Volume 1 – Arco 1
Capítulo 10: A Mera Espectadora
— Você parece bem esta manhã. — disse uma voz que ia se aproximando por trás. Apesar disso, a garota continuou com uma das pernas flexionadas e a outra esticada, se alongando. — É a primeira vez que acordo antes de você. Dormiu bem?
— ... O suficiente, eu acho. Mas... Eu precisava dum pouquinho de sol antes.
Girou os pulsos, abriu e fechou os dedos e suspirou, sentindo a presença do rapaz parar ao seu lado. No espaço isolado onde a garota sempre se exercitava, ambos observaram o sol ainda no horizonte aquecer seus rostos. Uma brisa meio fria balançou seus cabelos.
— Antes do quê? — perguntou Zero à Ryota, que havia deixado a frase em aberto.
Ela se virou para ele.
— Antes de decidir o que vou fazer daqui pra frente.
Ao olhar imbuído em força que ela lhe deu, o rapaz engoliu em seco. Ryota parecia diferente, de alguma forma. E, aparentemente, não foi só uma boa noite de sono que causou essa mudança. O sorriso mostrava era pequeno e relaxado, seus olhos pareciam perdidos em algum lugar enquanto fitavam o horizonte. Porém, do dia anterior pra cá, as íris azuis não estavam nubladas em preocupação, mas decididas e faiscantes.
Como se as dúvidas tivessem cessado.
Piscando, Ryota se voltou ao amigo que a olhava em silêncio e deu um tapinha suave em seu ombro com a mão direita, tentando aliviar o clima.
— Vamos comer alguma coisa. O dia vai ser beeeem longo!
Então, ela se afastou a passos largos, numa marcha quase que alegre. Zero a acompanhou com o olhar, cético, antes de segui-la.
***
Um tempo mais tarde, após comerem alguma coisa para ganharem energia, Ryota, Zero e Sasaki retornaram à Aurora. A garota se entreteve com duas maçãs enquanto interagia normalmente com os outros dois. A tensão da noite passada pareceu ter se dissipado por enquanto, mas Zero ainda não gostava da presença de Sasaki e sempre se mantinha atento.
Parece... Que as coisas vão mudar a partir de hoje. Não, na verdade, já pareciam estar mudando há muito tempo.
Ryota sabia bem que não poderia forçar nada entre eles, e também não deveria se entregar completamente ao desejo de querer confiar no curandeiro. Já tinha sido complicado acreditar em Zero uma vez, quando estavam em uma situação de vida ou morte. E, se tratando de alguém que conheceu a cerca de um dia, precisava manter cautela. Embora isso não a obrigasse a ser grosseira com ele, quando este se mostrava sempre tão simpático e brincalhão.
Por mais que eu lutasse comigo mesma, querendo que tudo permanecesse da mesma forma pra sempre... Por mais que eu quisesse que todos pudessem viver juntos... Por mais que eu só quisesse viver o resto da minha vida ao lado deles...
Durante todo aquele período, Jaisen se manteve inconsciente. Após uma avaliação geral, Sasaki confirmou que ele não corria perigo de vida e acreditava que, por conta de seu corpo já estar curado, Jaisen acordaria quando desejar, e não deveria sofrer ataques de loucura ou espasmos. Ryota ficou muito aliviada em saber disso, mas era preciso tomar cuidado, pois ainda não tinham conhecimento de como as habilidades da Entidade funcionavam.
Por hora, ele permaneceria descansando em um local conhecido – para o caso de acordar e ter ciência de onde estava – e próximo ao vilarejo.
... É como dizem: “Querer não é poder”. Eu não posso fazer nada se as coisas começarem a mudar, além de me adaptar à essas mudanças, não é? Mas é tão, tão difícil quando tudo muda do dia pra noite... Eu não tive nem tempo de me acostumar... Não, de aceitar isso. Quero dizer, será que um dia vou poder aceitar? Será que eu consigo? Será que eu sequer deveria?
O trio se dirigiu à Aurora assim que o dia clareou. Ryota estava ansiosa e preocupada com o que poderiam encontrar lá. Ao longe, era possível ver resquícios de fumaça das chamas que preencheram o lugar durante a noite e tomaram tudo.
