Ronan Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 79: Renegados (3)

— Belo bloqueio, Leonhart — Reiner elogiou passando por cima dos corpos ensanguentados. — Olha só, é o garotinho que perdeu para mim. Desculpa pela trapaça viu — provocou com um sorriso debochado.

Ronan permaneceu atônito, pálido como uma vela enquanto Nathalia ajeitou a manga longa da camisa e alisou o colete marrom claro que vestia por cima. Após exalar uma bufada de alívio, ela indagou ao veterano:

— Que inferno foi esse? Que confusão toda é essa? E porque aqueles dois se interessaram por eu ser filha do Arquimago?

— Eu arriscaria dizer que estamos sendo atacados, um atentado talvez. Agora… veja bem, seu pai não é a figura mais querida do momento. Talvez seja hora de esconder esse brasão na sua bolsa, não acha?

Nathalia acatou a sugestão e virou a peça bordada para dentro da bolsa.

— Mas eu também estou às cegas. Todo mundo está fugindo, seria uma burrice não fazermos o mesmo — observou Reiner após correr o olhar pelos arredores agora vazios.

O estralo de um tapa ecoou pela biblioteca.

— Acorda! — Nathalia rugiu impaciente.

Aquilo foi o suficiente para Ronan sair do transe, ele sacudiu a cabeça e aos poucos seu rosto voltou a adquirir cor. Os olhos percorreram o ambiente, tentando se encontrar.

— Caralho, caralho, caralho! — praguejou ao vento, em horror.

— Recomponha-se logo, precisamos sair daqui.

Ele assentiu.

Os três seguiram reto, desceram a escada e terminaram no primeiro degrau do primeiro andar. O caminho estava fechado por meia dúzia de rostos masculinos e femininos em igual quantidade. Não havia como descer, não por ali. Nathalia não hesitou, gesticulou fazendo o braço desenhar uma barreira grande o bastante para que recuassem em segurança de volta ao segundo andar.

Reiner aproveitou a cobertura fornecida e invocou uma rajada de vento capaz de arrastar os livros jogados no chão. Uma parte colidiu contra a barreira amiga, mas a outra a contornou fazendo uma trajetória curvada. Lá de baixo vieram as mais diferentes manipulações, setas subiram cortando o ar, perfurando a madeira enquanto as esferas incandescentes atearam as estantes mais próximas em chamas.

Ronan parou para analisar, concentrou-se e manipulou uma rajada contra a estante mais próxima, que tombou nos primeiros degraus da escadaria e ameaçou descer para o horror dos estanhos, mas foi aparada por alguma coisa, tornando-se um obstáculo para quem subisse.

— Rápido, vem pra cá — Nathalia o chamou.

Os três saíram do corredor e se aproximaram das janelas laterais. Com o canto do olho Ronan vislumbrou a situação lá fora, uma batalha confusa tomou as instalações da universidade. Não dava para reconhecer um lado do outro, estudantes disparavam suas manipulações contra os outros, corpos eram perfurados, queimados e dissolvidos por cruéis conjurações. Pequenos grupos de meia dúzia cortavam o horizonte em passos apressados, obliterando qualquer resistência que impusesse seu avanço.

— Não se distraia garoto! — Reiner o chamou olhando por detrás do ombro.

Ronan acatou a ordem e, juntos, os três percorreram entre as estantes até alcançarem os fundos da biblioteca, onde uma escada pouco conhecida poderia ajudá-los na fuga.

Mas foram bloqueados.

Conjurações foram disparadas do corredor principal. Como Ronan imaginou, os seis vieram da outra escada e de alguma forma os alcançaram a tempo. Reiner fez uma barreira translúcida surgir. As lanças de fogo disparadas lamberam a proteção côncava, mas o olhar analítico do invasor mais alto descobriu a fraqueza da sua defesa, a mão dele apontou para uma cadeira tombada ao seu lado. Um vórtice convergiu em sua palma, puxando para si a cadeira que levitava enquanto fazia caretas de esforço. Reiner então percebeu, aquela figura sinistra sabia qual era o ponto fraco da sua barreira.

A cadeira levitando foi erguida, e disparada após um estrondo.

