Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Dia Especial

Quando Ryota viu o jeito que o rosto de Zero se torceu, unindo as sobrancelhas e apertando os olhos, algo dentro dela se remoeu. O olhar que ele voltava para ela naquele momento era um que já tinha cansado de ver no espelho e, anos atrás, as pessoas lhe direcionavam esse mesmo olhar para a pobre garotinha abandonada. Seria amargura? Tristeza? Qualquer que fosse a resposta, não a agradava nem um pouco.

A incomodava profundamente ser alvo de pena ou rostos tristes. Não porque afetavam seu orgulho nem nada do tipo, mas porque sentia-se culpada. Fazer os outros sorrirem era mais fácil que explicar seus problemas, então, a partir de um certo momento, ela decidiu escondê-los. Foi uma decisão tomada muito antes de sua mãe falecer. Ryota percebeu que, em dias difíceis, tudo o que sua mãe tinha era sua única filha — e então, percebendo qual era seu papel, passou a tentar confortá-la e fazê-la sorrir, garantindo, todas as vezes, que sempre estaria ali por ela. 

Stella não era uma mulher fraca. Muito pelo contrário. Tinha um coração forte e gentil, mas que mesmo nas dificuldades, em meio às lágrimas e dores, continuava a viver pela única pessoa que lhe restara. Tinha um verdadeiro coração de mãe. E vê-la sorrir todos os dias trazia um orgulho enorme para Ryota. 

Não sabia se aquele comportamento havia inspirado o seu próprio atualmente, ou se foi um reflexo da sua necessidade de não preocupar os outros. Mas não era algo que importava.

Ela não era inteligente ou esperta demais. Não era bonita como outras garotas — estava o mais perto possível do considerado comum para jovens do interior. Não era super habilidosa em tarefas domésticas, mas também não era terrível. Era mediana em tudo, praticamente. Em todos os seus dezoito anos de vida, não havia descoberto uma única habilidade que a fizesse se destacar dos demais… Além de fazer as pessoas sorrirem. E, se era isso no que ela era boa, Ryota o faria sem pensar duas vezes. Se sentia bem deixando os outros bem. 

Fazer as pessoas do vilarejo sorrirem com piadinhas e ações idiotas. Brincar com as crianças todos os dias. Ajudar todos com tarefas que precisavam de auxílio sem hesitar. Enxugar as lágrimas e abraçar aqueles que precisavam de alguém para ampará-los… Esse era o posto que Ryota amava estar. Trazer a felicidade lhe fazia feliz. Ser útil aos outros, de qualquer que fosse a forma, a fazia se sentir necessária. Sentia que, se pudesse fazer isso pelo resto da vida, não precisaria de mais nada.

Ao menos, era isso o que ela pensava. 

Mas, todas as noites, quando estava sozinha em casa, de frente para o espelho, via seu sorriso se desmanchar lentamente. No silêncio, quando sua mente não estava ocupada com alguma atividade, quando rodeada por pensamentos, ela percebia o quão sozinha estava. Era um sentimento semelhante a se afogar, que trancava sua garganta e pesava o corpo como se a impedisse de se mover. Ficava cada vez mais frio. O som escapava do mundo e de sua garganta. A noção de espaço e tempo se esvaia. Quando tinha ido ao chão em busca de tato, de qualquer amparo para mantê-la sã, já era tarde. Ryota passava mal de um jeito horrível. Muitas vezes, se tinha jantado, acabava colocando tudo pra fora. A exaustão pesava, e, sem qualquer força, se via caindo no mundo de sombras de novo. 

Ela dormia… Até os sonhos começarem. Até os pesadelos se repetirem. E ela acordar aos berros, sem conseguir respirar e suando por todo o corpo.

Não era assim o ano inteiro. Normalmente, ela conseguia lidar com sua maldição. Mas as coisas ficavam especialmente difíceis no mês de aniversário da morte de sua mãe. 

Mas está tudo bem.

Ela pensava, sorrindo para si mesma no espelho, parecendo desesperada, mas tentando se convencer do contrário.

Eu posso fazer isso. Eu posso continuar sorrindo. É fácil, tá vendo? Eu só preciso… Não pensar em nada. É, sim, isso mesmo. Se tiver algo em que eu possa distrair a cabeça, vou conseguir.

Batia no rosto para acordar dos pensamentos desnecessários. Se concentrava nas conversas e vozes. Movia o corpo para se sentir viva. Ajudava os outros para se sentir útil. 

Se eu continuar assim, vai ficar tudo bem. Sim, vai sim. Tenho certeza.

Desde que continuasse a sorrir, estaria tudo bem.

