Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: Prelúdio do Romper

— Acho que já é hora de voltar.

— Parece que sim.

As nuvens se dispersavam no céu azul claro com uma ventania agradável. Acompanhar com os olhos essa movimentação natural era relaxante até demais. Os ouvidos escutavam apenas o farfalhar agradável das folhas da Grande Árvore e das flores logo diante deles. Considerando que, além disso, estavam de estômagos cheios, uma agradável sonolência começava a se instalar em seus corpos, quase que os guiando para o mundo dos sonhos. 

Entretanto, como assim Zero tinha apontado, eles precisavam voltar ao vilarejo. O começo da tarde indicava o início de várias tarefas que deixavam Ryota com preguiça só de imaginar. Precisou de um grande esforço mental e físico para se espreguiçar antes de se colocar de pé, girando os ombros.

— Sua cara tá toda amassada.

— Hmpf. Olha quem fala. Como é que pretende trabalhar com o cabelo todo embaraçado, os olhos cheios de remela e a pele toda amassada?

Ryota soltou um grunhido quando o rapaz assim apontou com palavras o estado lastimável de sua aparência. Com uma risada contida, Zero também se colocou de pé e tentou arrumar a aparência da garota, que ficou em silêncio e de olhos fechados, ainda meio sonolenta demais para dizer qualquer coisa.

— Pronto. Melhor do que nada.

— ... Hm. Ah, tive uma ideia! Vem cá, vem cá!

— Já vi que é mais uma das suas ideias estúpidas.

— Que grosseria! Não é nada estúpido! Vem aqui! Vem! Ugh... Tive uma ideia pra gente voltar pro vilarejo rapidinho, ó! Em dois palitos! Tão rápido quanto o vento!

— Uma ideia suspeita.

— Não é!

O que Ryota segurava nas mãos após erguê-la do chão era sua bicicleta amarela que podia ser carinhosamente apelidada de velha — isso se este fosse o termo correto para chamá-la, pois chegava a ser um elogio. O banco não possuía capa, a pintura estava desgastada com o tempo e o uso, o guidão torto, um dos freios mal funcionava, os pneus estavam mais gastos que qualquer tênis velho... 

— ... Uma aberração — Zero deixou escapar.

— Que coisa rude de se dizer! Nossa! Não fala assim do meu xodó! Tá vendo, amarelinha?

— ... Amarelinha?

— Viu, viu? Você é linda do seu jeitinho tortinho, tá? Eu te amo pequenininha — Ryota fez caricias na bicicleta com uma expressão de amor genuíno, formando um biquinho com os lábios. Ignorando um Zero que cobria o rosto de vergonha alheia, a garota continuou — Continuando: Como estamos com a amarelinha aqui, podemos descer nela juntos de volta para Aurora. Vai ser rapidinho! 

— Tá doida, mulher?! Você quer descer... 

 de bicicleta?!

Com uma indignação compreensível, Zero apontou descrente para a descida longa e perigosa que levava até o vilarejo. Era um caminho de terra e pedras secas que definitivamente não deveria ser usado para deslizar com qualquer meio de transporte com menos de duas rodas. Mas o sorriso confiante de Ryota não foi abalado por esse apontamento. 

— Na verdade, isso só me deixa mais ansiosa!

— Pra morrer, né?!

— É pra isso que você tá aqui comigo, não? Vai me proteger de cair e manter o equilíbrio enquanto descemos. 

Havia aí o sorriso de alguém que estava certa das próprias palavras, e que não ficou nada surpresa ao ver que Zero relaxou os ombros e fez uma careta emburrada. Ela sabia que ele o faria, mesmo que não tivesse dito isso em primeiro lugar. 

— Agora, vem! Sobe aqui!

Sentando-se com vontade no banco da bicicleta, que rangeu ao peso, e empurrando-a até a beira da descida, Ryota assim o chamou com um sorriso de criança. Após um suspiro pesado, Zero se aproximou.

— Ai!

— É melhor não deixar o guidão virar.

— Não vou! E também não precisava apelar pra violência de novo! Você é sempre tão ranzinza, eca.