Eu não quero voltar. Eu não quero lembrar. Eu não quero ver o que sobrou. Eu poderia só ficar com as memórias dos dias felizes, já era o suficiente. Eu não quero, não quero, não, não, não...
Conforme subiam o morro em silêncio, seus olhos eram preenchidos pela visão da completa destruição. As casas de madeira foram completamente queimadas. Poucas construções ainda se mantinham em pé ou eram reconhecíveis, tendo uma quantidade absurda de madeira e pó espalhados pela estrada. Foi um milagre que o incêndio não tivesse se estendido até a floresta.
... Mas, se for desse jeito, eu só vou estar fugindo de novo. E qual o problema? Eu já não estive fugindo de tudo desde o começo? E daí se eu fugir de novo?
Mas, se eu fizer isso, não vou estar envergonhando quem deixei pra trás? Quem eu deixei morrer? Quem ficou pra me salvar?
Havia algo diferente carbonizado logo na entrada. Estava completamente torto e destruído, com partes caindo e um pedaço de borracha derretido no chão. A bicicleta velha de Ryota estava acabada e inutilizável.
... Ah, pensar é um saco. Viver é um saco. Aceitar é um saco. Fingir é um saco. Eu queria só ter morrido junto com eles.
O chão de terra foi manchado em vermelho escuro. Era sangue seco. Haviam corpos carbonizados e irreconhecíveis espalhados no chão. O fogo alcançou todas as vítimas das habilidades da Insanidade, deixando-as pretas como carvão. Se analisados de perto, era possível ver resquícios do que foram expressões de dor e sofrimento quando morreram.
Apesar de desejar desesperadamente virar o rosto, Ryota não desviou o olhar. Seguiu de cabeça erguida, apesar de não necessariamente tão mais confiante quanto antes, acompanhada dos outros dois em completo silêncio. Os olhos azuis, que antes pareciam ter ganhado força pra enfrentar a realidade, aos poucos perderam a luz conforme acompanhavam o resultado do ataque. Ryota sentiu a mão de alguém – Zero – apertar seu ombro quando chegaram a um corpo feminino com braço esticado e torso arrancado. A dupla, que reconheceu Nessa, após um momento para se recuperar do choque, se ajoelhou e fechou os olhos, juntando as mãos numa oração. Fizeram um minuto de silêncio em respeito a ela.
Por que eu ainda estou viva? Por que o Zero me salvou? Qual o sentido disso tudo? Se tivéssemos todos morrido juntos, ontem, não teria sido melhor? Bem mais fácil?
O grupo caminhou por todo o pequeno vilarejo e confirmaram que não havia nenhum sobrevivente além deles. Tudo fora tomado e desmanchado pelo fogo, restando somente um campo com destroços de cinzas e restos de brasas.
— ...Ah. — grunhiu a garota de repente, parando em frente a uma casa. Então, caminhou lentamente até ela.
— Essa é...
Zero assentiu.
— A casa dela.
Ryota analisou a madeira rachada que havia caído. O telhado desabou após ter uma parte destruída, assim como as demais paredes queimadas. Com cuidado, colocando um pé de cada vez, entrou nos destroços. Sua cama estava em um estado desastroso, erguendo um cheiro péssimo. O vidro da velha penteadeira desfez-se em mil pedaços, com mais da metade dele completamente derretido. O banheiro foi soterrado, assim como o canto que era sua pequena cozinha e parte da lavanderia.
Ah. Ah. Ah? Aaaah? Aaaaaah?!
Para a surpresa da dupla que via de longe, a garota começou a tirar as tábuas de madeira de cima da penteadeira destruída, às pressas. Como que desesperada pra tirar algo debaixo delas. Sem dificuldades, levantou os pedaços enormes e lançou-os longe, visando a última gaveta. Era o lugar menos afetado pelas chamas, mas estava apertado demais para que pudesse puxar.
Por favor. Por favor. Por favor. Por favor...
Com um pouco de força, conseguiu tirar a gaveta e procurou pelo compartimento secreto, onde estaria o envelope amarelo. Esperava encontrar pedaços queimados ou rasgados, talvez até mesmo estivesse completamente queimado e sobrado somente pó.
