Ribeira dos Desejos Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 2

Capítulo 19

Muitas circunstâncias levavam homens, mulheres e jovens a adentrarem a vida de caçador, e Anthony conhecia bem todas elas. Para alguns, a caça era uma diversão. Para outros, era uma questão de sobrevivência. O valor de uma caça variava conforme o animal; lebres eram comuns; cervos, valiosos. Javalis selvagens traziam mais ouro do que ambos, mas lobos… lobos eram um prêmio raro, cobiçado pelas damas da alta sociedade, que ansiavam por suas peles macias, cinzentas como a neblina nas montanhas, ou tão alvas quanto a primeira neve do inverno. Essas peles adornavam os ombros das nobres com um prestígio que os vulgares casacos de raposa, com suas pelagens avermelhadas, jamais poderiam igualar.

Anthony, com seus olhos aguçados e mãos calejadas, sabia exatamente o que traria cada venda. Três lebres, dependendo da época, poderiam valer mais que uma raposa saudável. Ele não se deixava enganar por adornos triviais como colares ou amuletos de boa sorte; o que ele buscava era o lucro. 

Naquele momento, diante dele, o olhar de outro predador atravessava a clareira. Ele o conhecia bem — olhos que parecia falar, mesmo sem palavras.

“Não toque no que é meu.” Era um aviso.

Anthony não precisava pensar muito para compreender o que estava em jogo. Já se deparara com situações semelhantes antes, onde caçadores, homens ou feras, disputavam o direito ao território à presa mais valiosa acabara de fugir. 

— Então, você foi enfeitiçado por aqueles olhos? — inquiriu Asher, o deboche na ponta da língua.

Anthony observou, atento. O ar entre eles parecia tão frio quanto as montanhas geladas ao norte. 

— Você a conhece? — perguntou Antonhy, rompendo o momentâneo silêncio.

Asher, estalando o pescoço e com uma sinceridade cortante, falou:

— Quando eu tinha sete anos, descobri que meu pai teve um caso com a mãe dela. Na época, eu não sabia que era uma prostituta, mas sabia que tinha uma filha. Minha mãe, ciente das traições, foi embora e nunca mais voltou.

Anthony inclinou-se para frente, provocando:

— E você culpa a filha por isso?

Asher apenas riu sem humor. 

― Não. A culpa é do meu pai. Rose não é como Vivian. Ela gosta de flores, de proteger a família, e de ser suficiente para agradar os outros. Ela pode ser um pouco teimosa, mas é prestativa, até demais. ― Ele olhou de relance para a expressão impassível de Deron, voltando a caminhar para a mata. ― Há mulheres mais bonitas e interessantes na vila para tentar algo. Muitas delas, solteiras, se preferir.

Deron contemplou as palavras de Asher, o olhar vacilante se desviando para as lebres penduradas nas laterais da bolsa dele, como troféus de uma caçada bem-sucedida.

― E se eu a quiser? ― A pergunta escapou de seus lábios, quase como um reflexo de uma ousadia instintiva.

Asher parou em meio ao caminho, os músculos tensos sob a camisa desgastada. Ele virou lentamente a cabeça, os olhos fixos nos de Deron, penetrantes como a ponta afiada de uma flecha.

― Diga isso ao marido dela. ― Seus lábios se curvaram em uma linha fina. Um sorriso, contudo, não satisfeito, devido à tensão muscular no maxilar.

Anthony, assim como os outros dois jovens inertes, apesar de terem, à vista, a mesma altura, a aura de Asher era mais densa, ameaçadora, como se uma sombra se estendesse sobre Deron. A voz ríspida parecia um aviso do que uma simples sugestão.

― Vou para casa primeiro. ― Asher voltou-se, acenando displicentemente por sobre o ombro. ― Teremos cozido no jantar.

Sem mais nada a dizer, Asher desapareceu entre as árvores, deixando um rastro de silêncio que pairava sobre o grupo. Todos permaneceram imóveis, e até mesmo Toph, o mais irreverente entre eles, soltou um assobio baixo, surpreso pela dureza do comentário.