Após lidar com o tapa na nuca, Ryota fez careta quando Zero escalou a bicicleta e apoiou os pés nos pedais que ficavam ao lado do pneu traseiro, segurando os ombros dela para manter o equilíbrio. Ele deu alguns tapas maldosos na cabeça dela, dizendo com uma voz nada animada:

— Yay, vamos lá. Uhuu. 

— Já que tá pedindo com tanta empolgação...! Bora lá!

— Hã?! Peraí, peraí, peraí, peraí... Sua doidaaaa!

Quando Zero percebeu, Ryota tinha pedalado a toda velocidade e acelerado loucamente contra o vento. A bicicleta, rangendo pelo peso, logo estava inclinada de forma perigosa, lutando para se manter reta na estrada. As pedras voavam para os lados, uma nuvem de poeira se erguia logo atrás da dupla. Um sorriso louco crescia no rosto da garota que ria alto, os dois pés pra fora dos pedais, as pernas esticadas ao vento. Zero, em contrapartida, guardou sua expressão de nervosismo e se concentrou em manter a seriedade.

— Faz a boa, Zero!

— Se é o que a aniversariante quer, quem sou eu pra negar um pedido dela?

Após o murmúrio, os dedos de Zero, que seguravam os ombros dela, fizeram um pequeno movimento com os indicadores e do meio. Foi suave ao ponto de Ryota nem sentir. Mas o suficiente para que, de repente, a jornada trêmula e cheia de sujeira que traçavam fosse interrompida por uma equilibrada e silenciosa. 

— Ué? Ah?! A gente... A gente tá...?!

Ela demorou um pouco para perceber a razão do guidão ter parado de tremelicar e dos pneus de rangerem em atrito com o chão. Ao olhar para baixo, percebeu que seus pés estavam muito acima do solo. 

— Zero! A gente tá voando! De verdade! Nossa!

Os pés de Ryota se agitaram no ar, ansiosos. Sua risada acompanhava seus movimentos alegres, o pescoço virando de tempos em tempos para trás, olhando para Zero com as íris azuis brilhantes de felicidade. 

— Você é incrível! Simplesmente um gênio incompreendido!

— ... Olha pra frente, tonta.

— Ai, meu cabelo!

Com um sorriso discreto, Zero fez Ryota voltar os olhos para a estrada de novo.

— Estamos descendo. Prepara os freios para estacionar.

— Há! Deixa comigo!

A dupla com sorrisos travessos se preparou para o impacto e inclinada que a bicicleta daria ao parar. Lentamente, mas sem diminuir a velocidade em que estava, o veículo que portava duas pessoas voltou ao chão, erguendo uma quantidade exorbitante de poeira por onde passavam. A bicicleta, que até então estava deslizando de forma frontal, conforme Ryota segurava os freios, virou-se na horizontal e inclinou de tal forma que os joelhos da garota quase encostavam no chão. Porém, isso não ocorreu, pois ambos estavam determinados a se manterem de pé até pararem. Zero, em especial, apesar de não estar muito animado com uma ideia tão radical a princípio, tinha um sorriso brilhante como a de uma criança que fazia algo errado, porém extremamente divertido. De fato, uma visão rara, mas que não duraria por muito mais tempo.

— Mas o quê...? Aaaah!

— Pelo Pequeno Sol!

— Cuidado! Cof, cof!

As pessoas ao redor começaram a exclamar ativamente quando a bicicleta, ainda escorregando num ângulo perigoso, alcançou o vilarejo. Não demorou muito para que, fazendo um som agudo altíssimo, eles finalmente parassem, deixando para trás uma linha grossa feita pelos pneus e uma nuvem de poeira que fazia todos tossirem.

— Isso... Isso foi demais...! Ah, há, há, há! — Ryota gritou a plenos pulmões, o rosto suando e um sorriso brilhante no rosto, se virando para Zero — Vamos de novo!

— Nem ferrando!!!

— Aaaaaah....