... Ah.
Não havia nada ali.
A garota resfolegou, sem compreender o que via. Sem ar nenhum nos pulmões. Para sua surpresa, a pequena abertura logo abaixo da gaveta estava praticamente intacta, mas vazia. Não sobrara nada, nem um sinal de que houvera algo guardado ali. Era como se nunca tivesse existido.
Zero se aproximou devagar dela e, ainda de pé, perguntou:
— O que aconteceu?
— ... Sumiu.
— Hã? O quê?
— ... Os meus dez anos de trabalho... Meu dinheiro... Sumiu. — Sua visão ficou turva por um momento. Seus ouvidos zumbiram. Não sabia se estava respirando. Sua voz saía, mas não saía. — Tudo...
— Espera um pouco. O dinheiro que você guardou sumiu?! Tem certeza de que não...
Passos se aproximaram.
— Você foi roubada. — disse Sasaki com naturalidade. — Eles devem ter saqueado as casas antes.
— Mas como?! Estava tão bem guardado... Como...?
Ela apertou a maçaneta e seus dedos quase a quebraram pela força colocada.
Todo o seu dinheiro, guardado ao longo de tantos anos, havia sumido da noite pro dia. Ela esperava que pudesse salvar ao menos um pouco, mas nem isso lhe fora permitido. Sua casa fora queimada. Sua renda levada. Sua bicicleta destruída. Pessoas que eram como sua família foram mortas. O que mais ela tinha a perder?
Então, como um clique, lembrou-se de algo. Passou às pressas pelos dois e, meio desengonçada, procurou por algo no chão. Ela apertou os olhos para segurar as lágrimas ao ver a foto coberta de pó, com um pequeno rasgo, mas bem.
Pelo menos... Pelo menos isso eu não perdi.
A imagem ficou meio suja, mas o quadro foi quebrado na queda da cabeceira. Ela mostrava uma garotinha de cabelos longos e negros, com grandes olhos azuis, sorridente. Estava sendo abraçada por trás por uma mulher de cabelos curtos e loiros escuros, que também sorria, mas meio tímida. O sol batia forte, como sempre eram os dias de verão em Aurora.
Ryota abriu um sorriso largo, mas torto, e guardou a foto consigo.
— Ryota?
A garota se colocou de pé, mantendo o sorriso amarelo para Zero e Sasaki.
— Vamos. Temos trabalho a fazer.
***
Ela passou a parte de cima da mão na testa e limpou o suor, bagunçando a franja. A luz do sol lhe fez cerrar os olhos enquanto escutava Zero dar uma última batida com as mãos na terra acumulada ao lado.
— Acho que é o último.
— Obrigada.
Não muito longe deles, Sasaki surgiu a passos lentos carregando nos braços flores de várias cores e formas diferentes. Ryota se aproximou, então escolheu algumas antes de voltar para o túmulo recém-fechado, depositar algumas brancas sobre a terra e fechar os olhos.
Ao seu lado, Zero e Sasaki permaneceram de pé e a viram ficar em silêncio por alguns instantes, antes de passar para o próximo monte de terra e repetir o processo.
Cerca de algumas horas atrás, ela havia proposto aos dois que fizessem túmulos para os antigos moradores no próprio cemitério do vilarejo. A dupla logo concordou com a ideia, e ajudaram em todo o processo. O trio cavou mais de cem covas, e Ryota buscou enterrar ao menos um pertence pessoal que sobreviveu ao incêndio, em homenagem a cada uma das vítimas. Aos que não pôde recuperar qualquer objeto, apenas depositou uma flor branca dentro do túmulo. Então, cravou cruzes feitas de galhos improvisados na terra seca.
Em seguida, Ryota começou a distribuir as flores, para então ficar em silêncio e agradecer mentalmente a todos que um dia estiveram com ela. Todos os senhores e senhoras que acordaram cedo para trabalharem na roça; todas as mulheres e jovens que cuidavam dos filhos e irmãos, além de lidarem com as hortas e diversos outros trabalhos manuais; a todas as crianças que se divertiram com ela nas manhãs… A garota orou por todos com uma expressão séria.