― Ele é tão fácil de ler ― disse Rony, cruzando os braços, sem mostrar grande surpresa. Seu olhar estava distante, quase desinteressado.

Anthony, por outro lado, encarou o chão e a folhagem seca, seus dedos brincando com uma pequena pedra que encontrara no chão. ― Isso soa como uma história antiga. ― Ele jogou a pedra de uma mão para a outra. ― O que você pretende fazer a respeito, Deron?

O homem, ciente de que Asher já estava longe o suficiente para não ouvir, e com um sorriso debochado, expôs:

― Eu só queria provocá-lo. Ele não é tão forte agora, mas parece corajoso o bastante para desafiar o marido de uma amiga.

Asher estava definitivamente perdendo o controle de sua mente. 

Seus pensamentos o traíam, distorcendo a realidade em borrões de desejo e arrependimento. Ele caminhou mais alguns passos, acompanhando o fluxo da ribeira até alcançar a estrada. A terra amarelada se estendia em um mar árido, perdido no horizonte, onde seus olhos, outrora claros e penetrantes, mal conseguiam focar. Grandes e pequenas árvores cercavam-no, seguindo seus movimentos.

O trajeto permaneceu tranquilo. Para um caçador acostumado com o canto das aves, o farfalhar das folhas e do vento entre os galhos, aquilo era estranho. No entanto, apesar de seus sentidos apurados, seus olhos, involuntariamente, subiram em direção à casa que ele já havia observado incontáveis vezes. 

Não era a estrutura que o atraía, nem as flores que decoravam sua entrada, desabrochando em um gesto de saudação à vida ao seu redor. Era ela. A mulher que vivia lá, ao lado de seu amigo, rindo, seus dentes brancos como a neve, como se acabasse de ouvir a piada mais engraçada do mundo. 

Ela parecia brilhar, tão linda quanto as flores que adornavam o jardim. Seu toque era leve, quase despreocupado, no braço de Lukas, seus passos graciosos como se seus pés nem tocassem o chão.

Asher parou. Algo dentro dele o impediu de seguir adiante. Onde estavam as tranças que ele mesmo havia ensinado a fazer? Por que ela o tocava daquela maneira, como se precisasse de proteção? Ele já tinha visto essa cena antes. Aquela postura… ela não precisava de escolta! Podia muito bem levantar a bainha daquele vestido gasto e andar sozinha!

A veia em seu maxilar pulsava, sua garganta seca enquanto seus olhos permaneciam fixos nela – sua única presa. Sua respiração descompassada. 

As palavras de Deron ecoavam em sua mente. Todos a queriam, como se fosse um troféu, como Vivian. Mas o que havia de tão especial em possuir algo que já fora desejado por muitos? Ela era diferente. A única. A mulher que o jovem Asher havia amado.

Um suspiro longo e tortuoso escapou de seus lábios enquanto ele tentava, em vão, dispersar os pensamentos que ameaçavam dominá-lo. Ele não era mais o mesmo Asher de antigamente, o homem que cometera tantos erros, erros que deveriam permanecer enterrados. Aquela não era mais a Rose que seu coração ansiava. 

Rose está morta ― murmurou para si, em pensamento. ― A Rose de sua juventude não existe mais. Esqueça-a. Apenas… esqueça-a.

Esqueça-a. ― Arfou, enquanto suas pernas se moviam antes que ele pudesse perceber.  ― Esqueça-a… ― Ele se afastou; passos largos pela estrada. 

Por favor… ― Sua testa franziu-se de frustração. 

Irritado, desolado… derrotado. Ele era tolo. Um tolo por pensar que havia mudado.

Um idiota completo.

Horas mais tarde, quando as sombras da noite se alongavam pelas paredes e alcançavam o teto, Rose, sentada à beira da cama, tinha o olhar gentil repousando sobre Edwynna. A menina, com os olhos grandes e atentos, ouvia cada palavra da história que sua mãe narrava, sua voz um sussurro que parecia se misturar ao crepitar distante da lareira.