O objeto maciço trespassou a proteção que barrava apenas energia, atingindo o peito de Reiner, que foi de costas ao chão. Lá na frente, Nathalia virou-se para analisar a emboscada, cinco estantes a separavam do amigo, um corpo inconsciente marcava o meio do caminho e seis figuras os encaravam do corredor à esquerda.

Ronan não se permitiu hesitar. Com a energia acumulada em segredo, fez uma ventania direcionar centenas de páginas, dezenas de livros, inúmeras penas e tinteiros contra os seus agressores. Perceptiva com era, Nathalia envolveu ambas as mãos em chamas para conjurar uma labareda contra as figuras distraídas graças ao colega. As estantes crepitaram em poucos instantes, o fogo as consumia, lançando uma fumaça cinzenta ao arredor de todos, limitando em muito a visibilidade. Ronan perdeu a amiga de vista, mas uma silhueta surgiu da fumaça, se impulsionou no corpo do colega inconsciente e agarrou-o pela mão.

— Vamos — Nathalia o comandou.

Ela não o largou. A dupla refez o caminho o mais rápido possível, mas trombaram contra a estante derrubada pelo rapaz.

— E agora? — ele perguntou horrorizado.

— Não tem jeito, vamos escalar essa desgraça.

A estante derrubada bloqueava o caminho, mas não por completo. Ronan notou um vão. O móvel fora aparado em parte pelo corrimão da escada, deixando um buraco grande o suficiente para alguém como ela passar agachado.

— Ali, ele apontou.

— Você quer que eu me arraste? — inquiriu incrédula, pouco antes de dar o primeiro impulso para subir.

Uma rajada de vento empurrou os dois com leveza, trazendo a fumaça do fogo consumindo as estantes consigo, obrigando a dupla a cobrir os olhos e o nariz com as mãos.

— Lá! — Uma das figuras misteriosas apontou.

Aos poucos a fumaça foi se fechando entorno do vácuo aberto pela rajada de ar. Projeteis luminosos voltaram a ser disparados contra eles. Ronan e Nathalia abortaram o plano de fuga pela escadaria e correram para se esconderem numa das poucas estantes ainda em pé.

Conjurações perfuraram e estilhaçaram a madeira. Trazendo o terror aos olhos azulados da garota, que desesperada, conjurou suas confiáveis chamam mais uma vez. Uma bola de fogo do tamanho dos seus punhos unidos foi arremessada contra os oponentes do outro lado do corredor.

Ronan espiou e viu a manipulação da amiga ser bloqueada por um escudo azul cintilante, formado pelas mãos de uma das garotas. Aquela conjuração defensiva foi maior, mais eficaz e potente em comparação à produzida por Nathalia, quando foram atacados minutos antes por dois “estudantes”.

— Faça a melhor barreira que puder! — Ronan ordenou.

— Por…

— Apenas faça! — bradou em emergência.

As chamas se apagaram das suas mãos e uma barreira grande o suficiente cobriu a passagem do corredor por onde Ronan disparou. Nathalia praguejou para si mesma. Bolas de fogo, setas arcanas e lanças corrosivas foram repelidas por sua proteção. Porém, uma por vez, rachaduras surgiam nos pontos mais atingidos, intensificando o horror nas feições dela.

Nathalia tentou se acalmar, concentrou-se e canalizou mais energia para as áreas fragilizadas, mas não foi o bastante para tapar os buracos. Apesar de ser a única da turma capaz de criar algo tão resistente, não foi o bastante. Metade do corpo estava protegido pela manipulação defensiva enquanto o resto permanecia atrás da estante.

A dez metros, uma das invasoras também protegida atrás do móvel, arregalou os olhos, parou de espiar e virou para os colegas. Nos segundos onde nada aconteceu, Nathalia pôde ouvir os cochichos vindos de lá. A mulher voltou a escorar-se na madeira, espichou com a cabeça e vislumbrou-a mais uma vez. Na palma dela flutuavam três setas arcanas do tamanho de uma mão esticada.

