Ribeira dos Desejos Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 2

Capítulo 25


Dia 6 | Ano 1***

15:40 PM

 

Caçar nem sempre foi uma tarefa difícil, não para Asher.

O peso do arco, da força controlada que ele desferia contra a corda e a flecha, nada disso se comparava com a frieza de seu olhar.

Somente ele, e seu alvo.

Imóvel ou em movimento, o tiro era preciso.

“Deixe-a sofrer.”

Asher não pensava como seu pai. Se era para matar, assim tinha que ser feito.

Na floresta, ele acompanhava um javali. Estava sozinho, sem filhotes. Era um macho velho, e um abate que não traria a ele o lucro desejado, mas que renderia um bom dinheiro.

Ele mirava onde precisava, direto no peito.

Um tiro para matar.

Os pássaros que repousavam em seus ninhos, ergueram voo ao ouvirem o último grito do animal, que caiu no mesmo instante. Estava abatido.

Ele verificou o porte da caça. Forte, carnes boas. Cifres gastos, porém resistentes.

Era uma boa presa. Então, ele amarrou as patas traseiras do animal à traseira do seu equino.

— Está com fome, garoto? — perguntou a Varlosy, oferecendo uma maçã, que o animal devorou rapidamente.

Era a última caça do dia. Três coelhos, um ganso e um javali eram suficientes para garantir uma bolsa cheia de moedas. Contar quantas delas ganharia o ajudava a esquecer o tempo que demorava para chegar à cidade.

Sempre funcionava para dispersar sua mente de memórias que odiava recordar.

O trajeto silencioso, inevitavelmente, o lembrava de Rose. Ele se perguntava quantas vezes seguiu aquele mesmo caminho ao lado dela. De quando, tudo começou a mudar.

Quando tudo começou a seguir um rumo diferente? Foi quando sua ousadia se tornou mais insensata? Quando ele, finalmente, teve coragem de rebater o marido da mulher que ele amava, ou… de acreditar que ela estava ficando confusa sobre ele…

Ele queria acreditar que ela tinha incertezas; que em algum lugar em seu coração bondoso, ela não se esqueceu dos momentos agradáveis.

Enquanto Varlosy seguia o caminho calmamente, o vento esvoaçou os cabelos de Asher quando, por um segundo, ele confessou para si que estava errado.

Asher admitia em silêncio que tais pensamentos apenas o transformaram em um homem frívolo, imaginando que sua antiga amizade de infância estava em uma vida feliz, liberta de sua presença opressiva. Ela já contava com alguém para apoiá-la; alguém que escutasse as suas queixas, soubesse lidar com os surtos momentâneos e picos de baixa autoestima que ele conhecia muito bem.

Desde que ela estivesse bem, era o suficiente para fazê-lo acreditar nas palavras de Lukas. 

De todo modo, na movimentada feira, diversos sons se entrelaçavam em uma única sinfonia caótica: vozes agitadas se misturavam ao som das solas de sapatos sobre o chão de pedra, enquanto o impacto do facão encontrava a madeira, desmembrando habilmente o corpo do animal recém-abatido.

— Aqui — disse um homem, com um avental manchado de sangue, pousando uma bolsa de coro no balcão do espaço cheio de carnes penduradas. — E mais isso. — Entrou uma pequena quantia a mais de moedas. — Você fez um bom trabalho. Da próxima vez, pegue uma raposa. Minha esposa está me deixando louco com essa moda de casacos de pele. — Ele sorriu.

— A temporada de inverno está chegando — comentou Asher, pondo as moedas no bolso. — Farei o possível.

— Sei que sim, garoto. — Dobrou os braços sobre o peito. — Você cresceu — falou, com uma pitada de orgulho. — Nunca imaginei que aquele moleque magro e desajeitado se tornaria um homem, e regressaria ileso após liderar uma tropa com duzentos homens. Você… está de parabéns.

— Eu não fiz nada que meu pai não me tenha ensinado. Se não fosse por ele, estaria debaixo da terra agora. — Tocou na guia de Varlosy. — Obrigado pela renda extra, mas preciso ir. Se cuida, velho. — Acenou.

— Vê se não morre, pirralho.

No trajeto para a casa de Lukas, Asher ponderava que precisava reconsiderar tudo se ainda estivesse no campo de batalha. A cabana velha e problemática foi a primeira chance que Asher teve para refletir sobre seu passado. Um garoto que, durante muitos anos, presenciou seu pai e mãe em vidas miseráveis, agora estava ali, com o bolso cheio de moedas.

A ideia de mudar de vida, logo dissipou-se com o peso da prata, durante o tempo que o vento agitava a crina de seu corcel, que parecia estranhamente em paz. Movia-se com calma, as patas ressoando contra as pedras do caminho, até que suas orelhas se voltaram repentinamente, captando um som distintivo vindo da floresta.

Ele parou e soltou um leve relincho, como se tentasse avisar algo.

— O que foi, garoto? — perguntou Asher, passando a mão pela pelagem macia do cavalo. — Foi quando ouviu um som distante, vindo de perto da casa de Rose.

— Um choro…? — Asher ergueu uma sobrancelha e, com um movimento firme, pressionou os calcanhares contra o flanco do cavalo, levando-o em direção à casa de madeira, onde flores pendiam dos ramos como ornamentos de primavera.