Ignorando a garota que lamentava baixinho enquanto colocava-se de pé com a bicicleta toda suja, Zero se virou para as pessoas que olhavam para os dois com ligeira vergonha. Ele não sabia nem como começar a pedir desculpas pelo alvoroço que causaram, mas, independente disso, era algo necessário a se fazer.

— Peço desculpas por isso. Minha amiga é... Bem, um pouco atrapalhada e exagerada às vezes. Não queríamos atrapalhá-los...

— Ora rapaz, não precisa se desculpar.

— Sabemos muito bem o quão boba a Ryota consegue ser. Não podemos fazer nada se as crianças a adoram tanto. Meio que já estamos acostumados.

O casal de velhinhos que assim respondeu com ligeira serenidade deixou Zero um pouco embasbacado. Ele se virou para onde os dois apontavam com o queixo, observando Ryota conversar de forma exagerada e alta com um grupo de crianças curiosas sobre o que tinha acontecido. Ela gesticulava com os braços, os olhos brilhando, o que apenas deixava o grupo ainda mais animado e falador. Era uma cena de caos e bagunça, mas, do ponto de vista dos adultos, algo muito agradável.

Zero percebeu que os outros ao redor pareciam dispor da mesma opinião que o casal de velhinhos, onde apenas uma pessoa ou outra, que pareceu ter se incomodado com a nuvem de poeira, ia tirar satisfação com a garota dando tapinhas duros, porém inofensivos em suas costas, de forma que a bronca não soasse agressiva. Mesmo sem ser possível ouvir o que conversavam, Ryota fez uma expressão culpada e pareceu se desculpar nervosamente, apenas para ter o cabelo bagunçado de forma brincalhona.

— ... É, os senhores têm razão.

Zero concordou em voz baixa com um sorriso discreto.

— Aaaah! Sua idiota, toma cuidado!

— Ela vai cair! Ela vai cair!

— Tá caindo um monte de folhaaaaas!

— Pega ele! Pega ele, Ryo!

Num piscar de olhos, Zero percebeu que o grupo espalhafatoso já não estava mais reunido em seu campo de visão, e se assustou ao vê-los debaixo de uma alta árvore. Ele correu até lá e gritou para o topo dela, apenas para escutar as crianças ao redor fazerem o mesmo, mas sem um tom acusador em suas vozes.

Ryota tinha escalado a árvore e passava por ela com maestria, saltando entre galhos na direção da outra ponta que era difícil de alcançar. O que ela buscava era uma pequena bola de pelos branca que estava encolhida, com medo de descer e cair. A garota, fazendo então um salto perigoso, chegou até o animalzinho e o pegou no colo, abraçando-o.

— Ela conseguiu!

— Caraca!

— Ugh, isso aqui tá realmente bem alto, né...?

Olhando agora com calma, Ryota percebeu que estavam a uma altura não apenas perigosa, mas também que chegava a dar vertigens. Depois de respirar fundo uma vez, a jovem deu um salto e pousou fazendo um estalo com os pés, um dos braços esticados na horizontal enquanto a outra envolvia a bola de pelos que se agarrava em suas roupas com as garras.

E quando todos os pequenos a rodearam com olhos grandes de curiosidade...

— Owwwwn! — Um coro agudo soou do grupo de crianças ao olharem o filhote de gato miar.

— Aqui, cuidem dele pra mim. Precisam pegar algo pra ele comer e trazer um pouco de leite também.

— Ok!

— Aaah, não é justo, eu também quero pegar ele!

— Espera aí!

Completamente encantados pelo felino que mal cabia na palma de suas mãos, as crianças correram para longe a fim de seguir as indicações de Ryota.

— Você estava pulando igual um macaquinho na árvore.

— Isso é só inveja das minhas habilidades.

Ryota jogou o cabelo para o lado com convencimento, mas Zero apenas fez cara feia, rindo disso, cutucando-lhe com o cotovelo. Mas ela nem deu atenção a isso, pois olhava com certa intensidade para a rodinha de crianças. O gato, parecendo melhor depois de se alimentar, parecia ansioso ao receber tanta atenção de uma só vez. Ryota pensou que era algo bom, pois pelo menos ele agora seria bem tratado. No mínimo, um pouco mimado demais.