Não houve tempo para Nathalia reagir. O pavor a atordoou e uma sensação anestésica, mas agonizante, a tragou em devaneios. Quando se deu conta, as setas desapareceram. Olhou para baixo. Viu uma porção de livros rasgados e páginas estraçalhadas. Por cima delas descansavam as farpas e fragmentos da madeira da estante perfurada pelas conjurações, alojadas em seu abdômen, ombro e perna, desmaterializando conforme os milésimos passavam e o sangue escorria por sua camiseta branca e colete amendoado.

A barreira cedeu e ela foi ao chão.

As seis figuras se adiantaram e tomaram o corredor principal sem que alguma resistência fosse posta em seu caminho. Dois deles carregaram a garota para fora enquanto o resto foi procurar o rapaz desaparecido.

— Ali, achei ele… — berrou o mais corpulento enquanto puxava a manga do casaco de um comparsa.

Mas antes que pudessem virar o rosto para ver do que se tratava, algo havia os alvejados. Lamúrias e gritos ressoaram pelas estantes caídas e paredes chamuscadas da biblioteca. Dois invasores caíram ao chão aos berros, ensanguentados e com as vestes perfuradas por cacos de vidros que se alojaram na carne. Um deles ainda respirava, mas com dificuldade. Do fim do corredor Ronan surgiu com a mão embebida em sangue, ferida pelos cortes dos cacos de vidro que trazia.

— Ele está aqui! — urrou um invasor sobrevivente, tentando arrastar o colega já condenado.

E lá embaixo, do térreo veio a resposta.

— Que se foda! Nós temos a filha do Arquimago, vamos embora…

De volta ao segundo andar, a vítima alvejada pelos cacos disparados por Ronan, faleceu. O colega que tentou carregá-lo largou-o no chão e gritou para o último sobrevivente neste andar.

— Vamos! Não vamos nos arriscar por nada.

— E o garoto? — apontou para Ronan.

Um estrondo rugiu do lugar que indicou. Seus olhos, braços e tórax foram perfurados por uma dúzia de pequenas lâminas. A vítima lançou um lamento à imensidão negra e vazia que enxergava. Ronan hesitou, horrorizou-se ao olhar para os olhos perfurados pelos cacos que ficaram enterrados no globo ocular.

Engoliu a saliva acumulada na garganta.

O único sobrevivente no segundo andar foi tomado por um frenesi que o desproveu de razão, fazendo-o partir em direção àquele que assassinou seus colegas cruelmente. Ronan tentou conjurar a única manipulação ofensiva que sabia, mas o terror do avanço inimigo suplantou sua capacidade de concentrar, impedindo-o de manifestar energia.

Uma luta corporal substituiu o duelo arcano. O atacante tomado pela fúria partiu em um assalto inconsciente. Ronan conseguiu desviar do avanço com um pequeno salto para direita, tentou contra atacar, mas uma dor aguda tomou sua mão manchada pelos filetes rubros que pingavam no chão de madeira da biblioteca.

O agressor retomou o ataque, aproximou-se e tentou golpeá-lo numa sucessão de socos e chutes que atingiram apenas o ar. Ronan recuou, tentou revidar, mas a mão direita fraquejou.

— Merda! — praguejou rangendo os dentes.

Seu oponente urrou um grito de guerra e avançou.

Ronan vasculhou os arredores com o olhar, apenas estantes caídas, livros, papéis e estilhaços de vidro decoravam aquele setor do segundo andar. Optou por fugir, correu do seu algoz, mas o terror da perseguição o impediu de se concentrar. Precisava reunir coragem o suficiente como antes, ao enfrentá-los com cacos de vidros disparados por uma conjuração do vento focada. Infelizmente, a imagem do rapaz lamentando com o olho perfurado lhe veio à tona.

A culpa pesou sua consciência, o ato cruel o flagelou.

Tentou se justificar: mas ele queria me matar!

Mas o sentimento de culpa não o abandonou.

Os olhos umedeceram, parte em dor, parte em culpa e parte em pena. Levou sua mão limpa aos olhos para secá-los, mas ao fazer isso, trombou num obstáculo e foi ao chão. Amaldiçoou a porcaria da estante que pela segunda vez o atrapalhou. Ronan virou-se para trás, e contemplou o fim.

Seu carrasco o alcançou.

 



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