Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 9: Maldição

O despertar após um tempo inconsciente era semelhante a passar o rosto pela superfície d’água. A sensação da face levemente umedecida pelo suor e o vento que balançava os cabelos dava uma sensação de frieza confortável ao corpo que estava quente. Lentamente, Zero abriu os olhos e se permitiu, por um instante de silêncio, apreciar a sensação de estar parado.

Não podia dizer que estava completamente descansado, pois claramente tinha estado inconsciente por alguns poucos minutos antes de acordar oficialmente. O peso em várias partes de seu corpo indicava fadiga, alguns deles, inclusive, doíam ao tentar mover. Ele, então, ainda sentindo a carne meio formigando, decidiu permanecer naquela posição confortável por mais algum tempo.

Foi nesse instante em que sentiu tocar-lhe o rosto um pequeno suspiro. Era de alguém que expirava ar em alívio. Talvez por ainda estar meio confuso entre a realidade e o sonho, ele demorou para perceber que estava deitado em lugar quente e numa posição um tanto quanto diferente.

— Ah. Você acordou, Zero?

Quem o recepcionou ao olhar para cima foi um rosto de aparência relativamente comum. Tinha uma pele levemente maculada pelo sol, olhos que variavam nos tons do céu e do mar e cabelos negros lisos que escorriam pelo pescoço. Ela precisaria cortá-los em breve, se assim pretendesse mantê-los por mais tempo. As sobrancelhas dela estavam tortas, como se parecesse preocupada com o estado visual dele.

Mas Zero, apesar de estar completamente fascinado pela visão de acordar tão perto da garota, apenas respondeu com a voz rouca:

— Não, não. Estou dormindo de olhos abertos, não percebeu?

Ryota riu, sem se importar com a resposta dura. Ela sabia que era o jeito dele dizer que estava bem. Então, percebendo a distância curta entre os rostos, ainda ciente de que estava deitado nas coxas dela, o rapaz rapidamente se sentou e virou a cabeça a fim de disfarçar o calor que lhe preencheu o rosto e pescoço.

— Bom dia. — disse ela, sorrindo com uma tranquilidade admirável — Como se sente?

— ... Estou bem. — Zero olhou para o próprio estado, reparando, finalmente, nas faixas que cobriam-lhe os braços, torso e partes das pernas. Então, olhou ao redor, para a floresta escura e fria com apenas uma pequena fogueira adiante para aquecê-los — Quanto tempo se passou?

—Acho que uma hora desde que saímos de Aurora. — Ryota respondeu à Zero, agora estando sentados lado a lado, com um tom melancólico. Ela olhou para as próprias mãos. — ... Eu ainda não consigo acreditar. 

Zero juntou as sobrancelhas, percebendo a dor imbuída na voz dela, ocultada pelo sorriso amarelo. Como poderia tocar no assunto sem ser indelicado? Não foi capaz de impedi-la de correr na direção do fogo, ou de ver aquele inferno na Terra... Mesmo depois de receber a confiança dela, não foi capaz de derrotar a Entidade.

— Nem eu... Como... Como Jaisen está?

Ryota suavizou a expressão com a mudança de assunto e olhou para o lado, onde o homem mencionado repousava tranquilamente.

— Está estável... Não corre risco de vida, pelo menos.

Zero fez um som de alívio, ao mesmo tempo em que uma dor apertou o peito dela. Estava feliz por ter confiado nele naquele momento. Por terem conseguido salvar ao menos uma pessoa. Mesmo assim, pensar em Jaisen a fazia relembrar dos corpos ensanguentados, dos gritos, da corrente... De como Zero tinha simplesmente desmaiado em seus braços ao vê-la, com um grande ferimento no estômago e machucados grotescos.

Ela já não aguentava mais naquele momento. Sua mente tinha sido preenchida pelos sons de dor e pelo cheiro de sangue e carne queimada a tal ponto que só tinha conseguido andar de forma quase que inconsciente. Porque, se tivesse ficado consciente demais, provavelmente teria desabado de novo.

Eu podia ter feito mais... A Nessa, o Ian, os fazendeiros, as crianças... Eu podia ter feito alguma coisa, e então o tio não teria ficado assim, e o Zero também... Que merda, merda, merda, merda...

— Como tratou dos ferimentos dele?