Então, de repente, os dois trocaram olhares.

— ...ota?

Os olhos azuis do felino pareceram se fixar nos dela.

— Ryota?

— H-Hã?

— Dormiu em pé?

— Ah? Não, eu... — Ryota piscou duas vezes, olhando para Zero com clara confusão, então voltou os olhos para o gato, mas ele já estava focado em brincar com uma folha chacoalhada por uma criança — Não sei. Desculpa, acho que viajei na maionese do nada.

— ... Taí uma expressão que não escuto há bastante tempo. E vai continuar me ignorando?

Ryota deu um chute na canela dele, rindo. O pingente do colar em seu pescoço balançou. O céu azul começava a ser preenchido por nuvens e, pouco a pouco, ele escurecia. Gradualmente, a tarde logo chegaria ao seu fim.

***

— Mesas 02, 03 e 04 pra já!

— Beleza!

Aos gritos da cozinha, Ryota se direcionou rapidamente até a pequena janela que separava o salão da cozinha, alcançando duas bandejas gigantes nas mãos e outra na cabeça antes de se direcionar para as mesas com os respectivos números, entregando os pedidos no restaurante. O barulho constante de talheres e o cheiro das frituras era tentador a todos os clientes, que conversavam abertamente aos risos. A garota vestida num uniforme constituído de uma calça e camiseta social preta com um avental branco por cima se dirigiu ao caixa para acertar as contas, antes de dar meia volta e recepcionar a família que entrou no restaurante Tempo da Carne.

O sorriso dela continuava radiante, mesmo depois de zanzar de um lado para o outro, trabalhando e falando sem parar. Sentado ao lado do balcão, Zero passou o dedo na borda do copo, observando-a, quando um estalo em seu ouvido o tirou do transe. Um grande homem com cara de poucos amigos o encarou.

— Ei, guri — Ao se virar, o rapaz se deparou com um homem na faixa dos quarenta anos de pele negra e uma careca cintilante de suor que cruzava os braços. — Tá secando minha menina por quê?!

— Desde quando o senhor usa esses termos?

— Não muda de assunto não, ô. Tu pode disfarçar tudo, menos esse seu olhar nojento — disparou ele, estalando a língua e apontando para ele com o dedo indicador — Não me importo que venha ver ela, mas faz o favor de não ficar ocupando espaço com tua bunda gorda.

O grunhido arrastado dele indicava uma clara irritação, embora fosse algo que Zero já estivesse acostumado a ouvir de Jaisen, o dono e único chef do Tempo da Carne. No avental dele, havia estampado a logo "TdC" em laranja. Zero fez uma careta com o final da frase.

— Na verdade, você nem se importa que eu venha aqui e só quer que eu gaste meu dinheiro, não é?

— Mas é claro.

— E assim disse ele, sem um pingo de vergonha na cara. — zombou Zero, num sorriso disfarçado enquanto recebia olhares rápidos de Ryota, preocupada com a elevação da voz do chefe. O rapaz acenou com a mão, indicando que estava tudo bem.

Jaisen pegou com certa rispidez o copo vazio de Zero e começou a lavá-lo na pequena pia atrás do longo balcão de madeira.

— E?

— "E" o quê, tiozão?

— ... Ela te contou o que vai fazer daqui pra frente?

Jaisen estava seriamente concentrado enquanto secava o copo, como se tentasse conter os próprios sentimentos, mas acabou deixando escapar um grunhido irritado quando ouviu Zero responder rispidamente:

— Sim... Ela disse que iria sair de Aurora pra achar o avô. Pelo jeito, ela já tinha te contado, não é?

— O que te faz pensar isso, moleque?

— Tava escrito na cara dela. E na sua, agora.

Ouvindo isso, ao invés de grunhir de forma irritada de novo, Jaisen pegou um pano de prato e começou a enxugar a louça.

— A Ryo não sabe no que tá se metendo... Aquele velho maldito abandonou todo mundo sem mais nem menos. Mas, mais do que isso, a abandonou quando ela mais precisava — Ele estalou a língua de novo, quase rachando o copo de vidro nas mãos — ... E mesmo assim ela quer ir atrás daquele cara. Me deixa puto da vida, cara.

