Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 11: Meta da Mentira

A garota andava lentamente pela estrada de terra seca e manchada em vermelho. Foi preenchida pelo completo silêncio. O único barulho que lhe chegava aos ouvidos eram seus lentos e arrastados passos. As batidas de seu coração pareciam estremecer seus ouvidos.

Sozinha, Ryota deu uma última volta pelo vilarejo e gravou tudo em sua mente. As casas queimadas, que antes eram coloridas. As flores e gramado, reduzidos a pó. O campo completamente vazio e solitário, antes preenchido por risadas e o som de chutes. As vozes que lhe cumprimentavam de manhã e à noite. Os gritos e gargalhadas que reverberavam pelo Tempo da Carne. E, é claro, a Grande Árvore Aurora, localizada no morro mais próximo dali e que presenteava os moradores com chuvas de folhas e flores.

Seus olhos ainda estavam marcados das lágrimas que haviam escorrido por seu rosto, mas seu peito estava leve. Não tinha posto tudo em palavras, e nem conseguiu agradecer direito a Zero por seu apoio. Mas ele não pareceu se importar. Embora tivesse sido contra sua vontade, e dar certa vergonha lembrar do jeito que chorou em seu ombro, Ryota ficou feliz pela sua presença. 

Sabia que jamais poderia retribuir aquilo que fazia por ela, e que sempre fizera, durante tanto tempo.

As íris azuis brilhavam em determinação. A promessa havia sido feita, e não poderia voltar atrás. Precisava fazer isso. Se não fosse capaz de cumprir uma promessa feita a si mesma, nada teria mais sentido. 

Ainda tinha dois objetivos em mente, embora um dependesse do outro para acontecer. Primeiro, mataria Mania com as próprias mãos. E só então, poderia pensar em buscar um novo lugar pra chamar de lar.

Nessa, mãe, pessoal... Muito, muito obrigada.

Ryota passou os olhos pelo cemitério. Eles não estavam mais lá para desejá-la boa sorte, mas sabia que os carregaria pra sempre em suas memórias e coração. Um sorriso fraco e trêmulo brotou em seu rosto.

— Eu amo vocês. — Ela inspirou fundo, com um bolo na garganta. — Muito obrigada, mesmo.

Realizando o gesto de respeito, a garota pôs a mão no peito esquerdo, fechou os olhos e inclinou levemente o corpo. E assim permaneceu por alguns segundos antes de se endireitar.

Estava confiante e revigorada. Seu coração queimava com a decisão. Movida por esse calor, deu as costas à sua cidade natal e rumou para fora de Aurora. 

***

Zero levou uma das mãos para perto dos olhos e os cobriu da luz do sol que havia surgido por trás da nuvem. Seus pés balançavam no ar enquanto olhava para o horizonte, além do oceano azul. Estava sentado num pico alto, acima das águas. Apesar da vista deslumbrante e temperatura altíssima que o fazia suar terrivelmente por baixo da camiseta preta, seus pensamentos estavam longe.

As palavras que a garota de cabelos negros dissera com voz rouca e decidida soavam por seus ouvidos. Eram murmúrios de rancor e culpa transformados em uma decisão - uma decisão difícil dele aceitar. Ao escutá-la, seu estômago se remexeu. Zero sabia que ela falara sério. E, pela forma tranquila e “normal” que Ryota ficou após a sessão de lágrimas, teve certeza de que algo perigoso estava prestes a acontecer.

Se ele tivesse dito algo naquele momento… Ela teria mudado de ideia?

— Aaaah. Aí está você. — disse assim uma voz que cantarolava, mas fez Zero torcer o nariz. Ele nem se virou quando Sasaki parou ao seu lado e continuou, ainda sorrindo: — Como foi?

— O quê?

— Seu precioso momento de consolo.

O rapaz juntou as sobrancelhas, irritado com o tom de voz do outro. Parecia estar zombando do ocorrido, mesmo que não houvesse dito nada a ele. Não sabia dizer se ele era um bom observador ou se presenciara a situação.

Esperava que fosse o primeiro caso. Pois, se não fosse, sabia que não conseguiria mais se segurar.

Então, dando apenas um olhar lateral, respondeu em tom indiferente:

— Não sei do que está falando. Fomos apenas nos despedir do nosso local de encontro, só isso.

Era verdade. Tanto ele quanto a garota haviam ido até lá para garantir seu último momento na colina gramada que sempre ficavam para passar o tempo. O lugar onde comiam, conversavam, liam e se divertiam. Era relaxante e tranquilo. Mas nunca mais poderiam voltar àqueles tempos, não depois do ocorrido em Aurora.

Além disso, Zero não havia consolado Ryota em nenhum momento. Só havia escutado o que ela precisava dizer, e era tudo.