Era uma pergunta pertinente. Afinal, Jaisen quase tinha sido morto pela garota das correntes. E, apesar dos primeiros socorros, Ryota não teria sido capaz de salvar alguém com vida em um estado daqueles. Então, quando estava prestes a responder...

— Ah, ah! Finalmente achei! Demorou um montão, mas consegui um pouco mais de...

... Uma terceira voz masculina alta e cansada se sobrepôs. Surgiu, então, do meio da floresta, um homem de cabelos negros e enrolados que se direcionou a passos largos até a dupla. Ele carregava, num dos braços, uma pilha de gravetos ainda úmidos da chuva. Suas roupas estavam sujas e um pouco rasgadas, provavelmente por ter se esgueirado em busca dos pequenos galhos entre os matos.

Ryota piscou bem a tempo de Zero surgir na frente de Sasaki com uma pedra afiada como uma lâmina tocando seu pescoço, a outra mão concentrando chi logo ao lado, emanando uma aura verde, pronta para disparar a qualquer momento. Suas íris prateadas afiadas encararam os olhos negros inexpressivos do outro.

— Mexa-se e eu te mato.

— ... Ué? Temos um cabeça quente entre nós?

— Ah... Aaaah! Não, não, não... Peraí, Zero! Ele não é inimigo! — Ryota gritou e correu até eles, desesperada. Mesmo a ouvindo, não pareceu que iria recuar tão cedo. — Foi o Sasaki que cuidou do tio Jaisen.

— ... Sasaki?

Os olhos dos dois se encontraram de novo, e o rapaz o analisou por um momento, como se pedisse por uma explicação. Mas, ao mesmo tempo, estava curioso pelo homem chamado Sasaki continuar com seu sorriso sereno no rosto enquanto era ameaçado, erguendo a mão livre, como se dissesse "paz".

— Se acalmou, rapazinho?

— Não gosto dele.

— Eu também não gostava no começo, mas relaxa que você se acostuma.

— Isso significa que você ainda não gosta de mim? Que coisa triste de se dizer, hein?

Zero torceu o rosto para a forma meio íntima que ambos pareciam falar, mas recuou, guardando a pedra no bolso. Sasaki se voltou para o garoto emburrado:

— Caraca, você é protetor mesmo, hein? Nem esperou eu terminar de falar e já foi logo correndo pra cima de mim igual um cachorro.

— Não me entenda errado. Foi prevenção. E desde quando você conhece esse mendigo, Ryota? — respondeu, seco, e apontou o dedão para o homem que fez uma careta de descrença para a forma com que foi chamado.

Ryota riu meio sem graça, ainda sendo avaliada pelo olhar sério de Zero. Ela não sabia, mas o rapaz não estava agindo daquela forma apenas por sentimentos pessoais, mas também por, obviamente, iria suspeitar de alguém que ela provavelmente tinha conhecido há pouco tempo e parecia confiar plenamente. Ainda mais sendo um estrangeiro do vilarejo.

— Eh, Zero... Isso foi bem maldoso.

— Responde logo.

— Fica tranquila, viu? Não é um menininho putinho da vida que vai me tirar do sério. Ah! Sobre o que você queria saber... É segredinho entre eu, ela e nossa promessa debaixo da chuva. — Então, ele piscou com um olho com um “quê” de piada. A garota, assistindo a cena, apenas sorriu de lado desconfortavelmente quando Zero sacou a pedra de novo e ameaçou matá-lo de verdade.

Batendo palmas, Ryota tentou amenizar a situação:

— B-Bom saber que já estão virando amigos!

A garota apenas soltou um grunhido agudo, disfarçando um riso, enquanto via os dois se virarem para ela e reagirem de formas completamente diferentes à afirmação.

***

Pouco tempo depois, o trio se reuniu ao redor da fogueira. Zero, por algum motivo que Ryota não entendeu, estava sentado bem ao seu lado, entre ela e Sasaki, e direcionava olhares afiados pra ele a qualquer fala ou mísero movimento dele.

— Algum problema, Zero?

— Não, nada não.

— Hmmm... Olha, você não devia ficar olhando feio desse jeito pras pessoas. Ainda mais pra alguém que salvou a sua vida e a do tio Jaisen.

