Volume 1
Capítulo 78: Renegados (2)
O dedo indicador de Ronan percorreu a superfície marrom escura da mesa de carvalho. A poeira alçou um voo luminoso, agraciado pelos raios solares do fim da tarde trespassando os vidros do segundo andar, também coberta por uma camada de poeira.
O local se assemelhava onde há poucos minutos ele estivera com Anna, exceto pela ausência das saudosas pilhas de livros acumuladas em cima da mesa.
Sentada na ponta empoeirada com os cotovelos apoiados na superfície, Nathalia entrelaçou os dedos da mão em frente ao seu rosto, para encarar Ronan com relativo interesse.
— Uma limpeza não faria mal a ninguém — disse retirando as mãos em frente aos lábios, para com elas oferecer a cadeira ao lado dando leves tapinhas no assento. — Pode sentar Ronan. Eu não mordo — ela finalizou com um meio sorriso.
Deixando os fundos da sessão, Ronan caminhou até o assento indicado pela amiga. Durante o trajeto, contemplou a entrada da biblioteca, pois o segundo andar, assim como o terceiro, não abrangia toda área do prédio. Um vão em “U“ possibilitava aqueles nos andares superiores de contemplar a área que abrangia a entrada do prédio até a escadaria que desembocava nos andares subsequentes.
— Vai demorar? — Nathalia perguntou já impaciente, havia escolhido a pior hora para contar a histórica rinha entre Leonharts e Zeppelis.
Uma cadeira foi arrastada pelas mãos de Ronan. Ele sentou nela e cruzou os braços. Sentiu como se tivesse abandonado sua fiel companheira de estudos, e o pior: Nathalia nem parecia se importar.
Uma guerra era travada dentro de si. Por um lado, sempre sentira atração pela prodígio ao seu lado, aquele cabelo dourado, o profundo azul naquele olhar e o sorriso hipnotizante dela lhe chamaram atenção desde que a vira no primeiro dia de aula. Entretanto, a relação recente com Anna vinha aflorando, não como um sentimento avassalador, mas como um companheirismo. E para ele, isso claramente não significava amor, paixão ou algo do gênero, sentia-se esquisito de qualquer forma. Não entendia porque dois sentimentos tão diferentes conflitavam, quando na verdade, pareciam se completar tão naturalmente.
Um manto de melancolia e insegurança foi lhe envolvendo e consumindo, trazendo reflexões obscuras a sua mente. Porque estou perdendo tempo com isso. Sou apenas um ninguém que mal consegue conjurar algo tão simples. Posso ter surpreendido no torneio, mas perdi mesmo assim. Ganhei uma belíssima espada da linda e arrogante garota que tanto admiro, mas ela já odiava aquele babaca do…
— Ronaaaaaan. Você está ai?
Uma mão pálida abanou em frente aos seus olhos.
— Desculpe.
— Não precisa ficar se desculpando por qualquer coisa. Só fiquei preocupada, parecia que tinha morrido por um instante.
— Perdão.
Ela levou a mão à boca, mas não conseguiu abafar o riso que brotou entre seus lábios. Ronan a encarou por um instante e foi contagiado pelo bom humor da colega, mesmo não sabendo por quê.
Devagarinho e sorrateira, Anna espiou por entre duas estantes, mas vendo aqueles dois rindo de algo que parecia muito engraçado, foi embora sem ser notada, acumulando um ressentimento dentro de si.
Assim que ambos recuperaram o fôlego, Nathalia narrou uma versão resumida da trajetória da sua família, omitindo dezenas detalhes. Contou o incidente envolvendo o Feiticeiro Carmesim, como seus pais se ressentiam de forma incondicional frente a qualquer Zeppeli, ou qualquer outra família com renegados em sua árvore genealógica, mas quando finalmente se interessou pela história narrada, ela concluiu:
— Você entende agora?
Mas não tinha certeza.
— Sim. — Optou pela resposta fácil.
