Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 6: Purgatório

As longas e fulgentes correntes eram como cobras platinadas que se moviam pelo solo cheio de sangue e morte. Elas refletiam as chamas ao redor, que pareciam se espalhar com mais afinco, tomando tudo em seu campo de visão. Era o completo caos. Ouvia-se, em meio aos estalos da queimada, sons abafados de gritos de horror e desespero. Corpos de pessoas estavam espalhados por toda a estrada. Estouradas, cortadas, enlouquecidas – se arranhando, cravando as unhas na própria pele e gritando até ficarem roucas. Esse era o cenário atual de Aurora.

Ryota permaneceu no chão, sem forças, olhando para o cadáver de Nessa a menos de um metro de distância. O torso foi completamente arrancado e uma poça enorme de sangue se formou. Seus olhos e boca estavam escancarados. Haviam marcas de unhas que tinham se aprofundado em seu rosto em algum momento. Os ferimentos, ainda recentes, sangravam. Tremendo, Ryota levou os dedos ao próprio rosto, tocando o sangue que havia espirrado. O líquido pegajoso grudou em sua pele e ela o viu com horror escorrer por sua palma.

Isso já havia acontecido antes.

Num local fechado, frio e que a roubou completamente. Olhos sem vida a encaravam com tristeza, como se lamentassem o abandono. Naquele momento, ela apenas ficou parada e assistiu a morte da mãe, sem fazer nada. Sangue também a tinha coberto naquele dia, quente, mas que aos poucos esfriava e se esvaia. O cheiro, impregnado em sua mente, recobrou com facilidade as memórias daquele dia sombrio.

Agora, lá estava ela: Sentada, tremendo e com os ouvidos zumbindo, acompanhando mais uma morte. Repetiu as mesmas ações do passado, tremendo assustada, incapaz de fazer qualquer coisa além de assistir. Queria correr para longe, tapar os ouvidos e os olhos do som e visão da morte, mas não conseguia. Em desespero completo, sem saber se estava vivendo o presente ou o passado, Ryota congelou completamente.

— Ora, ora, ora, ora? Que curiooooso! Ela estava indo atrás de você, desesperada! — riu a moça de grandes olhos dourados, que se ajoelhou ao lado do cadáver. Ela deu um suspiro, como se visse um fenômeno incomum e agradável. Seu sorriso largo tremeu por um momento de emoção, fazendo com que soltasse um grunhido semelhante a um gemido de felicidade. — Que lindo... Vocês deviam ser realmente próximas. — Então, se voltando para a garota sem brilho no olhar e perdida num transe infindável, inclinou a cabeça. — Que peninha.

Os cabelos curtos e castanhos da moça se moveram quando se colocou de pé de forma equilibrada e risonha. Ela sacudiu levemente as correntes que segurava com uma das mãos, como se fosse um chocalho. Então, erguendo a mão com unhas arrancadas, tocou o pequeno coração abaixo do olho direito com o dedo indicador, analisando Ryota.

— Mas saaabe, que curioso! Uma alma tão brilhante e colorida daquelas... Aaaah. É realmente uma pena que tenha se ido tão rápido. — A moça, com uma face de excitação, abriu os braços e girou pelos arredores. — Vi poucas vezes um tom tão belíssimo num rosto desses! Um ser tão pequeno e vulnerável, que correu por sua vida assim que me viu, tããão assustada! Um cinza que se mesclava a um preto carbono fosco! E então...! E então...!

A moça, parecendo relembrar da cena que discursava, abriu um sorriso ainda maior.

— ... Mesmo tão bobinha, mesmo tããão fraca, mesmo tããão pequena, as cores explodiram quando seu pequenino foi ameaçado. Aaaaah, o carmesim! Ela explodiu em cores magníficas e bagunçadas quando ele... Ah. Bem, explodiu também. Fez assim, "pof"! Deve ter sido doloroso... Qualquer um ficaria lelé da cuca se rasgasse os próprios olhos e batesse a cabeça na parede... Hmmm... Ah! Mas e aí! Mas e aí! Sabe, ela ficou tão colorida! Uma bagunça linda e gigantesca! Eu quase podia tocar! Mas aí, mas aí, mas aí... Ela fugiu! Correu e fugiu gritando! Que mal educada, não acha? Gritar desse jeito por aí, depois de uma cena incrível daquelas, foi muito desesrespeitoso, não? Foi uma chatisse persergui-la até aqui, vendo as cores virarem cinzas de novo... Aaah, tããão sem graça. Pensei que fosse me divertir um pouco mais, poxa...!

