado e ver uma mulher jovem cair de cara no chão, com o corpo completamente ferido e cheia de sangue. Ela, em agonia, a avistou e começou a se rastejar em sua direção, pedindo socorro.
Demorou para reconhecer Nessa, com os glóbulos brancos escancarados quase saltando para fora, prendendo um grito na garganta.
O som de correntes ficou mais alto.
— Ah, ah, ah! Aí está você! Poooxa, não fuja assim!
Ryota piscou, testemunhando o exato momento em que uma bola de ferro cheia de espinhos amassou e rasgou o corpo de Nessa, que berrou de forma que fazia a garganta rasgar. Sangue espirrou no rosto da garota ainda sentada, em choque, assistindo-a morrer sem fazer nada.
— Ai, ai, ai, ai... Se tivesse esperado sóó mais um pouquinhozinho não teria doído, né?
Lentamente, Ryota ergueu a cabeça para a voz doce e feminina que vinha à frente. Uma silhueta escura de brilhantes olhos dourados surgiu, segurando com as pequenas mãos uma corrente prateada com duas bolas com espinhos de ferros nas extremidades. Ela girou o pescoço na direção dela, como se sentisse sua presença. Então, a garotinha abriu a boca num formato oval e sorriu, em êxtase.
Se lembrava perfeitamente. Era o mesmo sorriso daquele dia. Os lábios se encurvaram de forma grotesca, como se fosse um demônio anunciando sua chegada no inferno.
Estava encarando a morte.