Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: Disfarce do Desespero

Um som de chute soou pelo grande campo gramado, ao que várias vozes agudas e arfantes se sobrepuseram aos passos velozes.

— Vai, vai, vai!!

— Há!

Um dos garotos que corria gritou, fazendo com que várias crianças usando coletes da mesma cor se direcionassem para a garota de cabelos negros. Ela, também em alta velocidade, desviava das investidas do time azul com maestria, rindo das fracassadas tentativas de lhe roubarem a bola.

Embora houvesse uma clara diferença de altura entre ela e as crianças, não poderia subestimá-las. Os adversários avançavam de forma inteligente, buscando uma forma de vencê-la. Para os dois lados, era uma partida desafiadora e justa.

Com um forte brilho no olhar, a garota encarou o alvo no fim da quadra e, certa do resultado, acelerou o passo. O goleiro, percebendo que seria vital naquele instante, abriu as pernas para se preparar para o impacto.

— Droga! Eles vão marcar, capitão Ian!

— Aqui!

O capitão do time azul gritou desesperadamente para seus colegas, esperando que algum milagre surgisse e impedisse a atacante de chegar até a rede. Vendo uma barreira de jogadores se formar logo à frente, a garota levantou a bola acima do corpo e lançou-a com uma cabeçada na direção de outro membro do time vermelho. A receptora, sem pensar duas vezes, chutou em direção ao gol. 

— Não vou deixar! — Em resposta, um dos membros de azul usou o bico da chuteira para fazer a esfera ricochetear no ar. Um grande sorriso surgiu em seu rosto, como que percebendo uma oportunidade de, finalmente, virarem o jogo. 

— Há, há! — Isso, até ouvirem uma risada alcançar seus ouvidos, unida do som da bola batendo contra a canela da dona da voz. Viu-se, então, a atacante principal do time vermelho num salto no meio do ar. — Suuuper-chute-giratório-da-vitóriaaa!

Berrando o que chamariam de "técnica especial", Ryota mudou o curso da bola e direcionou-a em alta velocidade para o gol. Foi tão rápido que fez um som estridente ao passar pelo goleiro, que nem a viu chegar, rodopiando contra a rede.

— GOOOOOOOOOOOL!!

— Aêê!

— É nóis, timeee!

Ao soar do apito, várias vozes reverberaram em comemoração. O time vermelho se uniu num abraço coletivo, dando pulinhos de felicidade e batendo nas palmas uns dos outros. Nisso, as crianças de azul, mesmo após o adversário ter marcado um ponto rapidamente, já se preparavam para a continuação do jogo.

— Nossa vez de marcar! — gritou Ian, que olhou para Ryota e abanou a mão. — Bora continuar!

— Uuuui, tão confiantes hoje, hein?

— Há! A partida só começou!

Ao riso dele, a garota abriu um sorriso divertido e se dirigiu para o meio do campo. Naquela manhã, como de costume, Ryota se uniu ao jogo matinal com as crianças. Ela sofria um pouco com a forte luz do sol, que batia em seus olhos e corpo sem piedade. Entretanto, era só mais um dia absurdamente quente, com noites abafadas e cobertas de chuvas, como qualquer outono no vilarejoAurora.

Ela ergueu o dedo indicador, prestes a gritar algo para a juíza, até um impacto atingi-la na nuca. Veio de repente, com certa brutalidade e intenção de machucar, embora o objeto lançado fosse leve demais pra isso.

Ryota caiu de cara no chão, fazendo uma onda de altas gargalhadas se espalhar. A bola de futebol reserva rolou ao seu lado, revelando-se como a arma do crime.

— Aí! Isso doeu, viu?! Quem foi?! Não precisava partir pra violência, também! — gritando de forma exagerada, ela ergueu o rosto arranhado do gramado, a tempo de ver alguém de fora se aproximar a passos lentos.

— A culpa é sua por não escutar quando chamo. Se bem que você sempre foi meio avoada, então é um tratamento adequado.

— Isso foi cruel, Zero...

Vendo uma das crianças acusá-lo, o rapaz de cabelos violeta e olhos prateados balançou a mão livre, como se não fosse sua culpa. Ele levou a bomba de chimarrão aos lábios, escondendo o sorriso discreto. Ryota estreitou os olhos por conta da luz do sol quando, num suspiro pesado, Zero esticou uma mão em sua direção.

— ... Caramba, Zero. Toda santa vez você chega do nada, e nunca de um jeito legal. Tinha que ser o Beterra... Uai?!

— Cala a boca, Tomatinho.

Afiando os olhos, assim rebateu o garoto com cabelos cor de beterraba - segundo Ryota -, que repentinamente soltou a mão dela para que ela caisse de novo. Porém, foi salva da queda por algumas crianças que a apoiaram por trás. Ryota agradeceu-as com um sorriso divertido e se aproximou de Zero, dando um tapa inofensivo em seus ombros. Chamá-la de "Tomatinho" era uma analogia ao seu costumeiro rosto vermelho de tanto estar se movimentando de lá para cá, gastando energia ou distraindo a mente com alguma tarefa.

