Ribeira dos Desejos Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 2

Capítulo 16


Dia 5 | Ano 1***

15:40 PM

 

Em meio à serenidade que envolvia o quarto de Rose, Timothy dobrava, em gestos meticulosos, uma camisa entre as demais peças de roupa espalhadas pela cama. O suave sussurro do vento entrava pela janela, trazendo o aroma fresco do campo. Os fios de seu cabelo balançavam levemente, como se a natureza conspirasse para manter aquele momento em calma enganadora.

Era uma rotina que ele já conhecia bem. Rose sempre partia no mesmo horário para acompanhar Edwynna na floresta, orientando-a para que não se perdesse novamente, isso devido aos recentes incidentes. A facilidade com que Rose localizou a menina naquele vasto território era um talento que Timothy achava intrigante, mas que passava despercebido por quase todos.

Quando ele terminou de dobrar a última camisa, o som suave de passos o alertou sobre a presença de Vivian. Ela surgiu à porta, a postura rígida e o olhar desdenhoso para ele.

― Para onde elas foram? ― perguntou, os braços dobrados sobre o peito.

― Para a floresta colher amoras ― respondeu Timothy, sem desviar o olhar das roupas. ― Rose está ensinando Edy a seguir à correnteza para não se perder outra vez.

Vivian o observou em silêncio por um momento, os olhos avaliando o rosto maduro de Timothy, mas livre de barba, ainda jovial.

― Rose aprecia sua companhia ― disse ela, a reprovação e a frustração emergindo em seu tom. ― Você deveria agir mais como marido, e não a deixar sozinha o tempo todo.

Timothy ficou mudo. Ele se ergueu da cama, seguindo para a estante e continuando a tarefa de guardar as roupas, sua mente impenetrável às provocações de Vivian.

― Você a ressente, não é? ― Vivian insistiu, avançando um passo. ― Você se culpa por fazê-la viver uma vida miserável ao seu lado.

Ele soltou um suspiro pesado, acabando com a paz que outrora reinava no cômodo.

― Isso é o que você pensa ― respondeu Timothy, a voz séria, mas contida. ― Afinal, você é a mãe dela. Se esta vida é tão miserável, por que aceitou a proposta de meu pai?

Vivian estreitou os olhos, a provocação ganhando um tom ácido.

― Ele disse que você era um soldado, não um homem incapaz de cortar uma simples lenha!

A raiva cintilou brevemente no olhar de Timothy, mas ele continuou controlado, ainda que suas palavras saíssem afiadas como um punhal.

― Do que tem medo, Vivian? Você deveria ser grata a Rose e a mim por assumirmos a responsabilidade que você abandonou.

Um sorriso malicioso desenhou-se nos lábios dela.

― Grata?! Eu nunca pedi a sua ajuda.

Era a vez de Timothy avançar, sua expressão decaindo ao mais puro desprezo.

― Rose age como uma verdadeira mãe ― disparou, sem parar. ― O que você fez por Edwynna? Pergunto-me… de quem realmente é essa criança? ― Seus olhos fitaram as íris douradas de Vivian. ― Você, ao menos, sabe o nome dele? Por seu descuido, ela nunca saberá a verdade, pois a mãe dela é apenas uma mulher perdida que não consegue se livrar do vício de se entregar por meras esmolas.

Vivian, por um breve instante, vacilou, mas recuperou rapidamente o controle, soltando um riso sarcástico.

― Você deveria se preocupar em arranjar um trabalho, em vez de viver às custas de sua esposa ― disse ela, suas palavras gotejando como mel. ― Você prometeu a ela uma vida de paz e conforto, contudo, está aqui, sobrevivendo com o dinheiro que uma prostituta que se vende para homens famintos por prazer. E, bem, você não é muito diferente. Alguma vez, você disse a ela que recorre a outras camas para satisfazer-se?

— Saia — ordenou, a veia em seu maxilar saltando.

Ela o fitou uma última vez, saindo do quarto e confiante de que, naquela batalha, ela saiu vitoriosa.