Mas Sasaki não pareceu satisfeito com a resposta e balançou os ombros, suspirando. Não parecia que insistiria no assunto, mas, antes que pudesse dizer algo em seguida, o rapaz disparou:

— Você realmente não é nosso inimigo, não é?

Os olhos negros fitaram os prateados. Zero não conseguia deixar de suspeitar de Sasaki, mesmo depois de tudo o que havia feito e do pedido de Ryota. No fim, o homem parado ali era uma incógnita que não fazia sentido. Uma pessoa deslocada e que não deveria estar ali.

Sasaki riu com o nariz.

— Não, não sou. Mas você não consegue confiar em mim, não importa o que eu faça ou diga, né...?

— É claro. — Zero cerrou os olhos. — Você é só uma pessoa conveniente numa situação conveniente.

— Coisas assim acontecem o tempo todo, não acha?

— Não quando um curandeiro aparece assim, sem mais nem menos. Não se faça de idiota. Pessoas tão habilidosas quanto você são raras, hoje em dia.

Ele riu em resposta, inclinando a cabeça. Parecia um pouco emocionado e sem graça. Então, num gesto suave e com tom brincalhão, Sasaki abanou a mão.

— Aaaah, para. Você só está me elogiando.

— É o primeiro selador cara de pau que conheço.

Então, seus olhos se encontraram novamente. Sasaki não mudara de expressão, mas seu silêncio apenas comprovava aquilo que Zero desconfiava. O rapaz se colocou de pé.

— Como sabe disso? Você nem esteve presente quando usei meu Reiki.

— A Ryota pode ser mal informada por conta de onde viveu, mas eu não. — Ele deu um passo à frente, ainda o encarando. — Curandeiros comuns só podem usar o elemento de água Shui, e ainda assim ele tem suas restrições. Não é qualquer um que poderia lidar com um ferimento daqueles sozinho.

Jaisen havia tido metade do torso esmagado e sofrera de uma hemorragia pesada. Além disso, ainda tinha os efeitos das habilidades desconhecidas da Entidade da Insanidade, coisa que deveria ter certo impacto no estado mental do homem. Entretanto, Sasaki parecia ter lidado com tudo com até certa facilidade, considerando o tempo que Ryota havia fugido do vilarejo e seu retorno. 

—... Isso tudo só seria possível com alguém capaz de cuidar de várias coisas ao mesmo tempo.

— Bingo! Você acertou!

Sasaki riu da descoberta de Zero, que continuava com o rosto sério e olhar afiado. Então, pela primeira vez, a expressão do outro relaxou.

—... Estou surpreso. São poucas pessoas que sabem tanto a respeito dos seladores. Você deve ter estudado muito a respeito... Ou conheceu alguém assim.

Sasaki colocou as mãos na cintura, e, como se admitisse a derrota, suspirou alto. 

— De fato, eu sou um curandeiro e selador. Legal, não?

— Por que não nos disse antes?

— Isso mudaria alguma coisa?

— ... Mais pessoas poderiam ter sido salvas se soubéssemos disso.

Assim murmurou Zero, de forma quase inaudível e baixando os olhos. Ele mesmo não acreditava muito no que havia dito, mas poderia ter tido uma possibilidade. Pessoas que, assim como Jaisen, haviam sido deixados pra morrer e sofreriam de um colapso mental. Perdas poderiam ter sido evitadas se ele tivesse dito aquilo antes.

Zero mordeu o lábio, sendo observado por Sasaki. Este, que voltou seu olhar para o horizonte.

— Curioso dizer isso quando você nem ficou triste pela morte deles.

O rapaz arregalou os olhos e ergueu o tom de voz, incrédulo.

— ...O quê? Não muda de assunto!

— Eu quem deveria pedir a você para não mudar de assunto... Caro Zero Furoto.

Zero engasgou, surpreso pelo homem à sua frente dizer seu sobrenome. Era estranho. Faziam-se anos desde a última vez que o ouvira. 

— Muito bem, já que se faz de sonso, vamos direto ao ponto. — Sasaki cruzou os braços, dando um sorriso suave e provocador. — Por que, ao contrário dela, você não chorou ou ficou triste por eles? É possível que seja alguém muito bom em esconder os próprios sentimentos, mas eu duvido muito que alguém capaz de sorrir, ficar com vergonha e se mostrar tão expressivo ao lado de alguém possa guardar tantos sentimentos pra si. Não por tanto tempo. — O homem apertou o olhar, parecendo levemente irritado. — Você não parece ter chorado e não ficou nem um pouco preocupado com o que teria acontecido aos moradores se eu estivesse lá. Se for pra ficar tentando fingir e esconder as coisas de mim, é melhor nem tentar.

Sasaki estava irritado. Seu rosto foi contorcido numa expressão de raiva. Sua voz soava diferente. Era ríspida e grosseira. As palavras saiam como lâminas e pareciam querer abrir o rapaz com elas. Expôs aquilo que escondia, ou que tentava esconder. 