— E, como sempre, uma resposta na ponta da língua... — Ryota riu quando ele se voltou pra ela, apertando os olhos sérios. Então, ela juntou as mãos, inclinando a cabeça, fazendo seus cabelos lisos caírem para o lado. — Olha, eu sei que não tava te ouvindo, mas bem que tu podia ter sido mais legal, né, não? Cortou o clima todo... Ah! Já sei! Quer jogar com-

— Não.

— Uaaaah, frio e direto! — exclamou Ryota, erguendo as mãos em um ato exagerado, antes de virar as palmas pra cima, ciente da resposta desde o começo. — Hmmm? Que foi? O que é esse olhar penetrante? Ficou com dor de barriga depois de beber tanto chá? 

Zero engoliu em seco quando percebeu que tinha parado de repente, encarando os cintilantes e alegres olhos azuis da jovem. Então, torcendo os lábios, deu um puxão suave no nariz de Ryota antes de sinalizar com a cabeça para o lado, se afastando a passos rápidos que a impediam de sequer discutir a respeito.

— Ai, ai... Esse Zero, como sempre, é um cabeça dura, mesmo — Ryota assim murmurou consigo mesma, então fez uma careta ao perceber que teria uma dura luta pela frente.

— Vamos continuar o jogo, Ryo!

— É, vamos logo!

— Vem cá! Vem!

As crianças, logo atrás dela, exclamaram para chamar sua atenção. Engolindo em seco e inspirando fundo, Ryota se voltou para elas com um sorriso torto e uma expressão de culpa.

— Desculpem, vou precisar sair um pouquinho — disse, agachando-se na altura das crianças, que fizeram ecoar um "quêêêê?" melancólico — Ai, ai, não me batam! Eu sei, eu sei. Peço desculpas mesmo.

— Só porque estávamos vencendo!

— Agora não tem mais graça!

— Você não vai mais jogar com a gente?

— O quê?! É claro que não! Eu amo todos vocês, seus pirralhos ranhentos e suados — riu ela, dando um tapa inofensivo na cabeça de um e pegando na mão de outro — Mas é que eu preciso dar atenção pra uma certa beterraba rabujenta, ou, como vocês puderam ver, ele se torna uma pessoa um pouco violenta. Mas prometo que, amanhã cedinho, nós começamos a jogar e vamos até meio dia! O que acham? Ah! E também trago alguns suquinhos gelados e sanduíches para um piquenique!

Ryota sabia que aquilo seria o suficiente para convencê-los, então tranquilizou-se quando os rostinhos emburrados logo murcharam para sorrisos compreensivos e comentários alegres sobre o lanche do dia seguinte. Ela teria muito trabalho naquela noite, pelo jeito. De toda forma, ficou contente com a solução que rapidamente encontrou para o problema.

— Agora vão lá e vençam esses azuis! Tô torcendo pra vocês! Aí, Ian! Vê se não faz mancada!

— Falou a que caiu sozinha no campo!

— Blééé pra você também!

Os dois trocaram caretas e riram antes de se separarem. Ryota assistiu com um sorriso a partida recomeçar antes de correr até a sombra onde duas pessoas a aguardavam. Retirou seu colete vermelho e entregou-o para uma mulher de cabelos castanhos lisos sentada no banco de concreto com um apito nas mãos e uma garrafa d'água gelada na outra - esta que foi estendida na direção de Ryota.

— Obrigada, Nessa. — Ryota quase tomou tudo num só gole, mas parou quando uma dor gelada cutucou sua têmpora. Nessa balançou as mãos magras e pálidas, insinuando que não era nada demais.

— Você foi muito bem hoje.

— Sério?

— Sim... — Ela direcionou os olhos para o campo. Em específico, para o garotinho de nove anos comandante do time azul, Ian. — Faz um bom tempo que não o vejo rir tanto. Nem sei como posso expressar minha gratidão à você por tudo o que fez por nós.

Ryota deu um sorriso sem-graça, devolvendo a garrafa vazia para Nessa.

— Não é nada demais... Sério.

Há cerca de dois meses, o marido de Nessa falecera repentinamente. Ele ficou de cama, sem poder ver a família, por adquirir uma doença contagiosa que escurecia a pele, deixando-a preta e podre, sugando toda a sua vitalidade. Todos sabiam do que se tratava, mas não havia cura. Muito menos um tratamento decente - afinal, Aurora era um vilarejo isolado e muito próximo do oceano... E do Mar Sombrio. E ninguém queria chegar perto dele, o que afastava, muitas vezes, visitas do exterior. Incluindo médicos e curandeiros.

— ...ta?

— ...Hã?

— Você está bem, Ryota? Ficou quieta do nada.

Ryota piscou, recuperando o ar que tinha segurado.