— Ele era um menino arrogante — continuou Rose, com um tom suave e meditativo. — Queria estar acima de tudo e todos, mas, um dia, ele perdeu a pessoa que mais o amava. E, sem acreditar nesse amor, passou anos de sua vida remoendo o passado, ponderando sobre tudo o que deixou de fazer, consumido pelo ódio que preenchia seu coração. Ele enganou seus amigos, traiu aqueles que confiavam nele, e no fim… estava sozinho.

— Por que ele fez isso? — perguntou Edwynna, sua voz vacilante enquanto seus olhos começavam a pesar com o sono. — Ele disse que a amava.

— Talvez ele não soubesse o que era amar. Muitas pessoas confundem o amor com uma palavra bonita, um sentimento passageiro, quando na verdade amar é parte de quem somos. 

Edwynna piscou, lutando contra o sono.

— A mamãe ama o papai? — A pergunta surgiu quase num sussurro. Seus olhos lutavam para permanecer abertos. Ela tentou ler nas feições de sua mãe uma resposta que não fosse apenas palavras.

Rose sentiu seu coração apertar por um instante. A resposta deveria ser fácil. Um simples “sim”. Apenas isso. Mas, então, por que seus pensamentos hesitavam, semelhante ao escuro em meio à luz?

— Sim. — Rose aproximou-se e plantou um beijo delicado na testa da filha. — Eu te amo.

— Eu te amo, mamãe — respondeu, finalmente cedendo ao sono que caiu sobre ela como um cobertor quente.

Com cuidado, Rose fechou o pequeno livro de histórias e, por alguns segundos, admirou a menina adormecida. Ela era tão parecida com sua mãe, e, ao mesmo tempo, tão semelhante a ela mesma. 

— Você demorou — disse uma voz vinda da porta.

Rose levantou o olhar. Timothy estava lá, recostado contra a guarnição da porta, os braços dobrados sobre o peito, enquanto a observava com um brilho sutil adornando suas íris.

— Não seja bobo — retrucou, junto de pequeno sorriso. Ao levantar-se, saiu lentamente, levando a vela consigo.

Fechando a porta com um cuidado, ela deixou o livro e a vela sobre uma estante e se dirigiu à sala, onde o calor da lareira preenchia o ambiente com um conforto que contrastava com o frio que dominava a noite do lado de fora. Rose puxou uma cadeira, sentando-se perto das chamas. Mesmo em noites em que o inverno não castigava com toda sua força, o frio ainda se insinuava nas brechas, arrepiando a pele de quem estivesse desprevenido.

— Você gostou? — Timothy perguntou, movendo-se em sua direção, seus olhos observando casualmente o prato sujo da torta que restara.

— Estava delicioso — respondeu ela, um sorriso brincando em seus lábios. — Vocês fizeram tudo certinho, como eu ensinei.

Timothy, aproximando-se, pousou as mãos sobre seus ombros, os dedos acariciando a parte de trás do pescoço de Rose.

— Fico feliz que tenha gostado. — Sua voz saiu quase em um sussurro, seus dedos deslizando pela espinha dela, provocando um arrepio involuntário que a fez segurar a respiração. Seus toques desceram, lentamente, até alcançar a lombar. — Mas, sabe… — continuou, com um sorriso malicioso. — Você não me disse que estava acompanhada. Ouvi risadas vindo da porta.

— Encontrei Lukas na floresta, por acaso. Ele me ofereceu companhia, e como fazia tempo que não o via, aceitei. Não vi mal algum.

Timothy caminhou para frente dela. — Entendo — disse, curvando-se de repente, seu rosto a centímetros do dela. — Eu só me pergunto se, depois de um dia tão trabalhoso… — Seus lábios se curvaram em um pequeno sorriso. — Não mereço uma pequena recompensa.


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