Como uma mocinha que declarava seus sentimentos ao ar livre, gesticulando conforme tagarelava, ela falou e falou, rodopiando enquanto zombava da morte de Nessa e Ian com expressões bastante caricatas no rosto. Proferia coisas que Ryota não entendia, e nem queria entender. Seus ouvidos captavam apenas pequenas palavras, pequenos atos. A visão se distorcia, o fogo quente e claro parecia queimar seus olhos. Sentiu que estava perdendo o ar. A respiração se tornou difícil, seca. 

— Humanos morrem tão fácil... — disse a moça de olhos amarelos, repentinamente agachada ao lado de Ryota, cutucando o rosto contorcido com os dedos magros. Então, as pupilas em formato de estrela se voltaram para ela — ... Não acha?

Enquanto ela assim divagava, aos sussurros, um berro em plenos pulmões ao longe pôde ser ouvido. Mas ele logo cessou, de repente. A menina ensandecida riu. Ryota quase se viu rindo junto.

— Vivem seus dias com pensamentos fúteis. Buscam sonhos inalcançáveis, formam laços, criam famílias e estimulam ao máximo de seus desejos. Nunca satisfeitos com nada, sempre querendo mais e mais. Avarentos como porcos e orgulhosos como tolos. Poucos buscam, de fato, aquilo ao qual foram destinados a ser, desde o começo. A tolice humana realmente não tem limites, e essa imperfeição os tornam completamente cegos pelas luxúrias e sentimentos... Não acha isso espetacular? São tão fáceis de se manipular, tão simples de se entender... Ai, nossa, tãããão tolinhos. 

As palavras que a jovem assim declarava estavam longe da compreensão de Ryota. Em contrapartida, um sentimento quente e difícil de conter parecia crescer dentro dela, como uma bomba em contagem regressiva prestes a explodir. Ignorante à isso, a moça de olhos dourados, enquanto falava, olhava para os corpos e para as chamas que tudo consumiam, limpando o vilarejo da vida e deixando rastros do que um dia aquele local fora.

— Por mais tolos que sejam, eles me entretém facilmente, sabe? Inclusive... Inclusive! Inclusive, sabe? Percebi uma coisinha muuuito interessante agora! Ahá, há! — Piscando algumas vezes, a moça se virou para Ryota, como que percebendo algo, riu alto e bateu palmas — Olha, não é algo que me incomoda nem nada assim. Na verdade, me deixa muito feliz! É uma raridade nos dias de hoje, então presenciar uma... Uma... Eh, ah, uma coisa dessas é incrível! Então, tenho só uma perguntinha pra te fazer, então espero que não fique incomodada nem nada assim, certo?

Inclinando a cabeça em noventa graus, ainda com um sorriso de donzela, a voz dela se tornou séria:

— Por que você não enlouquece?

Foi uma pergunta honesta e direta, sem espaço para brincadeiras. Diante do silêncio, a moça fez algumas caretas, como se estivesse pensando consigo mesma a respeito, então soltou um grunhido de compreensão:

— Ah! Será que? Será que? Será que é?! Será que era verdade?! Ainda que seja uma figura tão frágil, tão ridícula e pequena, com cores tão feias, será que pode acabar me mostrando algo legal? É por isso que você não grita? Não se contorce? Não sai correndo? Não consegue falar? É muda? Talvez tenha quebrado por dentro? Oh? Talvez esteja com medo demais? Vai se mijar? Vai gritar pela sua mamãe? Aaaaah, que peninha! Que carinha patética você está fazendo agora? O que é isso? São lágrimas? Ahá, há, há, há! Ela começou a chorar! Coitadinhaaaa! — Gritando no rosto dela, as emoções da mulher de olhos dourados cresceram e explodiram ao ponto de fazê-la corar. Com as mãos brancas e magras, segurou com força os cabelos negros da jovem incapaz de reagir e sacudiu sua cabeça — Ei, ei, ei, ei, ei!! Não me ignora! Quando as pessoas estão sendo legais falando com você, precisa olhá-las nos olhos, sabia? Que falta de educação! Vocês são um bando de ignorantes! Depois de eu te elogiar tanto, depois de falar tanto sobre mim, depois de ouvir tantas coisas legais, vai continuar com essa cara murcha?! Hein?! Fala alguma coisa, peste! Fala alguma coisa! REAJA!

Os cabelos que eram segurados foram sacudidos cada vez mais rápido e com cada vez mais força, o rosto da moça foi se distorcendo em uma repentina crise de raiva até explodir mais uma vez, arrancando vários fios negros do couro de Ryota. Mas ela não reagiu. Nada disse ou demonstrou. Permaneceu de joelhos, olhando para o cadáver de Nessa, os braços formigando ao lado do corpo.