Ryota puxou a orelha de Zero com palavras duras e uma voz séria que não dava brechas para piadas. Bem, eles não estavam em um clima exatamente bom para aquele tipo de coisa.

O rapaz apenas baixou o rosto em respeito ao pedido dela.

— No mínimo, você devia agradecer ao Sasaki pelo trabalho duro.

— Como é?!

— Aaaaaí sim! — Sasaki, finalmente tendo deixa pra falar, exclamou feliz enquanto batia palmas de escanteio.

A garota cruzou os braços.

— Não tô falando nada absurdo, não é? Eu sei que ele pode parecer meio idiota às vezes, e pode ser um pé no saco, mas a gente precisa admitir que estaríamos de mãos atadas sem ele por perto.

Zero fez uma careta que parecia o rosto de um demônio. Quando se virou para Sasaki, que parecia ter florzinhas ao redor do rosto sorridente, esperando de forma orgulhosa o agradecimento vindo do rapaz, ele quase rosnou.

— ... Vai logo! — incentivou Ryota com um cutucão do cotovelo no braço do rapaz.

— Eu sei! — Apesar de assim dizer, ele claramente não queria fazer aquilo. Porém, engoliu seu orgulho da melhor forma que pôde e, ainda fazendo expressão de que queria matar alguém, falou — A-Agradeço por ter nos ajudado.

Ryota pareceu aceitar as palavras. Sasaki... Bem, não precisa nem ser dito que ele ficou impressionado com o esforço gasto pra dizer tal frase, então, de certa forma, pode-se dizer que ele a aceitou de bom grado, também. Embora com um sorriso bastante irritante na expressão.

— De qualquer forma... Por que tem tantas roupas jogadas? — disse Zero de repente, inclinando a cabeça ao ver sua camiseta e colete estendidos contra uma grande pedra. Atualmente, ele se encontrava enfaixado na região do abdômen, vestindo somente o calção.

Ryota ergueu o dedo, explicando.

— Ah. É que boa parte delas ficaram bem sujas, então aproveitei pra lavar algumas. 

— Como foi que conseguiu tirar o sangue?

— O Sasaki me ajudou com isso. 

Zero pigarreou com vontade, antes de a olhar de cima a baixo, como que percebendo algo, e se afastando devagar.

— Então, o motivo de você estar só de jaqueta é...

A garota assentiu para a conclusão que ele havia chegado.

— I-I-I-Isso significa que... Você não está com-

— Sim! Sem sutiã! — respondeu Sasaki, erguendo o dedo indicador.

— NINGUÉM TE PERGUNTOU NADA! — berrou Zero enquanto lançava uma pedra na direção dele. Seu rosto ficou vermelho até as orelhas. 

— Mas fica tranquilo Zero, porque olha só...

— Nãããão, vira isso pra lá! Você também, principalmente! Se olhar, eu mato você de verdade, entendeu?!

Ouviu-se o som de um zíper descendo. O garoto estremeceu quando seu nome foi chamado, e Sasaki apenas ria enquanto tinha os olhos tapados de forma desesperada pelo garoto envergonhado...

— Viu? 

... Que ficou em choque ao ver que uma faixa branca cobria a área dos peitos dela. Ryota arqueou uma sobrancelha, ainda confusa com o gesto surpreso dele. 

— Espero muito que não tenha achado que eu estava simplesmente...

— N-Não! Não, claro que n-não! Eu só-

— É um safado, mesmo! — interrompeu Sasaki, ainda sem poder enxergar. E que, de repente, seus olhos quase foram furados pelos dedos que o cobriam. — Você muda totalmente quando o assunto é ela, hein? Mas, olha só: Primeiro que eu seria preso se tentasse algo com alguém com idade pra ser minha filha. Segundo que meu coração pertence somente a uma mulher, e é a mais linda de todo esse mundo.

— Tenho pena dela.

A garota observou com um sorriso que se desmanchava cada vez mais a conversa engraçada dos dois rapazes até baixar os olhos.

— ... Quem será que era aquela garota? — murmurou Ryota de repente, olhando para as próprias mãos, perdida em pensamentos. As vozes dos dois ao lado, que discutiam, pareciam distantes perto dos flashes de memórias das chamas nos olhos dourados da garotinha risonha.

Percebendo que o clima descontraído tinha lentamente se esvaído, os dois rapazes ficaram em silêncio por um instante.

