Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Fuga do Rescaldo

— Ora, ora, ora... Isso foi um pouco... Decepcionante. — Mania inclinou a cabeça para o lado, analisando o garoto de pé a poucos metros de si, igualmente encharcado de sangue e ferido.

O rapaz a quem falou e olhava com as sobrancelhas tortas estava respirando com dificuldade, apoiando-se com o joelho no chão e abraçava a barriga. Suor e sangue escorriam por sua pele. Ele lutava para estancar o sangramento do grosso ferimento que tinha sido infligido através da bola de ferro, tendo rasgado sua barriga à carne viva.

Em contraponto a isso, a garotinha que tinha uma aparência notavelmente simples e um ar inocente também estava completamente destroçada. Apesar disso, mantinha-se de pé, falando normalmente, como se nada tivesse acontecido.

— Mas você foi realmente incrível por conseguir arrancar meu braço esquerdo! Agora não posso segurar minhas correntes, ah, há, há! Me pergunto se tenho forças pra pegá-la com os dentes...

Mania riu da própria situação, ergueu os dois braços sem mãos e os balançou no ar com certa violência. Era uma visão horrível. Porém, o sorriso assustador continuava em seus lábios, desenhado perfeitamente.

Quando tentou inspirar fundo, Zero engasgou, tossiu e cuspiu sangue no chão. Então, para a surpresa da Entidade que até então falava sozinha, sorriu.

— ...Eu que estou decepcionado... Pelo Domínio Completo não ter durado tanto tempo... Ugh...

— Do...? Domi...? Domimi...? Domínio...? Aaaaah! Fala de quando esparramei minha cara no chão e me ralei toda?! Ai, ai, ai, ai... Realmente isso daí foi bem chatinho, hein, vou te falar. — Mania riu, com um fio de sangue escorrendo de seus olhos e boca, arrastando-se devagar com os pés na direção dele, que resfolegou em surpresa.  — Mas é uma peeeena que tenha caído tão rápido com o Illusio. Ter os órgãos furados e amassados foi... Uh, Uma experiência bem diferente do normal. Gostei muuuito de como o amarelo te cobriu... E aí ficou todo cinza de novo! Ah, há, há,! Foi tão engraçado! Hmmm... Me pergunto o quanto sua aura dançará quando eu te tocar de novo. 

Mania lambeu os lábios, bateu palmas — ou melhor, bateu os pulsos — para as próprias ideias e pensamentos, e então, de repente, começou a caminhar. Passo a passo, os pés se erguiam e marchavam lentamente na direção do rapaz ajoelhado. O andar era desengonçado devido a quantidade de ferimentos, mas ainda podia ser chamado de caminhar, mesmo deixando um rastro grotesco de sangue no chão já completamente ensanguentado.

— ...Ué?

O murmúrio de incompreensão soou dos lábios da garota sorridente, que não entendia a sensação e nem o que tinha acontecido. Sons de algo sendo perfurado soaram, e então seu corpo se movimentou devido ao impacto das lâminas que afundaram em sua carne. Mais sangue jorrou. Inúmeras facas, que vinham de vários lados diferentes, voaram na direção de Mania que recebia os golpes em silêncio e completamente parada, os cortes se aprofundavam ao ponto de manterem para fora apenas os cabos.

Ainda assim, outras, que apenas passavam rapidamente e faziam rasgos, também machucavam cruelmente. Logo, todo o corpo da garotinha estava totalmente destroçado. Ela apenas teve tempo de ver uma ou outra chegar, até simplesmente precisar aceitar todos os ataques para que pudesse se mover.

Ainda de pé, com sangue escorrendo por todos os cantos do corpo, Mania voltou seus olhos dourados para o rapaz de cabelos violeta. Ela ameaçou dizer algo, mas foi interrompida quando uma última faca veio voando e acertou perfeitamente seu olho direito, quase atravessando sua cabeça. O corpo dela cambaleou mais uma vez, mas não caiu.

— ... Acabou, Insanidade. 

Era morte certa. Uma pessoa comum jamais sobreviveria a tantas facas, quanto mais ser perfurada em todos os pontos vitais. O golpe que atravessava o cérebro era o cheque mate. Zero, então, finalmente testemunhando a queda lenta do corpo de Mania, arrumou a postura e moveu os ombros, preparando-se para concentrar o restante de seu chi nos pés para que pudesse escapar do vilarejo.

Apesar de ter garantido a morte de Mania... Ou melhor, ter garantido que ela não conseguiria persegui-lo, Zero não podia perder nem mais um segundo para escapar. Independentemente de como as coisas pareciam, acreditar que tinha vencido “tão facilmente” era estupidez.