Seus olhos negros, profundos e incapazes de serem lidos, fizeram o rapaz quase recuar um passo. Era essa a verdadeira pessoa chamada Sasaki? Ou apenas uma outra face das que mostrara a eles até então? 

Mas o curandeiro não estava errado, e nem demonstrava estar em dúvidas daquilo que falara. Zero engoliu em seco, sentindo uma gota de suor escorrer pelo rosto. No fim, ele não era o único que tentava ocultar um lado seu. Ou melhor, uma parte que não queria que mais ninguém visse.

Sem chances para refutar, Zero apenas fechou os olhos e se recompôs.

— … Você não está totalmente errado. — Então, com uma veia saltando da testa, encarou Sasaki, retribuindo o olhar. — Mas não é tão simples quanto você diz, e não é da sua conta.

Não queria colocar em palavras aquilo que havia mantido consigo durante todos aqueles anos, e não era necessário perder tempo com isso. Sasaki não precisava saber da verdade, mas um mentiroso não seria convencido por outro dessa forma. 

Ele piscou uma vez e bufou. Então, buscando se acalmar, desfez a careta de irritação e disse:

— Não é como se eu não me importasse. Eles foram minha segunda família... Talvez, assim como Ryota, a minha verdadeira. Mesmo não sendo sangue do meu sangue. — Zero sacudiu a cabeça, não querendo perder o foco da conversa. Continuou, baixando o tom de voz: — … Mas nunca foram minha prioridade.

— Isso é realmente egoísta da sua parte.

— Talvez, mas isso não vale pra nós dois? — Um mentira para salvar a pessoa que lhe era mais importante, o outro, para priorizar algum objetivo. Este último, que era desconhecido para Zero, pois mesmo depois das afirmações do curandeiro, não conseguia confiar nele.

Sasaki, ficando sem palavras por um momento, suspirou e deu um passo para trás. 

— Realmente. 

— … Qualquer coisa por ela.

Um murmúrio levado pelo vento com semblante melancólico. Sasaki, tendo escutado só uma parte da frase, o observou quando uma brisa forte balançou suas roupas e cabelos. O sol surgiu por trás de uma nuvem via pequenos feixes. 

Zero apertou os olhos. Sua mente reviveu os sorrisos daquelas pessoas que sempre o recebiam calorosamente.

— Mas não é como se eu não gostasse deles, também.

— Parece bem complicado pra um simples amor platônico.

— Não é platônico! Não, espera, isso nem é amor!

— Ai, tá, tá, chama do que quiser, ô cachorrinho. — Sasaki coçou o ouvido depois dele gritar, buscando se defender, mas o rosado nas bochechas o entregavam. À resposta, Zero deu-lhe um chute no calcanhar, ao que ele riu com o nariz, ciciando: — No fim, somos realmente parecidos.

Um pouco surpreso pelo sorriso suave do curandeiro, que se desmanchou logo em seguida, Zero fechou os olhos antes de abri-los de novo.

— Não importa o que você acha de mim, ou o que acha saber sobre mim. — Zero deu um passo em sua direção — Mas, se tentar falar qualquer coisa dela, vai se arrepender.

— Ah, é?

— É. 

Sasaki se divertiu com a expressão séria dele. Mesmo naqueles frios e afiados olhos prateados, haviam sentimentos ocultos. Seja a paixão que moldava seu olhar, ou a pura ameaça que trazia um brilho afiado na íris. Era instável, e perigoso. Sasaki sabia que Zero avançaria sem pensar duas vezes para matá-lo, caso a ridicularizasse.

Algo que ele nunca poderia fazer, por mais que quisesse. Não era questão de moral, mas de pura compreensão. Ele, sem dúvidas, viria a se arrepender do ato depois.

Zero não parecia concentrar chi ou preparar um golpe surpresa, mas havia uma tensão que não podia ser ignorada. Era quase como se o ar e chão tremessem, chocando-se, prestes a ruir por completo a qualquer instante. 

— Eeei!

Dissipando completamente o clima, uma voz aguda e familiar soou ao longe. Ambos se viraram a tempo de verem Ryota caminhar a passos largos na direção deles, acenando, como se quisesse que fossem até ela. Sasaki sorriu, chamando a atenção de Zero, que ainda parecia emburrado.

— E lá está ela. Bom, acho que estamos quites no momento, então o que acha de uma tréguazinha?

— Nem pensar.

— Ceeerto, então. 

O curandeiro, levemente decepcionado pela proposta de paz ter sido recusada tão rapidamente, viu o rapaz caminhar na direção da garota. Então, parou, e ainda de costas, disse:

— Vamos ver como você se comporta até lá e quem sabe eu pense no assunto.

Sasaki, com a boca um pouco aberta, sorriu genuinamente. E, em seguida, correu atrás do rapaz para lhe dar um tapa na nuca.



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