— Ela se autodenominava Entidade da Insanidade. Seu nome era Mania.

— Mania?! — disparou Sasaki, arregalando os olhos para o rapaz que se sentava ao lado da garota confusa, que esperava uma explicação. — A Insanidade é um ser incompreensível que vêm cometendo atentados há muito tempo em Thaleia, mas ela é alguém bastante conhecida ao redor do mundo.

— ... Atentados? Conhecida?

— Mais cedo, na estação, senti uma presença estranha na floresta e fui verificar. Acabei encontrando um homem mascarado que acabei descobrindo se chamar Shai. Ele estava trabalhando com a Entidade... E aquela névoa estranha começou a se dispersar desde aquele momento. — Ele e Sasaki se encararam, como se soubessem do que estavam falando. — Mas não imaginava que Aurora fosse vítima dessa vez...

— Esperem um pouco... Vítima? Shai? 

Ryota levou uma mão à testa, tentando entender do que estavam falando, já que a conversa tinha discorrido muito rápido. Nunca tinha ouvido falar de "Entidade", de atentados conhecidos... E a tal Mania.

Zero franziu o cenho, prestes a falar:

— A Entidade da Insanidade, Mania, é um ser conhecido por causar atentados sem razão e genocídios em massa. As vítimas enlouquecem até a morte, muitas vezes são encontrados... Corpos desfigurados e coisas assim. — Zero mudou o tom quando Ryota fez uma careta, talvez lembrando de Aurora. — E haviam chances dela estar pelos arredores depois do último atentado, há quase um mês... 

— Sabiam que ela estava por perto e ninguém nos avisou?!

— Talvez, pelo vilarejo ser tão afastado e recluso, os moradores não tiveram acesso à informação. Ou, talvez, cientes de que o povo de Aurora era bastante... Bem, um pouco hostis com estrangeiros, as pessoas acabaram não transmitindo essa notícia. — Sasaki refletiu, e interrompeu a nova pergunta indignada de Ryota — No entanto, como talvez você queira dizer, causar uma comoção só pela possibilidade seria um problema e tanto. Existem muitas cidades e vilas ao redor, e qualquer uma poderia ter sido vítima da Insanidade. Fazer uma evacuação assim seria dar vantagem à ela, dependendo do que aquela coisa pensa.

— Se é que podemos adivinhar o que ela faria — acrescentou Zero.

Mania, a Entidade da Insanidade. Um verdadeiro demônio no corpo de uma garotinha de olhos dourados. Aquela que traz o inferno, criando seu próprio purgatório. 

— Infelizmente, quase ninguém sobreviveu aos seus atentados... E, os poucos remanescentes acabam enlouquecendo com o tempo, ou desenvolvem algum trauma psicológico irreversível. Vocês tiveram sorte. Muita sorte.

O comentário de Sasaki, que sorria fracamente, não trouxe tranquilidade para o coração de Ryota, que repetia mentalmente o fato da destruição do vilarejo ter sido por acaso. Ter sido uma vontade repentina e que deveriam aceitar. Que tinham simplesmente sido escolhidos, e era tudo. Ela queria gritar, afundar a unha na própria pele de raiva e frustração... Pela injustiça, e pela culpa.

— Eles não mereciam isso...

— Não. Ninguém merecia. — sussurrou Sasaki de volta pra ela, que havia se encolhido e abaixado o rosto, o estalo da madeira da fogueira sendo o único som entre eles.

Tal momento foi quebrado pela voz murmurada de Zero:

— Ryota... Esse cara estava lá fora quando começou o incêndio? — Ryota ergueu os olhos devagar — Tem certeza que ele não está envolvido nisso tudo?

— O que você... — A voz dela saiu tão baixinha que nem foi ouvida.

Ela não sabia. No começo, havia estranhado sua presença, sim... E, agora, quando Zero perguntava aquilo diretamente, uma pontada de dúvida a incomodou. O curandeiro, no entanto, permaneceu com a expressão neutra.

— Posso ir embora, se quiserem.