Diante dessa visão de dar dó, a moça, que antes arfava de raiva... Gargalhou.

— Tá certo, então! Se não vai me mostrar nada de interessante, terei que fazer isso à força! Bando de caipiras bobões...!

Jogando fora os cabelos, a moça novamente se ajoelhou diante de Ryota e esticou as mãos. Desta vez, na direção de seu rosto...

O som de uma lâmina cortando balançou o ar. O corte na vertical fez espirrar sangue, e a garotinha, saltando para trás, fez uma expressão de surpresa.

— ... Ora? Ora, ora, ora?

— ... Ryo!

À voz conhecida, pela primeira vez em algum tempo, Ryota reagiu. Os olhos voltaram a ganhar luz de consciência e buscaram a pessoa que havia chamado seu nome. Diante dela, havia um homem de corpo enorme e com grandes músculos portando uma espada larga e afiada.

— Tio Jaisen...

— O que... Esqueça. Precisamos sair daqui, agora! — Jaisen começou a falar algo, mas sacudiu a cabeça e apontou a lâmina na direção da garota com a cabeça inclinada para os dois. — E você, ô guriazinha maluca! Tava pensando em fazer o quê com minha garotinha, hein?!

A moça bateu palmas e deu pulinhos.

— Aaaah, que esplêndido! Alguém com uma aura intensa chegou! Belíssimo! Adorável! Finalmente alguém interessante! Ei, ei, ei, me diga: Quem é você?

— Apenas um chef cansado da vida — respondeu Jaisen, que juntou as sobrancelhas e firmou a voz. — E que fica muito puto quando mexem com minha menininha!

A passos rápidos e pesados, o espadachim avançou contra a garotinha absorta e de olhos arregalados. Ela riu quando desviou serenamente para o lado, porém, surpreendeu-se com a habilidade dele em virar o pulso e direcionar a lâmina num corte horizontal em sua direção novamente. Com um rasgo grande no braço, ela saltou para trás e admirou a força de seu oponente. 

— Ora, ora...? Não sabia que tinha alguém tão incrível por aqui. É simplesmente... Maravilhoso. Depois de tantos tolos aprisionados à vida, ao menos alguém aqui tem coragem e força! Hm, hm! É assim que eu gosto! — Num sorriso mais suave, ela ergueu a mão à frente do rosto e olhou os dedos. — Apenas um toque e tudo isso... Que bordô chamuscante esplêndido! Um verdadeiro espírito de combate! És verdadeiramente alguém com uma sede de sobrevivência admirável! Estou emocionada! Mas...

A garotinha piscou, a tempo de Jaisen tremer. Então, Ryota arregalou os olhos em choque ao ver o homem cair no chão em completa agonia, gritando a plenos pulmões e soltando sua espada manchada em sangue. 

— Jaisen!!

— ... É uma pena que você precise da purificação.

Jaisen arranhava e coçava os braços, pescoço e rosto, sentindo uma dor agoniante que começava a impregnar em todo o seu ser de forma insana. Parecia que algo atravessava seu corpo, entrava em contato com sua alma e o queimava. Era uma sensação semelhante a de ter o corpo coberto por chamas vivas, dançando por baixo de sua pele como vermes. Para deter toda a dor e sofrimento, numa tentativa falha de arrancar de si a coisa que, em sua vista, parecia andar por baixo da pele como alguém por baixo de panos, fincava as unhas para arrancá-lo à força. Sangue e carne espirravam. A mente lutava para manter-se sã, mas a visão era horrenda era demais para suportar. Os olhos se arregalavam em fúria e agonia, a boca se escancarava para gritar. 

Os olhos azuis de Ryota refletiam a pessoa que considerava um pai rolar no chão em sofrimento.

Illusio. — sussurrou a garotinha de cabelos castanhos, agachando-se com delicadeza para pegar sua corrente no chão e arrastá-la. O tilintar era como um tique-taque da morte — Que a Justiça o tenha, e possa passar pela provação com honra. 

Ryota se ergueu — ou tentou —, cambaleante, sem forças ou voz, e se arrastou na direção do homem que se contorcia no chão. Mas era tarde demais. As correntes se ergueram no ar, dançaram, e então acertaram o corpo de Jaisen, aprofundando-se em suas costas. O grito de profunda dor balançou Ryota de um jeito que a fez querer vomitar. Jaisen desmaiou logo em seguida, a poça de sangue aumentando e escorrendo.