***

O som das folhas farfalhando era como uma música suave aos ouvidos. A brisa fria, porém acolhedora, a fez despertar devagar. Ryota piscou algumas vezes para o cenário gramado e florido que via antes de limpar os olhos com uma das mãos. Demorou um instante para reconhece a colina da Grande Árvore Aurora, um tanto isolada do vilarejo Aurora. Era seu lugar especial, onde geralmente ia para relaxar a mente. O gramado e as flores amarelas no terreno que se extendia revelava uma bela vista. A árvore ao qual estava recostada era a maior do vilarejo, conhecida também como, talvez, a mais velha de todas.

Sobrevivia a todas as estações do ano, mudando sempre conforme o tempo exigia, e trazia beleza ao ambiente. Talvez fosse por isso que Ryota gostasse tanto daquele lugar. Era quieto, porém não demais, e permitia que ela relaxasse ao som da natureza, quando conseguia.

— Ah, você acordou? — ciciou alguém ao lado, num tom agradável.

— É... Eu acho... Que sim — respondeu num bocejo meio alto, para então sentir a cabeça pender no ar quando Zero afastou seu ombro dela para que pudesse observá-la melhor. Os dois estavam sentados contra a Grande Árvore, debaixo das sombras.

— Eca, babou na minha camiseta toda.

— … Desculpa.

— Que droga, você só dá trabalho. Vai, abre as mãos aí.

Após os duros comentários, Zero gesticulou para Ryota e jogou uma garrafa na direção dela, que, ainda flutuando, foi lentamente se abrindo e despejando água como uma torneira improvisada. Acumulando água nas mãos em formato de concha, a jovem lavou o rosto e arrumou os cabelos bagunçados.

— Devia ao menos ter me dito que não tinha tomado café da manhã. Eu teria trazido as marmitas, sabia? 

— Me desculpa, mesmo.

— … Hm.

Zero cruzou os braços e continuou a falar, mas seu rosto que fingia estar irritado murchou um pouco ao continuar receber respostas menos animadas que o esperado. Com um movimento de dedos, a garrafa que flutuava no ar, vazia, se fechou e voltou até sua mão.

— Aaah, sua testa tá queimando. Você realmente não tá legal hoje, né?

— … É o sol.

— Vai continuar com essa história? E — Zero ergueu o dedo indicador e deu um peteleco na testa dela, quando Ryota abriu a boca para falar — Chega de desculpas. Percebi que estava com calor com a jaqueta, então eu tirei. Eu sei que pedi pra você vir na frente pra eu buscar as marmitas, mas me assustei quando te vi caída no gramado. 

Zero apertou a ponte do nariz com a expressão de alguém que realmente parecia incomodado.

— … Eu dormi, né?

— É. 

Ryota piscou algumas vezes, refletindo.

— Por quanto tempo?

— … Alguns minutos. De qualquer forma, aqui — ele estendeu uma das marmitas, ainda embrulhadas, na direção dela — Acho melhor comermos antes que esfrie mais.

— E você ficou aqui, sentado, esse tempo todo?

Ignorando as palavras de Zero, Ryota baixou a marmita no colo e segurou a mão dele. Os olhos azuis dela encaravam ele com tanta seriedade que o rapaz ficou desconfortável, o rosto esquentando conforme tentava manter a tranquilidade. Mas o toque de suas mãos o desestabilizou por completo, o que só piorou quando lembrou-se de como ela, dormindo, tinha encostado a cabeça contra seu ombro. E ali eles ficaram por um bom tempo, com Zero sendo incapaz de se mexer com medo de acordá-la.

— H-Hã… S-Sim. M-Mas já passou! Vamos c-comer logo! O Jaisen ficaria bravo se descobrisse que desperdiçamos algo que ele fez especialmente pra você.

Puxando a mão com uma velocidade impressionante, Zero rapidamente concordou com ela antes de mudar de assunto e lutar para focar-se no pote com comida que começava a desembrulhar da sacola com a logo em laranja escrito “TdC” com espetos de carne nos fundos.

Houve um pequeno instante de silêncio, com a garota ao lado segurando a marmita nas mãos, olhando para ele e então de volta para o almoço de forma cabisbaixa.

— … Obrigada — sussurrou ela, dando um sorriso fraco.

— … De nada — respondeu ele na mesma intensidade.

Abrindo os potes com o cheiro de almoço fresco subindo até seus narizes, os dois começaram a comer com vontade. Zero revelou uma latinha de refrigerante escondida e dois copos plásticos, então dividiu a bebida para ambos igualmente. Após encherem os estômagos e Ryota soltar um arroto insegurável, a jovem puxou assunto em voz baixa:

— Desculpa por ter te dado tanto trabalho. Acho que eu tinha chegado no meu limite — riu ela, fracamente, antes de estreitar os olhos para o horizonte de flores amarelas — É o décimo aniversário de morte dela, afinal. Não foi uma noite muito agradável. Também não consegui… Passar no túmulo dela ainda.

Brincando com os dedos, Ryota respirou fundo para se manter calma. Recostou a cabeça contra a madeira da árvore, inspirando profundamente de novo. Com algum esforço, manteve o doce sorriso no rosto.

