Volume 1
Capítulo 80: Renegados (4)
Tudo que via em sua frente era uma silhueta borrada, borrada e distorcida como tudo o que via. Ele a segurou pelas pernas, pelas pernas que não respondiam aos seus comandos. Levantou a cabeça, seus olhos captaram outro borrão. Alguém a puxava pelos braços. Eles estavam parados, segurando seu corpo manchado em vermelho. A cor do sangue se estendia pelo seu braço, barriga e pernas, mas apenas no flanco direito. Mais silhuetas desconhecidas se aproximaram. Eles a encararam, pareciam satisfeitos, extasiados como se capturassem algum animal valioso ou nobre podre de rico durante uma batalha vencida.
Lampejos vieram à mente. Estava na biblioteca, reconhecia as duas escadas curvas que levavam ao primeiro, segundo e terceiro andar, por algum motivo a da direita fora bloqueada pelo que parecia ser uma estante, que tombara contra o corrimão. No corredor lá em cima, uma bizarra luta era disputada.
Mas porque não usam conjuração? São leigos por acaso?
Um deles fugiu e disparou para a escada, até tombar contra a estante.
Que idiota.
A biblioteca se mexeu em tremores de cima para baixo e de um lado para outro. Até que ela percebeu: não era a biblioteca que se mexia, estava sendo transportada. Então encarou os borrões que a seguravam pelas pernas.
Onde estão me levando?
Tentou sacudir as pernas com toda força ganha nos últimos minutos, elas responderam em espasmos violentos, forte o bastante para fazê-la cair de bunda no chão. A dor a fez contrair todos os músculos possíveis em agonia. Os braços permaneceram esticados. Já podia sentir a ardência. Tentou sacudir em protesto, mas foi sobrepujada pela ajuda dos recém-chegados. Braços envolveram suas coxas, limitando todo o movimento da região. Sentiu o terror se apoderar da sanidade. Visualizou todo tipo de abuso que poderia sofrer: tortura, estupro, humilhação, tudo era possível numa situação dessas. Mal conseguia ver ou sentir.
Lá em cima um rapaz apanhava, ele tentou se defender do agressor que o alcançou, mas foi jogado contra a estante e socos respingavam o pouco de sangue que podia enxergar.
As figuras se agitaram, pararam mais uma vez. Largaram-na do nada. Ela sentiu a bunda encostar-se ao chão frio da entrada da biblioteca, mas dessa vez, a nuca acompanhou em uma batida dolorosa. Algo caiu em cima de si, logo viu o corpo sem vida do rapaz que a agarrou pelas coxas.
Todos eles descansaram no chão gélido da Biblioteca Universitária.
Torceu para tudo ter acabado. Apesar de recuperar parte dos sentidos, a dor permanecia agonizante. Tentou se mexer, mas nada além de espasmos descompassados. Deitada no chão encarou o destoante teto de concreto cinzento do edifício.
Duas silhuetas se aproximaram, e o terror voltou para lhe atormentar.
Reconheceu aquele cabelo branco e bigode pontudo, mas ele já não era mais professor, ou será que ele voltou e ela na verdade perdeu a memória? A outra figura parecia mais jovem, muito mais jovem. Aquele cabelo castanho e ondulado era familiar.
O garoto se espantou com algo e saiu em disparada, sabe se lá para onde.
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Pela primeira vez Ronan invejou a capacidade da amiga manipular o sangue. Seu rosto inchou com as pancadas recebidas. Levantou os braços para se defender, mas naquele ponto já doía tanto quanto as pancadas em sua cara. O oponente ofegava, a força dos golpes foi reduzindo, mas de maneira alguma a situação melhorava para o seu lado.
A vontade de chorar e pedir para que ele parasse o envergonhava, mas faltava pouco para se acovardar, não suportava mais a dor. Apanhara como um cachorro, perguntou para si mesmo, já não apanhei que chega? Mas nunca era o caso. Tentou conjurar, mas se concentrar naquela situação ou manipular de forma intuitiva era impossível para um iniciante como ele. As pernas tremeram e falharam.
O próximo soco o levou ao chão mais uma vez.
Ronan entregou-se ao destino. Não sentia mais o corpo, dor, orgulho, vergonha, nem pena de si mesmo. Fechou os olhos. Entre as pancadas reconheceu o baque típico de passos, ouviu gemidos, depois mais passos. Jurou ouvir o sibilar do vento, mas não sentiu nada. Abriu os olhos, seu carrasco desapareceu como num passe de mágica.
Mas “magia” em sua concepção era um mito, pois existia apenas a manipulação, também chamada de conjuração.
Em meio a essa filosofia, Ronan desmaiou.
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Testemunhar alguém ser empurrado pela força do vento foi algo agravável para o ex-professor Ronaldo. Ainda mais quando esse alguém caiu de uma altura de quatro metros para pousar em cima de centenas de estilhaços de vidro.
A poucos passos de onde o ex-professor estava, sua antiga aluna de cabelo castanho até o ombro tomou nos braços outra de suas antigas alunas, uma garota com o cabelo loiro, camisa manga longa e colete por cima, mas desmaiada e ferida na porção direita do corpo.
Com as bochechas roçando o cabelo da melhor amiga, Anna Ambrósio perguntou em meio às lágrimas:
— Ela vai ficar bem?