Enquanto isso, Timothy franziu o cenho, a verdade cruel e amarga, tomando forma dentro de sua cabeça. Seu braço nunca seria o mesmo; os dias de erguer uma espada, de empunhar uma arma com era mais uma memória distante dos dias que ainda podia lutar por seu país, provar sua honra e mostrar que ainda era um homem viril.  Ainda assim,  segundos antes de afundar em tais pensamentos, uma voz familiar quebrou o silêncio.

― Papai! Papai! ― Edwynna irrompeu no quarto, seu sorriso iluminando o ambiente, carregando consigo a inocência que ele tanto prezava.

― Oi, querida ― Timothy respondeu, pegando-a nos braços, sentindo o alívio de sua presença.

Do outro lado do quarto, Rose permaneceu à porta, observando a cena. Contudo, havia algo que a chamava para fora.

― Rose, entre ― pediu Timothy, mas ela hesitou.

― Eu já volto ― disse ela, com um olhar distante.

― Ei, é…   Amanhã… você estaria livre? Quero levá-la a um lugar.

Ela sorriu, em um gesto quase imperceptível.

― Por mim, tudo bem. Volto logo.

― Não demore. Não queremos perder o jantar, não é? ― Olhou para a menininha, as madeixas meladas de suor, como se tivesse corrido uma maratona.

― Se apresse, mamãe!

Rose acenou e se foi, seguindo seu caminho usual pelas tábuas do alpendre. Seus passos, tão familiares, logo a levaram para longe de sua vista, adentrando a floresta que ela conhecia tão bem.

Timothy abaixou Edwynna e olhou para ela.

― Onde estão às amoras que vocês colheram?

― Estão do lado de fora, em um jarro! ― falou ela, entusiasmada.

Timothy saiu até a porta, conferindo o jarro que realmente estava lá, cheio de amoras. Mas algo dentro dele permaneceu inquieto.

― Onde… está a cesta que ela levou para colhê-las?

― Mamãe deixou na floresta. Ela disse que ia voltar para buscá-la, porque a quantidade de frutinhas não era o suficiente para fazer uma torta.

A cesta, que Rose esqueceu, não era exatamente a que o Timothy imaginou. Ele lançou o olhar em direção à sala, notando o item em questão sobre a mesa. A dúvida pairou no ar, mas, de qualquer forma, não havia motivo para se preocupar.

― Quer me ajudar com o jarro? ― perguntou ele, tentando afastar a inquietação.

― Quero! ― respondeu Edwynna, dando dois pulinhos, como uma coelhinha animada. ― Vamos fazer uma torta de frutinhas!

Ele sorriu para a menininha, cuja presença irradiava uma paz quase inalcançável, dissipando quaisquer sentimentos sombrios que sempre retornavam para atormentá-lo.

― Então, mãos à obra!

Na penumbra da floresta, Rose avançava com passos leves, seus dedos roçando os galhos baixos, revivendo memórias adormecidas. Cada passo a transportava de volta à infância, para os dias em que explorava aquela vasta e misteriosa natureza. Mas hoje, algo diferente pesava sobre seus ombros. A dúvida a corroía por dentro. Onde estava a menina que corria livre, como se cada pedra e cada árvore fossem parte de sua alma? Ela conhecia cada trilha como a palma de sua mão, instruída desde pequena a nunca se perder, não importava o quão profundo se aventurasse. 

Seus olhos repousaram sobre as rochas da ribeira, o som suave, porém poderoso, da água a se chocar contra as pedras ressoava ao redor. Pequenos peixes nadavam nas sombras das folhas que balançavam suavemente ao vento. Tudo parecia tão distante. Sonhos, desejos, esperanças, tudo pertencia a uma vida que ela mal podia alcançar, uma época em que seus anos de inocência lhe permitiam vagar em liberdade por terras intocadas.

Ela parou, pensativa. Estaria esperando por ele, mesmo depois de todos aqueles dias? Rose ainda tentava processar aquele encontro. Depois de tantos anos, seus olhos finalmente encontraram os dele. Ele mudou. Seu corpo estava mais forte, carregando o peso de muitos sentimentos distintos acumulados ao longo do tempo. Sua expressão, antes vibrante, agora mostrava cansaço. As noites insones da guerra pareciam ter roubado sua juventude.