Zero juntou as sobrancelhas, disfarçando a expressão de incômodo quando Ryota correu para os fundos do restaurante para cortar lenha e voltou rapidamente com duas caixas cheias.

Ele lembrava perfeitamente de como Ryota tinha ficado naquela época. Só de pensar no quão desolada e solitária que ela tinha ficado quando lhe contaram que seu avô de consideração tinha abandonado Aurora, logo depois que sua mãe tinha falecido, um calor crescente crescia em seu peito.

Doía só de comparar o sorriso que ela dava agora com o olhar vazio que tinha no passado.

— Já tentou conversar com ela sobre isso?

— É claro. Mas tu sabe muito bem o quão cabeça dura a Ryo é.

— Por que eu sinto que você a mimou demais ao ponto de nem conseguir brigar direito com ela?

Jaisen grunhiu de novo, como um cachorro com rosnava para algo que não gostava.

— Fecha a matraca.

— Aaaaah, canseei. — De repente, Ryota se esparramou no balcão por um minuto. Uma gota de suor escorria por sua testa, descendo até sua bochecha avermelhada.

— Quer água?

Ryota meneou com a cabeça para Jaisen, agradecendo a oferta com um sorriso. Ela bebeu rapidamente antes de devolver o copo, apontando com o dedão para o lado.

— Deixei tudo ali perto do fogo, tio. Vou lá fora levar as canecas pra galera.

— Quantas vezes preciso falar pra não deixar eles se aproveitarem de você só por causa da sua força?!

Jaisen assim berrou, mas Ryota já estava levando uns dez copos cheios de cerveja pra área externa, ignorando os gritos do chefe, que bufou e passou a mão na careca. Então deu um tapa na nuca de Zero, que novamente seguia a garota com os olhos.

— Seca ela de novo e eu te mato.

— Eu não tô secando ninguém, que saco!

— Secando o quê? — Tão rápido quanto saiu, Ryota voltou e se uniu à conversa com um sorriso inocente.

— Ninguém!! — ambos gritaram em resposta, a assustando.

Zero riu com o nariz quando ela, confusa, perguntou a Jaisen o que significava "secar", e o pobre homem tentava desesperadamente mudar de assunto.

***

A tarde estava chegando ao seu fim. O céu, já quase completamente coberto por nuvens, estava colorido com belos tons de amarelo, laranja e vermelho. Uma ventania fria começava a passear pelo vilarejo, o que fez Ryota esfregar os próprios braços.

— Você precisa mesmo ir agora? Não quer ficar até amanhã?

Zero riu sozinho da voz baixa e melancólica que se dirigiu à ele alguns minutos antes, na saída de Aurora. Ryota, acompanhada das crianças, acompanharam o rapaz até a entrada do vilarejo para se despedirem dele. A garota assim falou baixando os olhos e unindo as sobrancelhas.

— Poderia dormir lá em casa, como sempre. Eu sei que estamos no meio da semana e tal, mas, ainda assim...

— Sinto muito, eu não posso — Ouvindo isso, a garota se encolheu, finalmente trocando olhares com ele — Como eu disse, só pude vir hoje até Aurora pela benevolência de minha mestre, que me permitiu tirar um dia de folga. Não posso abusar de sua boa vontade.

— Hmmm...

As crianças olharam de forma curiosa para Ryota, que fazia biquinho, como se isso fosse convencê-lo de alguma forma. No fim, ela apenas suspirou em desistência e deu um sorriso triste.

— É claro. Desculpa, eu só estou sendo um pouco egoísta. Muito obrigada por ter vindo hoje... — então, fazendo uma pausa para segurar a pedra azul de seu colar, continuou com um sorriso doce — Fiquei muito feliz.

— A-Ah... Tá.

Disfarçando o constrangimento, Zero desviou os olhos pro chão e cobriu com uma das mãos o nariz e a boca.

— E-Então, eu vou indo...

— V-Venha no fim de semana!

Ryota se adiantou alguns passos e segurou a mão do rapaz, o surpreendendo.