— Não! Digo... Precisamos de você aqui. — Tendo se desesperado ao falar, acabou percebendo o quão alterada estava. Com as emoções à flor da pele, não era de se estranhar que seus dedos tremessem tanto e sua mente parecia ficar branca a todo momento. Naquele instante, depois de ter erguido a voz involuntariamente, ela sentiu o olhar analisador de Zero — Quero dizer... Não posso falar com toda a certeza que ele é confiável, mas... Eu quero acreditar que é. Ele já ajudou tanto a gente, e se quisesse nos fazer mal, já teria feito, não é?

Embora fossem palavras sinceras, era quase como se buscasse uma esperança nas próprias palavras, orando para que fosse verdade.

Ryota olhou para Sasaki.

— Eu quero continuar acreditando em você. Porque o Jaisen precisa de cuidados médicos especiais que nem eu ou o Zero sabemos fazer... E tenho muito medo que ele possa acordar e sofrer de algum efeito colateral, ou sei lá.  — Ryota comprimiu os lábios, se sentindo pequena no meio deles. — Me desculpem. Eu estou sendo bem egoísta, não é? Mas, agora, eu só quero cuidar daquilo que não perdi... E não tenho escolha a não ser abaixar a cabeça e pedir ajuda.

Ela parou de falar por um momento, antes de olhar lateralmente para Zero e murmurar outro “desculpe”.

—... Eu quero acreditar nele. Mas, muito obrigada. De verdade.

Não tinha conseguido passar confiança nas palavras como queria, muito menos explicar o que sentia em relação a tudo. Porém, buscou ao menos demonstrar a gratidão que tinha pelo garoto, que se preocupava tanto. E as suas esperanças quanto a Sasaki, que não havia desviado o olhar dela. Em seguida, o silêncio novamente tomou conta do lugar.

Seu coração estava apertado e Ryota quase não conseguia suportar a dor e agonia que cresciam dentro de si. Não haviam motivos para não pedir ajuda a alguém que estava disposto a tal, principalmente depois de tudo que Sasaki havia feito e se propôs a fazer. Ter se dado ao trabalho de ir até o vilarejo, esperar por ela e cuidar de Jaisen; de tê-la consolado, mesmo que um pouco; de ter cuidado dos ferimentos de Zero com tanto afinco e esforço, sem querer nada em troca... Ela queria acreditar, e muito.

Talvez estivesse sendo feita de idiota. Uma trouxa, enganada por um sorriso gentil e que pudesse ser traída a qualquer momento pelo homem com capacidades além da sua imaginação. Alguém com habilidades que nem sabia que existiam. Porém, não importava. Se pudesse fazer algo, qualquer coisa, para proteger e manter aquilo que lhe era importante, era o suficiente. Depois de fazerem tanto por ela, depois de apenas assistir e choramingar pelos cantos... Abaixaria a cabeça e pediria por ajuda. Agora nada, nem orgulho ou ela mesma, eram importantes. 

Faria qualquer coisa pra não perder mais ninguém de novo.

—... Está bem. Mas, se eu perceber qualquer movimento estranho deste cara, não vou hesitar em matá-lo. Entendeu?

Ela não concordou, mas sabia que não tinha escolha. Sasaki, que apenas acompanhou o andamento da conversa, assentiu em silêncio. 

Então, a reunião noturna sobre o ataque ao vilarejo Aurora terminou em um clima tenso e instável, com somente o som das ondas chegando até as areias soando no campo iluminado pelo luar.

***

A madrugada estava abafada enquanto andava com os pés descalços na água do oceano, buscando se refrescar. Atrás dela, Zero dormia num sono profundo, e Sasaki, deitado num monte de areia, parecia cochilar. 

A garota se dirigiu para a floresta escura a passos lentos com o som de grilos e cigarras soando em seus ouvidos. Ryota sorriu quando caiu de joelhos e começou a botar pra fora tudo o que tinha dentro do estômago. Quando parou para limpar os lábios, teve um espasmo e resfolegou, apoiando-se numa árvore. Sua cabeça doía. Seu corpo doía. Seu peito doía. Seus olhos ardiam e lágrimas escorriam sem parar. Ela soluçou, tentando ocultar o som com a mão, e chorou.

Lamentou, se desesperou, desejou desaparecer e se entregou completamente à escuridão pela primeira vez em anos. Aceitou todas as acusações, as dores e as vozes de sua cabeça.

Ela chorou, chorou, chorou e chorou. E então, pela primeira vez em muito tempo, dormiu até o amanhecer.



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