— Sim, eu sei. Mas, além disso…

Por favor, não.

— … Também é um dia especial.

Não faz isso.

Alheio aos apelos mentais dela, Zero trocou olhares com a garota, talvez percebendo seu desespero interno, mas ignorando-o, o rapaz retirou do bolso do calção uma caixinha de veludo que cabia perfeitamente em suas mãos e estendeu na direção dela com um sorriso culpado.

— Feliz aniversário, Ryota.

***

— ...Por quê? 

O rapaz apertou os olhos para a expressão de dubiedade e melancolia dela, que ainda tentava manter o trêmulo sorriso no rosto.

— Como eu disse antes, é um dia especial…

— Mas…

— ... E eu sabia que você não iria querer comemorar seu aniversário de dezoito anos. Mas eu decidi que queria quebrar essa regra pelo menos uma vez. Afinal, a maioridade é um momento muito importante. — Ele sorriu quando a expressão de Ryota fraquejou. Então, colocou a caixinha em uma de suas mãos, dando um pequeno aperto — Abre. Tenho certeza de que vai gostar.

Ryota comprimiu os lábios, hesitando. Ela não queria abrir. Não queria receber nada. Seus dedos tremeram de leve quando o ouviu terminar de falar, incapaz de se mexer. Apertou os olhos e inspirou fundo. Queria conseguir coragem para negar suas palavras. Pra dizer que não podia... Que não merecia.

— Que droga, por que você precisa ser tão teimosa? 

Com um arrepio na nuca graças ao sussurro em sua orelha, Ryota abriu os olhos quando algo gelado envolveu seu pescoço. Ela olhou para a pedra cintilante azul que estava, agora, pendurada abaixo do queixo, com um cordão preto de elástico simples. Era uma bijouteria que poderia ser lida como “barata”, por mal se destacar, mas que era exuberante aos seus olhos.

— Eu sei que você não costuma usar essas coisas, nem que é vaidosa, mas… — Zero tocou no pingente com delicadeza, o rosto próximo do dela — Quando vi a pedra, não consegui desviar meus olhos dela. Por alguma razão, tinha me chamado muito a atenção. E foi então que reparei… Está vendo? Ela muda seu tom de acordo com o movimento e a luz. Nas sombras ganha um tom bem próximo do oceano, mas debaixo do sol parece claro como o céu. Foi esse detalhe que me lembrou de você. Acho que nunca te disse isso antes, mas… — Ele a fitou — … Seus olhos também são lindos, Ryota.

Ela quase podia se ver refletida nas íris prateadas dele, brilhando com uma faísca bem diferente do que estava acostumada a ver. De certa forma, receber tanta atenção assim a deixou constrangida, e ela se viu se encolhendo no lugar com as bochechas ruborizadas.

Reparando nessa atitude dela, Zero finalmente percebeu o que tinha acabado de fazer e se afastou, recostando-se contra a árvore novamente e cobrindo a área abaixo dos olhos com a mão para evitar que ela visse sua face corada, também.

— P-Por isso, bom... Er... É... É melhor ficar com ele. C-Combina com você. — A parte final da frase dita em meio a resmungos envergonhados saiu quase inaudível, mas Ryota sorriu. Um sorriso trêmulo, quase como se fosse chorar.

Ela piscou algumas vezes, tentando lidar com a bagagem de sentimentos que a invadiram, então limpou os olhos com a mão. 

— Ai, Zero... Agora você me deu dor de cabeça, seu imbecil. Cabeça dura. Chato, insuportável.

— Nossa, pra que isso?!

— Mal encarado. Feioso. Estúpido.

— Tá ficando meio pessoal agora, né?!

Ryota riu da cara de raiva dele, que, em vingança à sua diversão às suas custas, puxou suas bochechas com vontade. 

Embora estivesse genuinamente feliz, uma pequena parte dela ainda não conseguia aceitar aqueles sentimentos e palavras. Não se achava digna. Mas… Que mal fazia? Uma vez em anos, não é? Se sentiria ainda pior se fizesse Zero, amigo de longa data e talvez a pessoa que mais era capaz de entendê-la — mais que a si mesma — ficasse triste por sua recusa. 

— Ai, pára, tá bagunçando meu cabelo todo!

— Ele já estava todo bagunçado, nem vem!

— Oooi? Eu arrumei ele faz pouco tempo!

— Chama aquilo de arrumar?! Ficou parecendo um ninho de passarinho!

— Falou o cabelo de beterraba!

— Cala a boca, tomatinho!

Brincando desse jeito, zombando um do outro e se acotovelando, a dupla continuou a rir. O peito de Ryota, por um momento, se permitiu ficar leve e aproveitar o que Zero havia lhe dado — um presente que ia muito além de um mero colar.

Acima deles, as nuvens começavam a se agrupar lentamente no céu quando a garota supriu um soluço.



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