Não se permitiu chorar, muito menos fazer uma cara triste. Queria que soubessem que foram muito importantes pra ela e que mereciam, no mínimo, um funeral e seu mais sincero agradecimento. Já tinha ouvido dos mais velhos que eles não desejariam que chorassem sobre seu túmulo, mas que se lembrassem deles, pelo menos um pouco. E, em respeito a esse desejo, assim Ryota fez, e conversou mentalmente com cada um dos cento e sete antigos moradores de Aurora.
***
Estava ajoelhada num gramado límpido e dançante. As flores balançavam com a brisa, assim como seus cabelos negros. A grande árvore derramava folhas sobre sua cabeça – uma delas, amarela, pousou em seus cabelos, antes de cair ao seu lado. Ficava de frente para o vilarejo, e era a mais alta, antiga e bela de todas - a Grande Árvore Aurora. Localizada em seu cantinho especial, na colina onde naquela mesma manhã tinha tirado um cochilo e almoçado, era um local onde podia ver todos andando pra lá e pra cá, conversando com grandes sorrisos nos rostos.
Ao piscar, a visão de um momento que existiu era desfocada e atualizada para uma versão escura, cinzenta e triste. Para o que tinha sobrado do vilarejo.
— Eu tinha pedido um tempo, não foi?
Ao escutar passos vindos de trás, ela assim disse erguendo a voz com um tom quase ameaçador. Zero, entretanto, resfolegou, mas continuou a se aproximar dela. Ryota nada disse quando ele se sentou ao seu lado. O oceano reluzia com a luz do sol, e via-se uma linha preta contornar o tom azul no horizonte. Era fina, mas perceptível: O Mar Sombrio.
— Desculpa. — disse ele, sincero.
Após um instante, ela respondeu, a voz trêmula:
— Por que você sempre tem que ser tão indelicado? — e riu com o nariz.
— É mais forte do que eu... Não suporto te ver assim, sozinha.
Ela sabia que o garoto a olhava, mas não conseguiu encará-lo de volta. Sabia que, se o fizesse, não resistiria muito mais.
— Não precisa fazer isso.
— Preciso, sim. Como eu ficaria depois de ignorar essa sua cara de choro?
Ryota parou, meio chocada, então disfarçou a expressão com uma risada enquanto dava uma cotovelada brincalhona:
— Cara de choro? Até parece, viu...
Soltou uma risada que ficava cada vez mais baixa, até sumir.
— Como se eu pudesse fazer uma coisa dessas. Tá vendo? Eu não tô chorando. Eu não tô. Eu não... Uh.
Ela apontou para si mesma, rindo sozinha, tocou com o dedo indicador a bochecha e então soltou um grunhido. Uma gota quente tinha escorrido e molhado sua mão. Então outra, e outra que passou pelo rosto todo até pingar de seu queixo.
— ... Ah. Isso é... Ah, há, há. Não é o que você tá pensando. Eu só tava... Quero dizer...
Os lábios sorridentes tremeram, prestes a ceder.
Ryota piscava desesperadamente para parar as lágrimas, limpando o rosto de forma quase agressiva.
Já chega. Já chega, chega, chega, chega...! Eu não quero... Eu não quero mais...!
— Tá tudo bem. Vem cá.
Em um piscar de olhos, ela se viu envolvida pelos braços do rapaz. A testa foi encostada contra um dos ombros de forma que eles não pudessem ver o rosto um do outro. Era uma forma indireta de Zero respeitar os sentimentos que ela tinha. Aos seus dois lados conflitantes.
Quando sentiu os braços quentes a envolverem com cuidado, como se tocassem algo delicado a ponto de quebrar; quando escutou o batimento cardíaco lento, porém calmante do coração dele; quando escutou suas palavras...
... Me desculpa, mãe. Eu... Não consigo mais... Me segurar...
... As defesas caíram por terra.
Percebendo que isso tinha acontecido, sentindo que o corpo dela tinha começado a tremer um pouco, Zero a abraçou um pouco mais forte. Uma das mãos foi aos cabelos negros dela e o afagaram.