— Que bom, fico feliz em saber.
O arrastar longínquo de cadeiras chamaram a atenção daqueles nas proximidades. Conversas esparsas foram tomando as sessões da biblioteca. Ronan e Nathalia se entreolharam e também se levantaram. Dirigiram-se ao parapeito do segundo andar, de onde puderam enxergar o térreo. Algo deve ter acontecido, pois uma movimentação tomou a entrada da biblioteca, por onde estudantes saiam apressados entre um falatório incompreensível.
— A janela! — Ronan apontou para o local.
Os dois percorreram até o fim do corredor desembocando na parte frontal do prédio. Eles espiaram para fora da cumprida janela. Um caos incompreensível tomou o pátio da universidade, estudantes e professores corriam como formigas para as saídas do campus.
— Devemos fugir também? — ela sugeriu exalando apreensão em cada palavra.
A preocupação e a incerteza em cada um era tamanha, que nenhum deles percebeu os dois estudantes se aproximando a passos cautelosos.
— Ei, vocês ai na janela. Que confusão toda é essa?
Confuso e de costas para a janela, Ronan vislumbrou o parapeito que delimitava o vão à esquerda, as fileiras de estantes a sua direita e os dois estranhos bloqueando o corredor. Ambos pareciam estudantes, vestiam camisetas simples abotoadas, calças de linho um tanto surradas presas a um cinto e calçados de couro, mais nada.
Ronan decidiu falar a verdade para eles.
— Não sabemos também.
— De que semestre vocês são? — perguntou o mais alto, o cabeludo da esquerda.
— Do segundo.
Eles se encararam e acenaram um para o outro.
— Vocês não estudam com a filha do Arqui…
— Não — Nathalia o cortou na hora.
O cabeludo desferiu uma cotovelada no amigo e apontou para o brasão do leão na bolsa que roçava na coxa da garota.
— Tá querendo enganar quem? Eu conheço muito bem esse desenho. Você é sim a filha do Arquimago. Por que mentiu pra gente?
Um prologando grito de dor e agonia se fez ouvir do pátio lá fora.
— Não confio em vocês. Nunca os vi na Universidade — ela disse puxando Ronan pela gola do casaco. — Você não carrega sua espada por ai né? — sussurrou rápido o bastante. E o largou.
— É claro que não.
Um raio luminoso vindo de fora atingiu uma das janelas, esparramando estilhaços de vidro para dentro da biblioteca. Nathalia não se deixou distrair e preparou uma conjuração.
— Para trás! — ela bradou com as mãos envoltas em chamas.
— Por quê? Não fizemos nada — justificou-se o rapaz à direita.
Com a visão periférica Ronan avistou uma silhueta subir as escadas e percorrer o corredor onde foram encurralados. Quando ele ficou a poucos metros dos desconhecidos, o recém-chegado parou, pôs as mãos na cintura e inquiriu como um oficial do exército:
— O que vocês fazem ai?
— Reiner — grunhiu Nathalia. — Aposto que ele tem um dedo nessa confusão.
Os rapazes que os abordaram olharam para Reiner e cochicharam alguma coisa entre eles. O nervosismo consumiu Ronan, fazendo-o respirar entre pesados intervalos. Os dois estranhos os encararam, transmitindo uma impassividade aterradora. Até as mãos serem envoltas por uma aura púrpura.
Em movimentos bruscos e sincronizados a dupla acumulou energia arcana e fez surgir em suas palmas meia dúzia de setas pontiagudas. Braços foram esticados, palmas erguidas e dedos estendidos.
Como uma saraivada de flechas as setas zuniram quando cortaram o ar, mas esfarelaram ao baterem de frente contra um pequeno escudo translúcido, emanando da mão estendida de Nathalia.
Mais gritos de angústia foram ouvidos. Sangue escorreu para marchar o piso de madeira do segundo andar, onde dois corpos foram ao chão.