Ronaldo caminhou até ela.
— Vai sim. Eu já verifiquei a situação da sua amiga. A propósito, me desculpe por ser tão rabugento com vocês.
— Anna? — disse a garota em seus braços com a pouca força que restava
Ela ajudou Nathalia a se sentar e segurou nas mãos dela.
— Vim o mais rápido que pude Nat. Encontrei o Dario e o professor, ou melhor, o ex-professor no caminho. — Ela o encarou. — Mas o que você faz aqui?
Mas uma voz ecoou do segundo andar.
— Professor. Eu acho que ele vai ficar bem, só perdeu a consciência por um tempo.
— Ótimo. Bom trabalho. Eu logo venho ai.
Com os olhos umedecidos, Anna voltou-se para Nathalia.
— Você está um caco amiga. Olha o estado da sua roupa, toda suja. Você precisa se cuidar melhor daqui pra frente.
— Caco? — ela perguntou com o cenho franzido e o olhar perdido. Até adormecer nos braços de Anna.
Ronaldo era velho e gordo demais para se espremer no vão entre a estante caída sobre a escada da direita, e de forma alguma escalaria o móvel como seu ex-aluno, então optou por dar a volta, subiu a escadaria da esquerda, cruzou as estantes do meio, alcançou seus antigos alunos, agachou e analisou com pesar nos olhos seu aprendiz inconsciente.
— A maioria dos ferimentos é superficial, mas não estou gostando da aparência dessa mão. — Apontou para onde o garoto segurou os cacos de vidro. — Precisamos levá-lo à enfermaria o quanto antes.
— Ela deve estar cheia agora e se bobear, os funcionários podem ter…
— Sim, mas precisamos tentar de qualquer jeito. Se estiver certo, precisamos dar um jeito de levá-lo até o hospital, ou alguém que possa…
Dario teve uma ideia, caminhou até o parapeito e vislumbrou quem procurava segurando a amiga lá embaixo.
— Anna!
Ela tirou os olhos da amiga por um instante, para encarar quem a chamava.
— Tem aquele seu negócio com você? — Dario vociferou.
— Que negócio?
— Aquela pequena bolsa dentro da bolsa, que tem ataduras e outras coisas dentro.
— Meu estojo de primeiro socorros? — perguntou um tanto confusa.
— Isso mesmo.
— Está na minha bolsa, mas eu a larguei na entrada. — E apontou para a porta da biblioteca. — Eu posso pegar, mas alguém tem que ficar de olho na Nat.
— Dario — Ronaldo o chamou. — Pode ir, acho que consigo carregar o rapaz até lá. — Referiu-se a Ronan.
— Certo. Se ela voltar a tempo eu venho ajudar.
Apesar de a biblioteca ter esvaziado, a tensão silenciosa não lhes permitiu dar espaço ao erro. Todo o cuidado era pouco, quem sabe o que estava acontecendo lá fora? Apesar de tanta incerteza, Dario caminhou apressado, passou por baixo do vão entre a estante tombada e a escada e se aproximou de Anna, prostrada segurando a amiga caída no centro da biblioteca.
— Vou indo então. — Anna entregou Nathalia nas mãos do amigo e andou receosa para fora da biblioteca, onde um silêncio fúnebre tomou o ambiente.
Dario correu o olhar por todos os cantos do prédio. Não se permitiu relaxar enquanto ela não retornasse. Lá em cima, no segundo andar, pôde ver o mestre carregando o aprendiz. Ronaldo optou pela decisão lógica e tomou o caminho livre, cruzou as estantes e desceu passo a passo a escadaria não obstruída, até chegar perto o suficiente para Dario ir lhe dar uma ajuda. Juntos eles deitaram o corpo de Ronan ao lado de Nathalia. Ambos desacordados.
Ronaldo soltou um riso.
— Um belo casal não é mesmo?
— É-é né. — Constrangeu-se. — Um belo casal. — Expirou devagarinho.
Carregando a bolsa nas costas, Anna apertou o passo, se ajoelhou entre os dois feridos e já começou tratando o ferimento da mão de Ronan.
— Você sabe o que faz — Ronaldo a elogiou com surpresa em seu olhar.
— Nem todo mundo é inútil como pensa — foi à resposta ríspida que recebera. Anna não o encarou, pois estava concentrada no que fazia, até repensar no assunto. — Sobre aquilo que você disse quando chegamos aqui… eu te perdoo — acrescentou ainda ressentida.
— Obrigado. — Ronaldo se encurvou numa demonstração de humildade.
Dario fixou seus olhos em Nathalia, os ferimentos pareciam graves demais para serem ignorados.
— Não deveria ter começado pela Nathalia?
Foi o ex-professor Ronaldo quem respondeu.
— Ela está bem na verdade, os cortes são superficiais. Ela está dormindo porque deve ter perdido a consciência ao bater com a cabeça em algum lugar, mas não é nada para se preocupar.
Dario engatinhou até o lado direito da garota e com cuidado pegou o braço dela para analisar os ferimentos. Ronaldo tinha razão, apesar da quantidade de sangue ao redor, os cortes eram ínfimos.
— Que bom — sussurrou baixinho, aliviado.