— Eu estou aprendendo a cozinhar umas coisas novas! S-Sei que ainda não consigo fazer receitas incríveis, mas prometo fazer um bolo pra você! Então... Então é melhor você vir me visitar, sem falta!

Era como se estivesse dizendo “Quer mesmo desperdiçar um bolo feito por mim? Que pecado!”, mas, ao invés de intimar Zero, essas palavras o deixaram extremamente feliz.

— Ai!

— Vamos ver, então.

O rapaz deu um peteleco na testa dela, de forma que a fez se afastar e colocar as duas mãos no local atingido, o que o permitiu ir embora e se virar rápido o suficiente para que as crianças não vissem sua expressão.

Pelo menos, elas continuaram gritando seu nome e acenando até que ele já estivesse longe de suas vistas.

***

A estação ferroviária - que nem poderia ser chamada de estação, sendo apenas uma parada de ônibus improvisada com um banco de concreto - estava silenciosa e meio fria. O rapaz inspirou o ar frio e se encolheu, ainda sorrindo para o nada, quando um apito alcançou seus ouvidos, e pôde avistar uma longa trilha de fumaça se aproximando em meio às árvores. A locomotiva vinha em alta velocidade.

Foi naquele momento.

Seu coração disparou de repente, e Zero se virou para a floresta, na direção contrária do trem. A sensação que o preencheu era estranha e perturbadora, como se o chamasse de alguma forma. Mas, mais do que tudo, indicava perigo. Como uma intuição que repentinamente fazia os pelos se arrepiarem e o fazia se mover. O sol da tarde, alaranjado, já se extinguia no horizonte. Ele deu um passo, hesitante. O apito agudo do trem soou, e então se foi ouvido mais uma vez quando Zero disparou na direção da densa mata, ignorando a chegada do trem vazio.

***

— Vamos ver, então.

Janelas fechadas, ok. Dinheiro do dia na gaveta, ok. Cabelo e jaqueta, ok. Mochila com água e lanchinho... Ok.

Ryota sorriu na porta de casa e olhou mais uma vez para o pequeno cantinho, inspirando fundo. Seu olhar parou no pequeno retrato na cômoda ao lado da cama, que estava abaixado, ocultando a foto. Raramente a levantava para vê-la, e, naquele dia, só de lembrar da existência do quadro seu peito doía. A respiração fraquejava. Então, mordendo os lábios para recuperar a estabilidade e manter o sorriso de sempre, Ryota saiu de casa e bateu a porta.

O caminho até o pico de frente para o oceano foi rápido, e ela evitou ao máximo conversar com qualquer pessoa que estivesse nas redondezas. O sol, no horizonte, a assistiu chegar e começar a se alongar, antes de amarrar a jaqueta na cintura e começar seus exercícios. Ela chutou o ar em sequência, antes de correr e se lançar ao chão, fazendo flexões, até se erguer e realizar outra sequência de socos. A sensação de leveza começou a preenchê-la, e Ryota nem viu o tempo passar. Sua mente não se concentrava em nada além do movimento de seus membros, da sensação leve e confortável de chutar e socar, do calor que a preenchia durante os agachamentos e corridas no lugar.

A garota só percebeu que já estava escuro quando uma gota caiu em seu rosto enquanto enxugava o suor da testa, bebendo da garrafa d'água. As nuvens escuras rangeram e trovões reluziram no céu, indicando o início da tempestade. Após recuperar o fôlego rapidamente, Ryota subiu na bicicleta amarela com a mochila nas costas e disparou até a estação de trem. Em quase um minuto de pedalada, as gotas gordas começaram a despejar, molhando seus cabelos e ombros, que estremeciam de frio.

O som da chuva era calmante. Ali, na parada, podia aproveitar a visão e o som para descansar...

— ... Hã?

... Isso, se estivesse sozinha.

O som do trovão chegou aos seus ouvidos depois de um poderoso raio iluminar completamente o espaço, e Ryota grunhiu com confusão e certo espanto para o homem de cabelos negros que dormia tranquilamente no banco de concreto.



Comentários