Volume 1
Capítulo 59: Criadores de Runas (2)
Dentro de sua sala, o coordenador Rafael sorriu ao ver Dario e Nathalia metidos em uma nova confusão. Era a segunda vez que um professor trazia a dupla na primeira semana de um semestre, e sobre a mesma justificava: mau comportamento.
Rafael ouviu o testemunho de Ronaldo Rodrigues com um pé atrás, afinal, ele era o professor que mais trazia alunos “desobedientes”. Na maioria dos acasos tudo se resolvia de forma orgânica.
Com o tempo os alunos aprendiam a temer o professor, então abaixavam a cabeça e faziam o que ele ordenasse. E como Rafael não via motivos para fazer diferente, decidiu se utilizar do mesmo discurso que aliviou sua situação em tantos casos semelhantes.
— Vamos fazer o seguinte, como é a palavra de um contra o outro, vocês dois. — Balançou o indicador para se referir aos baderneiros. — Ficarão dispensados pelo resto do dia. Quanto a você, professor Ronaldo, eu peço que tenha mais calma com seus alunos daqui em diante — Rafael sugeriu como se acreditasse em suas próprias palavras.
Ronaldo balançou a cabeça em afirmação. Já estava mais do que acostumado a receber essa ladainha, mas não tinha do reclamar, seus alunos sempre regressavam obedientes dali.
Incrédulo com o teatrinho em sua frente, Dario acusou:
— Você não ouviu? Ele nos expulsou sem razão alguma. Tudo porque ficamos sem ferramentas. E isso porque ele não nos deixou buscá-las em outra sala.
— Eu já falei, eu não tenho como saber se é verdade.
— É só perguntar pra turma toda — interveio Nathalia, porém no fundo ela não saberia se os colegas teriam a coragem de assumir a verdade.
— Se isso acontecer mais uma vez, eu juro que irei mais afundo nisso.
Ela não se deu por satisfeita.
— Isso já aconteceu antes, não é? Essa não é a primeira vez que alunos são suspensos depois de uma aula com… ele!
— É claro que não é a primeira vez, mas vocês também são conhecidos por arranjar confusão. Ou vai dizer que a culpa de todos os incidentes entre vocês dois é dos professores?
Incapazes de trespassar a falácia proferida, eles cederam ao argumento do coordenador. E como o único satisfeito, Ronaldo Rodriguez sorriu.
▼
Para a infelicidade de Ronan e Anna, seus amigos não retornaram junto com o professor. Ambos imaginaram o pior, e percebendo a inutilidade de remoer as suposições brotando em suas mentes, decidiram prestar atenção na aula e torcer para não fazerem alguma besteira, ou acabarem ficando sem uma das ferramentas pelo acaso do destino.
Mais uma vez o professor Ronaldo ordenou seus alunos a esculpirem nos cubos de madeira o desenho que fizera no quadro, agora meio apagado pela pancada desferida anteriormente.
Sem questionar, todos talharam o circulo com quatro riscos retos em cada diagonal. Amedrontado, Ronan esculpia em seu cubo com toda precisão do universo. Esforçou-se em deixar a curvatura fiel ao desenho original, e as quatro retas, impecáveis.
Por mais meia hora a turma se ocupou da atividade. Próximos do fim, os alunos comparavam de forma educada, ou nem tanta, suas runas recém-criadas com as dos colegas. O medo de serem repreendidos permitiu que apenas cochichos fossem ouvidos nas proximidades.
Ronan virou-se para a bancada de trás e comparou a sua criação com a dos seus amigos.
— Os de vocês todos estão horríveis — constatou num sussurro.
— É o que deu pra fazer. A gente tá aterrorizado, olha! — Jonas disse mostrando o formão tremendo em sua mão direita.
Uma batida ecoou pela sala, chamando a atenção de todos. Ronan vislumbrou o professor com a mão fechada sobre o quadro.
— Para a alegria de certo alguém. — Ele fixou seu olhar em Anna. — Eu irei explicar um pouco sobre o funcionamento de uma runa. Peço que antes de eu começar as devidas explicações: que vocês larguem o bloco de madeira no balcão. — Ouviu-se apenas o baque de dezenas de cubos. — E se eu flagrar alguém mexendo nele, ou pior, tentando talhar alguma coisa enquanto falo, eu garantirei a vocês o mesmo destino daqueles dois pivetes. — Pausou para dar efeito a suas palavras. — A runa que vocês talharam nos blocos representa o padrão mais básico de absorção. O circulo marca o local onde a energia será transferida e a largura dos quatro traços demonstra o alcance da absorção. Vocês saberão se ela funciona assim que canalizarem sua energia nela pela primeira vez. Vamos lá pessoal, quem terminou pode ativar a runa do seu bloco.
Ao mesmo tempo os alunos se concentraram e canalizaram a energia arcana nas runas criadas. Um estouro assustou a turma, advindo de um cubo carbonizado e atirado no chão da oficina.