Porém, ele finalmente tinha conseguido criar uma abertura perfeita para sair dali. Foi com isso em mente que começou a se colocar em pé...

— Oh, a senhora exagerou. É a primeira vez que a vejo tão perto da morte.

... Até uma voz de tom melódico chegar aos seus ouvidos. Zero travou no mesmo momento, lentamente voltando seus olhos prateados para a dupla atrás de si.

— Foi apenas uma infortu... Inforta... Infom... Uma infortunidade, meu caríssimo companheiro!

— ... Senhora Mania, o correto seria infortúnio.

— Ai, eu já sabia! Poxa, cê é sempre chatão, né?

Pasmo, o rapaz observou a conversa com os pelos do corpo arrepiados. Havia ali uma garota toda destroçada que, com a ajuda de seu “companheiro”, retirou a faca cravada no crânio e a jogou no chão. O homem que a tinha pego sacudiu a mão suja de sangue no ar com claro nojo, retirando um lenço de algum bolso para limpar o líquido pegajoso dos dedos.

Enquanto isso acontecia, os dois trocavam palavras de um jeito até bastante... Amigável. Se os ouvisse de longe, pareceria apenas duas pessoas conversando normalmente, mas, quando se estava perto de duas figuras que passavam uma sensação de puro terror... Quando as duas, percebendo seu olhar, olhavam para você e sorriam... Era simplesmente uma visão aterrorizante.

Depois de olharem rapidamente para um Zero completamente em choque, com as pernas prestes a ceder, a dupla se entreolhou — como se o ignorasse.

— Ei, ei, ei, Shai?

— Sim, senhora Mania?

— Tira essas coisas de mim! Ai, que ódio, viu! Elas estão me incomodando! Tá coçando! Tá desconfortável! Não consigo tirar porque... Como você pode ver, eu tô só o cotoco! Eu meio que fiquei... — Mania ergueu os dois braços, irritada, e bateu os pés no chão como uma criança fazendo birra. Então, balançou o que restava dos braços no ar, a hemorragia praticamente cessando. — Incapaz. Não, pera... A palavra era... Incapacitada.

— Exatamente, senhora Mania — Shai respondeu a ela de um jeito quase que robótico enquanto arrancava as facas, fazendo uma careta que, mesmo de máscara, dizia claramente estar achando desprezível o estado da garota.

Mesmo com os órgãos amassados, costelas quebradas, braço e mão decepados, uma perfuração profunda na cabeça... Ela continuava a falar e se movimentar, sorrindo. Enquanto Shai arrancava as facas de seu corpo, ela dava risada. Os olhos dourados brilhavam. Seria possível que a Entidade era tão completamente ensandecida ao ponto de nem sentir mais nada? Em qualquer golpe que havia desferido, todas as vezes, sua reação era um misto de surpresa com curiosidade, jamais demonstrando qualquer tipo de agonia ou sofrimento. Isso era um tanto assustador, principalmente por ela, a Entidade da Insanidade, continuar dando olhares na direção de Zero, as pupilas em formato de estrelas parecendo atravessá-lo, enquanto dizia coisas que não compreendia. 

Zero mordiscou os lábios com força. Era um momento horrível. Sua estratégia para fuga foi impedida pela chegada de um segundo elemento: O homem mascarado, que ajudava de forma delicada a garota praticamente morta. Ele, chamado por ela de Shai, estava intacto e parecia ter energia o suficiente para um combate. Mas Zero não. Ele precisava fugir imediatamente. Correr para fora do vilarejo e encontrar Ryota.

Porém, não o deixariam ir tão facilmente. Podia sentir a atenção de Shai sobre ele, esperando qualquer movimento para que pudesse agir. Mania também parecia atenta aos seus movimentos. Zero apertou o olhar e parou onde estava, começando a concentrar chi de vento abaixo dos pés. O suficiente para que, com um salto, fosse para o mais longe possível de qualquer um dos dois. 

— Oh, por favor meu jovem, espero sinceramente que não esteja pensando em avançar. Seria no mínimo imprudente, imagino. — Assim disse o mascarado, balançando a cabeça, para então estalar os dedos. Ele provavelmente tinha achado que Zero pretendia ir pra cima deles, ao invés de fugir. — Porém, isto também vale para a senhora.

— Eu não tava pensando em fazer nada não, ô! E tira logo isso da minha perna que não consigo andar... Vai mais rápido, seu idiota!

Outra faca foi jogada no chão, respingando sangue. Mania mexia com dificuldade os membros, porém, sem demonstrar nenhuma expressão de dor. 