— Me desculpa... Me desculpa por tudo, Zero...! Eu... Só não queria... Perder mais ninguém... Eu não...! Não consegui fazer nada... Pra te ajudar... Nem antes, nem ontem... Eu nunca...!
— Shhh. Tá tudo bem — sussurrou ele em seu ouvido, com suavidade. Ryota, porém, continuou a falar com a voz rouca, preenchida em culpa e dor.
— ... Nada… Nada… — Os flashes do momento que Zero caiu nos braços dela, inconsciente e ferido, brotaram de vez em sua mente. — Me perdoa…! Por favor… Eu…!
— Tá tudo bem.
Com a testa encostada no ombro dele, as lágrimas correntes encharcaram sua camisa e tornaram sua voz abafada, quase inaudível.
— ... Como sempre… Sempre… Sempre...
Suas unhas cravaram nas costas dele.
— Nem quando… Precisaram de mim…! Quando ela... Pediu a minha ajuda...! Será que o Jaisen me odeia? Por que eu não... Fiz nada pra... Salvar ninguém...! Hic...
— Tá tudo bem.
Os resmungos arfados eram contidos pela sua própria mão, que lhe tapava a boca. Suportou os soluços. Engoliu os gritos. Enterrou os sentimentos ardentes. Mas não pôde lidar com as lágrimas… Não quando era envolvida num calor aconchegante e abraçada com tanto cuidado. Não quando os sussurros dele pareciam afagar seu coração que se despedaçava.
Em meio aos lamentos, Zero não se sentiu capaz de corresponder aos sentimentos que emergiram. Sabia que ela estava se segurando. Sabia que não queria falar. Que, justamente por nunca ter desabafado antes, as palavras que saíam não estavam organizadas. Ela não queria preocupá-lo… Mas, ainda assim, ele ficou feliz. O sorriso melancólico que o rapaz esboçou era um tanto lisonjeado, mas culpado.
Com medo de dizer algo que pudesse ferir ainda mais seu coração, Zero decidiu apenas aceitar, em silêncio. Tudo. Da mesma forma que ela fez por ele uma vez.
Durante os minutos que se passaram, Ryota continuou abraçada com o rapaz, até se acalmar. As lágrimas secaram em seu rosto. Com o queixo encostado em seu ombro e o olhar fitando algo além dos ensolarados raios dourados, ela apertou os olhos para a luz.
— … Mania.
A pronúncia daquele nome soava repugnante e lhe causava arrepios. O tom amarelado, quase laranja, da luz que tocava as cinzas e sombras no vilarejo lembravam as íris daquela menina. O assobio do vento lhe remetia ao riso insano dela, que sorria larga e nostalgicamente.
— É claro… Mania.
Seus resmungos eram fracos. Ryota nem sabia se saíam como voz ou não. Mas, mesmo assim, ela sentiu que precisava falar. Mesmo que fosse para si mesma. Não, precisava e deveria ser para si mesma. A pessoa que poderia ter evitado tudo aquilo. No passado, e agora.
Foi a segunda vez que presenciou o inferno.
Porque não fez nada, e apenas assistiu.
Mas agora era diferente. Sim. Havia algo a ser feito, e somente ela poderia fazê-lo. Existia, agora, uma responsável à solta. E que deveria ser encontrada. Detida. Espancada. Responsabilizada. Punida.
Tudo parecia claro agora. Ainda tinha algo que Ryota, a até então mera espectadora, podia fazer com as próprias mãos.
— Mania. — O nome repetiu-se em seus lábios. O som da voz começou a ganhar força. Os olhos vidrados em luz amarela faiscaram conforme os traços da Entidade eram revividos na sua mente. Seu corpo efervesceu, e ela suspirou longamente. — Eu não vou deixar que tomem nada de mim… De novo.
Ela firmou o abraço e ergueu levemente o queixo. Sua mente pareceu se desligar num momento, e Ryota não pôde controlar as palavras que saíram da sua boca a seguir, num murmúrio feroz:
— … Porque eu vou te matar, maldita.
Ao chiado do vento que levou embora as folhas coloridas como num tornado, Zero apenas fechou os olhos.