Do fundo da sala veio o segundo, de uma pequena explosão originada onde a runa foi talhada, a garota não largou o objeto, ele permanecia em suas mãos, mas com uma das faces queimada, propagando o mau cheiro da combustão da madeira.
A partir dai foi um show pirotécnico. Um a um os cubos foram explodindo, assustando a todos e potencializando o mau cheiro que tomou o ambiente. Resultando nas mais diferentes reações aos incautos.
Com os olhos arregalados, Ronan contemplou as runas falhas e chamuscadas ao seu redor. Pelo que parecia, todos haviam fracassado na primeira tentativa, e a pergunta era, por quê?
Lá na frente o professor ria, possuído por um prazer sádico.
— Uma turma de desleixados, bem como eu imaginava. — Sacudiu a cabeça na horizontal, ainda em meio a risadas. — Essa falha pode significar duas coisas, ou o padrão marcado estava grosseiramente errado, ou vocês canalizaram energia de mais, ou de menos. Então aqui vai a primeira dica: façam melhor! Mas devo ser justo com vocês. Eu omiti a parte mais importante. Vocês precisam também concentrar sua energia arcana em cada talho, canalizando-a para o formão durante a criação, senão, a sincronização não ocorrerá e a energia se perderá, ou explodirá como bem viram. Agora, como saber se eu fiz certo? Bem, a resposta é simples. Uma vez que vocês estejam fazendo da maneira correta, a energia canalizada por vocês será transferida em cada talho, marcando o padrão da runa com o aquilo que chamamos de: assinatura arcana. Ela permitirá que apenas a assinatura gravada possa ativá-la e…
— Professor — Ronan chamou num lampejo de coragem.
— Não me interrompa durante a explicação moleque. Se quiser perguntar algo, permaneça com a mão levantada e espere eu dar permissão.
Ronan baixou o braço e esperou ele terminar a bronca.
— Continuando… Eu recomendo a vocês utilizarem as outras cinco partes do bloco para repetirem quantas vezes for necessário. Não se esqueçam do que eu expliquei. Vocês precisam canalizar a energia em cada talho. Experimentem variando os níveis de força até conseguirem marcar suas assinaturas no desenho da runa. — Então Ronaldo olhou em direção a Ronan. — Agora fale garoto, o que queria me perguntar.
Ronan ergueu seu bloco de madeira para que o professor pudesse ver. O cubo não sofrera queimadura alguma e listras protuberantes decoravam os locais onde o formão talhou o desenho.
— E agora professor? — Ele quis saber, temendo ter feito algo errado.
Ronaldo Rodrigues se aproximou em passos módicos e vislumbrou o trabalho do rapaz.
— Bem… — começou levando a mão ao queixo. — Parece que nem todos nessa turma são inúteis.
▼
Após ser elogiado pelo professor mais rabugento de toda Antares, Ronan sentia uma estranha felicidade tomar conta de si. Tanta autoestima o fez ter a coragem de confrontar Anna, que por algum motivo ainda o olhava torto.
Como era longo o caminho da oficina até o centro da universidade, Ronan reuniu a iniciativa que faltava para abordar a garota que caminhava enquanto conversava com Nathalia e Karen.
Quando julgou estar preparado, ele se aproximou das três.
— Anna — chamou com a voz um tanto esganiçada.
As três se viraram em uma sincronia não intencional. Nathalia leu a situação em segundos e virou-se para a amiga de cabelos escuros.
— Vamos indo Ka, vamos deixar os dois conversarem em paz.
Com o braço direito Nathalia envolveu os ombros da amiga, virou-se para Ronan, piscou de um olho só, e com um sorriso no rosto, foi embora.
O que foi isso? Ele se perguntou sentindo o efeito do sorriso e da piscadela capciosa, que o fez suspirar por dentro e transpirar por fora. Quando o encanto esvaneceu, Ronan voltou para a garota que viera conversar em primeiro lugar. A feição dela expressava o mau humor dos últimos dias.
— O trio se juntou novamente? — Tentou abrir com algo descontraído.
— Acho que sim… mas Ronan, o que você quer?
— Vamos nos reunir na biblioteca hoje?
Ela o encarou, parecia tentar desvendar algum enigma talhado em sua face.
— Escuta… depois daquilo da terça feira passada e da bronca que eu tomei do professor hoje, a última coisa que eu quero é ficar na biblioteca, ou melhor, na universidade, por mais tempo que o necessário.
— O que houve terça-feira? Eu fiz alguma coisa que te chateou?
— Você não fez nada!
— Então?
— Esse é o problema — ela respondeu chateada — Você não fez nada. — confessou baixinho, num lamento quase choroso.
— Como é? Eu não consegui te ouvir direito, você por acaso está…
Anna levantou a cabeça e arregalou os olhos úmidos, irritados pela inocente insensibilidade do rapaz em sua frente.
— Esqueça Ronan! Deixa isso pra lá.
E foi embora, largando-o para trás, confuso com aquilo tudo.