— A senhora ficou irritada? Que falta de delicadeza.

— Irritada? Eu? Há, há! Muito engraçado! Eu estou só bastante chateada que a diversão acabou tão rápido. Mas, bem, como pôde ver, a provação foi um sucesso.

— Então estamos prontos para partir.

A Entidade da Insanidade fez uma careta.

— Já?! Por que você é sempre tão apressadinho, hein? — ela grunhiu alto, ainda mostrando uma atitude infantil. Fazendo bico, voltou seu único olho dourado à Zero, então ao mascarado que aguardava por sua decisão, agachado num só joelho. — Bom, fazer o quê? Vambora, né.

Zero prendeu a respiração quando a dupla voltou sua total atenção à ele. Para sua surpresa, no entanto, Mania apenas concordou e balançou os ombros. Então, ela simplesmente subiu nas costas de Shai, que ainda estava agachado e a ergueu, segurando-a pela parte de trás dos joelhos.

— Então, é, acho que é isso. A gente se vê! Bye, bye!— Acenou a garota com o braço decepado, sorrindo. — Foi emocionante...! Espero poder ver mais de você logo, logo!

O mascarado, em silêncio, inclinou a cabeça e também cumprimentou o rapaz completamente confuso. Em seguida, Shai, ainda segurando a garota, saltou para o vão escuro entre duas casas já completamente queimadas. Correndo cambaleante até lá, Zero apenas viu um lugar completamente escuro e sem sinal das duas pessoas que estavam ali até poucos instantes antes. Eles tinham desaparecido.

O rapaz deixou escapar um suspiro, ainda com o corpo tenso. Aparentemente, havia acabado. Mas ainda precisava fazer uma coisa. Precisava sair do vilarejo. Seu corpo se esforçava ao máximo para lidar com o pouco de enjoo e a hemorragia que lhe deixava tonto. Mais do que isso: Por perceber que a ameaça tinha ido embora, seu corpo inconscientemente queria desabar de exaustão.

As pálpebras começaram a pesar e ele cambaleou. Não conseguiu fazer os pés se manterem fixos no chão, então se preparou para a queda.

Mas, então, sentiu estar sendo abraçado por alguém. Uma pessoa mais baixa que ele, permitindo que seu queixo encostasse em seus ombros e sentisse o cheiro de seu suave perfume. Já se fazia um bom tempo desde que os dois tinham se abraçado daquela forma. Zero grunhiu alguma coisa, querendo dizer que estava tudo bem, que ele tinha conseguido, mas a escuridão preencheu completamente seu campo de visão.

— ... Zero. — sussurrou então Ryota, envolvendo o rapaz em seus braços. — Sim, obrigada. Tá tudo bem agora. Você... Foi incrível.

Apesar das palavras terem chegado baixinhas, a mensagem foi compreendida. Ele não conseguiu nem apreciar a felicidade que sentiu ao ouvir sua voz mais uma vez antes de desmaiar.

***

Ryota olhou para os arredores mais uma vez, ajeitando o peso que carregava nas costas. Zero estava desmaiado e com os primeiros socorros dados, faixas envolviam seu corpo desde a cintura até os ombros. Não era um grande peso a ser carregado, não para uma pessoa como Ryota, então ela conseguia levá-lo com certa facilidade. Na mão direita, a grande espada de Jaisen fazia uma trilha com a lâmina conforme era arrastada.

Ao seu lado, Sasaki fazia seu melhor para levar Jaisen também inconsciente. Ele era maior e mais pesado, mas, aos poucos, eles conseguiram sair de Aurora.

Ryota passou pela própria casa queimada e que já tinha sido destruída. Caminhou por restos de corpos e coisas queimadas que não podiam mais ser identificadas. A essa altura, as chamas já não se estendiam mais tanto quanto antes, mas ainda era difícil respirar o cheiro de carne queimada sem querer vomitar.

Mas Ryota decidiu seguir em frente. Naquele ponto, pelo menos, ela precisava erguer a cabeça e carregar aqueles que a ajudaram até então. Aqueles que conseguiram sobreviver, que ela queria segurar a mão e nunca mais soltar.

Passaram por pedaços do que sobrou da bicicleta amarela quando foi jogada de lado, no começo disso tudo. Por fim, finalmente estavam de volta à floresta. À distância, era possível ver as vias de fumaça que se espalhavam pelo céu noturno.

Em completo silêncio, a dupla seguiu andando para longe da labareda de fogo. Fugiram das brasas e das cinzas que o vilarejo se tornava. 

Um campo de rescaldo do incêndio.

O resto do que um dia foi um lugar colorido e feliz.

 



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