Ryota perdeu o ar. Ela já não sabia como respirar. Não conseguia mais processar nada. Sua mente ficou completamente branca. Então ela gritou. Gritou tão alto que ficou surda com a própria voz. Foi um tom tão profundo de dor que mal se reconheceu. Tudo começou a escurecer, a visão embaçava com as lágrimas como torrentes escorrendo pelo rosto distorcido em fúria e tristeza.

Se arrastou como pôde. Era difícil se mover. Parecia que tinha esquecido como se andava. Estava totalmente concentrada no corpo morto de Jaisen diante de si. Os braços se esticavam na direção dele, as unhas cravavam no chão sujo para se aproximar. Rugia enquanto lutava para se locomover.

— Jaisen...! Ah... Jaisen! Não, não, não! Jaiseeen! AAAaaaahhhh!!!

Observando a cena, a menina com correntes nas mãos bufou.

— Muuuito sem-graça. Já cansei de ver isso, hoje. Me enoja. Me deixe acabar com essa situação penosa.

Mais uma vez, a menina de olhos dourados se agachou e sua mão foi estendida na direção do rosto de Ryota. Não podia ser real. Isso não deveria estar acontecendo. Só podia estar em outro pesadelo. Não queria acreditar que via o corpo de Jaisen no chão, cheio de sangue, morto por sua culpa. Que Nessa e Ian tinham morrido. Que todos... Que todos os outros também tinham... 

Por que... Por quê? Por quê?! Por quê?!

Perguntou-se mais uma vez o motivo da dor e da morte. O motivo de causar tanta desgraça.

Jin!

Foi tudo muito rápido. Sangue voou para o alto e a garotinha, surpresa, se afastou. Ryota ouviu o som de algo cair ao seu lado. Era uma mão. Então, alguém se colocou de joelhos ao seu lado e abraçou seu corpo. Zero estendeu a palma livre para a frente e fez um movimento para baixo com ela. A garotinha, ainda sem entender o que havia acontecido e como havia perdido parte do pulso, foi ao chão e afundou nele, rachando o solo. O corpo se esparramou, sangue jorrou quando ossos racharam e quebraram.

Zero resfolegava e arfava, completamente suado e sujo. Seu olhar suavizou ao voltar-se para Ryota, que olhou lentamente para ele. As íris azuis, sem brilho, ficaram instáveis ao perceberem quem estava ali. Quando falou, sua voz saiu fraca e quase rouca:

— ...Zero. Zero. Zero...!

Ryota se lançou sobre ele e o abraçou, tremendo dos pés à cabeça. Começou a soluçar, com lágrimas escorrendo uma atrás da outra pelo rosto. Zero torceu a face ao entender a situação, fechou os olhos e a abraçou de volta com força. Ela podia sentir o calor dele e o coração batendo rápido. Estava vivo. Alguém estava ali, vivo e ao seu lado. Suas unhas se encravaram com força nas suas costas, como se ele pudesse sumir a qualquer momento. Como se fosse a coisa mais importante para ela.

— Me desculpa por ter demorado tanto... — sussurrou ele, afagando sua cabeça. Então, voltou um olhar afiado para a garotinha próxima deles e grunhiu, irritado: — Você é...

— Cês têm alguma tara por acertar meu braço direito? Ai, ai... Que triste. Pelo menos podiam equilibrar as coisas, né, não? — disse ela, balançando o braço sem a mão e já de pé. Não parecia agonizar, muito menos sentir qualquer dor. Estava apenas incomodada pela situação. Porém, logo, um sorriso surgiu em sua face. — Chi de vento? Não... Parece um pouco diferente. Mas seus kiai são realmente muito rápidos e interessantes! Foi meio desconfortável ter minha cara enterrada, mas era uma sensação nova...!

— Nojenta. — disparou ele, baixo, antes de erguer a voz. — Se gostou tanto, terei o prazer de te cortar e amassar até fazer parte da terra.

— Que moleque atrevido... Mas, com cores tão atraentes, eu não resisto, sabe? Esse vermelho tão forte quanto as chamas me deixa levemente curiosa. E tudo isso por conta dela? Hmmm? Curioso, curioso, curioso! Outra pessoa interessante apareceu pra me entreter! — O corpo da garota estremeceu. — Me pergunto qual cor me mostrará quando eu matá-la também.

O clima ficou tenso. A pressão exercida pelo ar pareceu ficar mais forte, e até mesmo as chamas balançaram com o vento. Zero afiou o olhar, ainda abraçando Ryota, e jurou a si mesmo que não a deixaria morrer. Não importava o que acontecesse.



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