Ao se aproximar, Asher notou um homem de cabelos semelhantes às folhas mortas do outono, segurando uma criança que chorava incessantemente. Ele franziu o nariz, descendo do cavalo com um movimento ágil. — Que merda…?

Na entrada da residência, Timothy tentava acalmar a menina, com olhar incerto, sem saber o que fazer, ou por onde começar. — Edy, por favor… respire fundo e me diga para onde aquele homem levou sua mãe!

A menina soluçava. Suas palavras eram entrecortadas pelas lágrimas que não paravam de deslizar de seus olhos inchados. 

— E-ele levou a m-mamãe para longe! Eu vi… jogou ela no chão!

Ela agarrou-se ao pescoço de Timothy, o rosto rubro de desespero.

— O que faço agora…? — murmurou ele, acariciando as costas dela. Olhou ao longe e, de repente, viu uma figura familiar se aproximando.

— Você…? — questionou, surpreso ao ver Asher.

— Bem, eu também não esperava estar aqui, mas… meu cavalo ouviu um barulho estranho vindo da casa de uma conhecida — respondeu Asher, ajeitando a camisa dentro da calça. — E não sou de ignorar um pedido de ajuda, seja lá o que esse choro alto e irritante signifique.

Timothy lançou um olhar de desdém, percebendo a diferença de estatura que o incomodava. — Rose sempre ensinou nossa filha a não se perder na floresta, e hoje não foi diferente. Edy estava com Rose quando eu a vi saindo da floresta dizendo que um homem apareceu e...

Asher, indiferente, interrompeu: — E a pirralha diz que Rose foi sequestrada por um homem na floresta?

— Ela está tão assustada que não consigo deixá-la sozinha até que se acalme.

— E onde está Vivian? — Asher arqueou uma sobrancelha.

— Você sabe muito bem… — Timothy evitou olhar para ele. — Em um lugar que você visita com bastante frequência.

Para Asher, o comentário soava quase como um elogio, principalmente vindo de um homem como ele. — Diga à pirralha que não se preocupe. Rose sabe o que faz.

— Eu não estou preocupado —  rebateu, a voz endurecendo. — Ensinei Rose a se defender de ameaças. Mas isso não significa que eu seja indiferente à sua segurança.

Um leve sorriso cínico se formou nos lábios de Asher. — Eu falava da criança, não de você. Rose sabe se virar. Acredito que você deve tê-la ensinado a segurar uma faca. Agora, segurar uma espada… já não posso garantir, pois eu teria que ensiná-la pessoalmente.

Timothy hesitou, abaixando Edwynna cuidadosamente ao chão. — Querida, olhe para mim. — Ele enxugou as lágrimas dela. — Sua mãe está bem, okay? Está vendo esse homem? Ele vai ajudar a encontrá-la.

Eu vou? — pensou Asher, contendo o tom irônico que normalmente usaria.

— Preciso que você seja uma boa menina enquanto estivermos fora.

— Ou, espera aí — disse Asher, franzindo o cenho. — Pretende deixá-la sozinha?

— Tem uma ideia melhor? — respondeu Timothy, irritado. — E eu não posso levá-la conosco.

— Nesse caso, você será inútil lá. Rose foi treinada para enfrentar esse tipo de situação. Eu mesmo a ensinei.

— Mas fui eu que a preparei para lutar! — Timothy retrucou, a voz subindo um tom enquanto o encarava. — O que fez por ela, além de machucá-la agindo como um idiota?

Para Asher, Timothy parecia muito satisfeito ao dizer tantas verdades, apenas para curar a ferida em seu ego.

Mas, em vez de refutá-lo, Asher deu um passo à frente, o olhar frio. — Eu a ensinei a matar — respondeu, num tom baixo e gélido que fez a expressão de Timothy, antes confiante, esvair-se de seu rosto.

— Rose não tem coragem de machucar nem mesmo o menor dos insetos. Acha mesmo que eu acreditaria em você? Eu conheço minha esposa.

Sim, senhor… Sua esposa — disse Asher, em pensamento. — Você não se cansa de enfatizar isso, não é,  filho da puta?!

— Bem, agora você sabe que não é o único homem que a conhece tão bem. — Sorriu, seus olhos voltando-se para o rosto vermelho da criança. — Pegue um agasalho para ela. Conheço alguém que pode cuidar dela.

— E quem disse que eu confio em você? — Timothy bufou.

— Acredite, se quisesse, eu mesmo a encontraria. — Asher fez uma pausa. — Mas estou te dando a chance de não ser um peso para ela e mostrar que você é um bom marido.

— Você não sabe nada sobre mim.

— E sou grato por isso, porque eu nunca deixaria minha esposa e minha filha irem para a floresta sozinhas, sabendo dos espiões que rondam essas terras.

Timothy, no mesmo instante e por poucos segundos, parou, perdendo um pouco de sua postura defensiva. — Espiões?

Mas Asher, ignorando-o, apenas se voltou para a criança. — Arrume a menina. Vamos encontrar sua esposa para você. — Ele desceu os degraus em direção ao cavalo, enquanto Edwynna o observava com curiosidade.

— O titio vai ajudar, papai? — ela perguntou, agarrando-se à perna de Timothy.

— Vai sim, querida. Vai sim… — respondeu, soltando um suspiro resignado, antes de pegá-la no colo. — Venha. Vamos encontrar sua mãe!


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