Guerra… ― Claro, ele estava na guerra, e tal realidade passou desapercebida de sua mente. Talvez fosse por isso que ele partiu sem se despedir ― pensou ela, acreditando que o melhor seria ir embora sem olhar para trás.

Sacudindo os pensamentos, ela se lembrou do motivo pelo qual estava ali: a pequena cesta que havia perdido. Embora sempre tivesse cestas reservas, perder aquela, feita com suas próprias mãos e tão recente quanto as folhas que brotavam perto da cachoeira, era inaceitável.

― Onde eu a deixei…? ― murmurou para si mesma, seus olhos vasculhando o mato alto crescido dos troncos retorcidos e até perto da cachoeira, cujo som constante abafava qualquer ruído da floresta.

Rose seguiu adiante, seus passos cada vez mais cautelosos, quando, de repente, um som estridente cortou o ar.

“Bang!”

Um tiro?! ― O coração dela saltou. Seus olhos atentos à área, procurando a origem do som.s antes que pudesse reagir, uma voz masculina irrompeu entre as árvores.

― Conseguiu? ― A pergunta veio de um dos homens. Ao todo, eram três, todos carregando mochilas e armas pendendo de seus ombros. Caçadores?

― Sim ― respondeu outro, erguendo o rabo ensanguentado de uma raposa abatida. O sangue escorria pela pelagem vermelha como fogo.

― Ei, olhem só isso ― o terceiro apontou com o cabo da arma para um objeto no chão.

Rose estreitou os olhos, reconhecendo o item de imediato. Sua cesta, cheia de amoras, estava ali, à mercê deles.

― Parece que não estamos sozinhos ― comentou o homem mais velho, sua barba espessa e ruiva, seus olhos varrendo a floresta com uma desconfiança que gelou o sangue de Rose.

Ela se escondeu atrás de um tronco, respirando o mais silenciosamente possível. Quem são eles? Não reconhecia seus rostos, e, embora fossem caçadores, havia algo de predatório neles que a deixava inquieta. Então, com cuidado, deslizou as botas pela terra, evitando qualquer folha seca que pudesse trair sua presença. Quando já estava longe o suficiente, sentiu-se mais segura, até que, de súbito, esbarrou na presença de outro homem.

O homem estava de costas para ela, urinando nas folhas, alheio à sua proximidade. Contudo, ao considerar que poderia se afastar, o homem virou o pescoço e a viu. Seu olhar demorou apenas um instante para focar nela, antes de subir a calça e de ajeitar o cinto.

― Ah, desculpe ― disse ele, com uma curiosidade desconcertante. ― Está perdida?

Rose congelou, notando a espingarda pendurada ao lado dele.

― Não, me perdoe ― ela tentou recuar.  ― Não sabia que… que estavam caçando. ―, mas percebeu o erro nas próprias palavras.

“Vocês”, escondido nas entrelinhas.  A palavra escapou, e o homem sorriu de canto.

― Então, você já viu os outros? ― Ele deu dois passos na direção dela, e o coração de Rose acelerou.

― Preciso ir ― disse ela, sua voz falhando de leve enquanto dava um passo para trás.

Homens estranhos. Quais eram as suas intenções?

― Espere! ― Ele a seguiu. Num segundo, pensou em tocá-la no braço, todavia parou ao ver o medo em seus olhos. ― Você… não está perdida, está?

De repente, uma voz mais grave ecoou entre as árvores.

― Rony! ― O homem barbudo, o líder do grupo, surgiu da mata, segurando firme a espingarda. ― Pegamos a pestinha… ― Seus olhos encontraram Rose, que permaneceu imóvel, sem saber como reagir. Ele inclinou a cabeça e fez uma breve reverência. ― Senhorita… ― A cortesia em sua voz soava deslocada, quase zombeteira. ― O que está acontecendo por aqui?


2º Volume e retorno de Ribeira Dos Desejos. 

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Príncipe de Olpheia

 



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