Aconteceu de novo.

Tinha se perdido em pensamentos desnecessários de novo.

Como forma de disfarçar o sentimento amargo que subiu à garganta, soltou uma risada.

— Aaai, desculpem. É que esse calor tá realmente de matar, né? Fiquei meio tonta por um momento... Há, há...

— Você está bem, mesmo? — Nessa rapidamente perguntou, desmonstrando preocupação. Ryota balançou as mãos.

— É claro! Agora tô legal, sério.

A jovem voltou a mesma expressão para Zero, que a observava em silêncio, mas nada disse ou demonstrou. E isso preocupou levemente Ryota.

— Obrigado pelo chimarrão, dona Nessa.

Zero devolveu a cuia e se pôs a andar, acompanhando Ryota para fora do campo. Os dois andaram em silêncio durante algum tempo antes de chegarem a uma estrada de chão cheia de folhas coloridas - nas marrons, a jovem as esmagava como uma criança pulando e fazendo sons alegres. Uma brisa suave balançou seus cabelos, assim como as folhas das copas em tons laranjas, amarelos, marrons e verdes. As árvores cobriam o caminho com sombras, tornando a caminhada ainda mais agradável.

— Tô surpresa que você veio me ver no meio da semana, e ainda por cima durante a manhã. Tipo, geralmente cê tá sempre trabalhando, e tal... — Ouvindo o comentário, Zero deu-lhe um olhar lateral, ao que ela sorriu de novo — Mas eu fiquei feliz de te ver mais cedo. Muito... Mesmo.

— Digamos que foi pura sorte minha mestre me conceder uma folga hoje. — Zero ergueu as sobrancelhas e deu de ombros, finalmente sorrindo. Então, após uma pausa, continuou: — E... Hoje é um dia especial. Por isso...

Um aperto se formou na garganta dela. Ela não queria falar daquilo. E, mesmo ciente disso, Zero tocou no tópico indesejado. Parando até mesmo de pular nas folhas, Ryota se viu baixando o olhar de forma pensativa, procurando um jeito de rapidamente mudar de assunto. Foi quando sentiu toques suaves no topo da cabeça, como um afago rápido, e seus olhos acompanharam o rapaz apressar o passo, com as orelhas suavemente vermelhas.

Embora não soubesse o motivo do cafuné repentino, ela obviamente se aproveitaria dos efeitos disso para provocá-lo.

— ... Tá me encarando por quê? — Como suspeitava, Zero virou o rosto para o lado, não querendo que ela visse sua face rosada, e apenas murmurou uma pergunta quando esta chegou ao seu lado. Ryota balançou o dedo no ar.

— Só tava admirando a bela cor de seus olhos, meu amigo. Não é todo mundo que nasce com íris tãããão lindas, sabe?

— ... Ah.

— Mesmo sendo mal encarado e um grosseiro de dar dó, alguma coisa boa você precisava ter. — Ela riu quando uma veia de irritação saltou na testa dele, e seus olhos se voltaram para ela, afiados.

Ryota podia estar somente o provocando naquele momento, mas ela não estava mentindo quando dizia que as íris de Zero eram lindas. O cinza cintilava como prata às vezes - em raros momentos que o flagrava sorrindo -, podendo ser quase imperceptíveis pelo formato puxado de seus olhos, dando a impressão de que Zero estava irritado o tempo todo. Além disso, seu lado introvertido e palavras graciosamente afiadas não ajudavam muito no aspecto carisma.

Ela deixou escapar um riso meio choroso quando Zero puxou cruelmente suas bochechas, fazendo uma careta maldosa e claramente irritada. Foi durante a sessão de vários "Me disgurpha" dela que a expressão de Zero mudou. Seus dedos suavizaram o aperto, e então, ele aproximou o rosto, encarando-a fixamente.

— O que aconteceu?

— Oi...? — Ryota piscou, confusa, para a pergunta dele.

— Você...

Ele sabia.

Sentindo um arrepio, a garota levou suas mãos às dele, numa tentativa de afastá-lo e virar o rosto, mas não conseguiu. Não quando aqueles par de olhos a encarava tão profundamente que pareciam ver sua alma. Então, com toda a naturalidade que conseguiu juntar, o respondeu:

— Eu já falei que tô bem. O que deu em você? Do nada-

Perto demais. Perto demais. Eu falei perto demais ô carambaaaaa!

— Eu sabia.

— ... Ah.

O suspiro trêmulo que ela soltou foi o suficiente pra confirmar seu temor em voz alta. Ryota não queria que ele visse. Não queria que tocasse no assunto. Não queria que tivesse lembrado. Não queria, mas... Por que, mesmo quando sua mente dizia repetidamente "não", seu coração queria dizer "sim"?

Os dedos dele haviam passado com suavidade por baixo dos olhos dela, revelando as marcas de cansaço que a maquiagem ocultava.

Ah, merda. Eu sou uma idiota.



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