Ribeira dos Desejos Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 2

Capítulo 15

Dia 1 | Ano 1***

10:30 AM


Os pensamentos de Asher frequentemente o arrastavam de volta às sombras de sua juventude, às lembranças que, apesar de distantes, ainda queimavam como brasas. Seus antepassados não eram estranhos aos conflitos. Espiões do reino, caçadores habilidosos e aliados do império. Ele se lembrava de seu pai vendendo peles e carnes, enquanto sua mãe, uma mulher de espírito indomável, desafiava as normas de sua época. Ela criara seu próprio sistema de comércio, fornecendo ervas medicinais e fórmulas que auxiliavam as mulheres a evitar gravidezes indesejadas — uma prática ousada que atraía tanto admiradores quanto inimigos.

Durante sua infância, Asher assistia seus pais discutirem, o som seco dos golpes de seu pai contra a mãe reverberando pelas paredes de madeira e por toda casa até que, um dia, ela desapareceu para nunca mais voltar. Com o passar dos anos, ele se perguntava onde ela estaria, se ainda estava viva. Ele preferia acreditar que era apenas mais um órfão naquele mundo brutal, diferente daquela criança à sua frente, de olhar ingênuo e brilhante.

O silêncio entre eles foi quebrado pela voz delicada da menina, que o arrancou de suas divagações. 

— Ouvi minha mãe falando com a tia Hyza sobre um amigo… Você é o amigo da mamãe, não é? 

Era apenas uma garota tola, que poderia imaginar conversas que não existem. 

— Não — respondeu ele, firme. — Eu e a sua mãe não somos amigos.

A menina fez uma careta, desapontada. 

— Que pena… 

— Quantos anos você tem? — perguntou Asher, tentando afastar a conversa de assuntos que o incomodavam. 

— Farei sete! — Ela sorriu, com um brilho nos olhos que parecia iluminar as árvores ao redor.

As palavras da menina caíam pesadas sobre ele, lembranças de Rose voltavam como uma maré inexorável. Asher não queria se envolver, contudo, ela estava ali, presente em cada detalhe da garotinha. Ele a reconhecia nos traços e no espírito inquisitivo. 

Um suspiro escapou de seus lábios antes que ele falasse: 

— Você é esperta, como sua mãe. 

A garota olhou para ele e disse com um sorriso: 

— Você é forte, igual ao meu pai! 

Asher revirou os olhos. Ser comparado ao pai foi um golpe que ele não esperava, e seu estômago revirou com o ultraje. Preferia ser insultado com palavras de baixo calão a ouvir isso.

E enquanto continuavam o trajeto pela floresta, uma voz familiar quebrou a tranquilidade, chamando o nome da menina repetidamente. 

— Edwynna! 

O coração de Asher deu um salto involuntário. Ele conhecia aquela voz. Tinha de ser ela. O corpo inteiro dele se enrijeceu. Por um segundo, o caçador de olhos afiados parecia estar à mercê de algo muito mais avassalador do que qualquer ameaça física. Quando Rose emergiu dos arbustos, seus olhares se cruzaram.

— Mamãe! — exclamou Edwynna, radiante. — Olhe, este é Varlosy, meu novo amigo! O homem gentil me ajudou! — Sorriu, acariciando a crina do cavalo.

Rose congelou ao ver Asher, sua expressão atordoada. Ela estava com apenas uma trança que pendia sobre seu ombro, os lábios entreabertos como se tentasse processar o impossível. Ele estava ali. Real. E, ao contrário dela, a face dele permanecia sem nenhum traço de emoção.

Ele evitou o olhar dela, concentrando-se no animal. 

— Acredito que isso seja seu — disse ele, pegando a menina e colocando-a no chão, mantendo-se afastado. — Não precisa me agradecer. 

Edwynna correu para os braços de Rose, e a mãe, ainda atônita, fitava Asher com a mescla de surpresa e confusão. Seis anos haviam se passado desde o último encontro que lhe despertou sensações que ela se esquecera, como uma torrente que ela não estava preparada para enfrentar.

Rose deu um passo à frente, a voz hesitante. 

— O que está fazendo aqui? 

Ela estudava cada detalhe dele: os pequenos fios de barba, os músculos mais definidos, o cabelo ligeiramente mais longo, e as pequenas cicatrizes quase imperceptíveis que não existiam antes. Ele falava de maneira indiferente, como se ela fosse apenas uma sombra de seu passado.

— Continuo sendo um caçador, mesmo depois da guerra — respondeu ele, sem levantar os olhos.

A frustração transparecia no rosto dela. 

— Asher… — a voz falhou. Ela estava feliz, assustada e até mesmo um pouco constrangida. Era realmente ele, diante dela. — Onde esteve? Eu cuidei da cabana… Todos os dias, abri a porta, esperando que você voltasse e dissesse que tudo estava bem.

Ele permaneceu em silêncio, focando no cavalo, enquanto ela prosseguia. 

— Estou feliz que esteja bem…, mas você sumiu. Eu… não sabia o que fazer. 

— Estou morando com Lukas, mas é provisório. Não pretendo ficar na vila, nem mesmo com a cabana — disse, conferindo a bolsa na traseira do animal.

O choque foi instantâneo. 

— O quê? A cabana é sua! 

— Não mais. — A resposta foi rápida.

Rose se aproximou, recusando-se a aceitar a decisão dele. 

— Não seja tolo! A cabana é a sua casa! Asher, eu não posso ficar com ela.

Asher soltou um riso amargo, finalmente a encarando. 

— Eu entreguei a cabana porque não queria reviver o passado. Se desejar destruí-la, queimá-la… não me importo. Faça o que quiser.

Ela andou lentamente na direção dele, as folhas sendo amassadas pelas solas das botas.

— Eu estou feliz que você esteja bem, mas… não irei fazer isso. Por favor, não fuja de novo. 

A resposta dele foi um riso seco. 

— Fugir? Isso vindo de você? É algum tipo de piada? 

Ela franziu a testa.

— O que quer dizer com isso? — perguntou ela, a dúvida se transformando em uma pontada incômoda que começava a apertar seu peito.

Asher lançou um último olhar para a menina, ciente de que a conversa que estava por vir não era apropriada para ouvidos tão delicados. Uma discussão, após longos seis anos? Ele pensou com indiferença, tentando forçar o desinteresse sobre tudo que envolvia Rose. Ainda assim, seus olhos a buscavam, quase como se traíssem a própria vontade.

Por outro lado, Rose o observava com atenção. Indecisão, dúvida, incerteza — tudo isso misturava-se em sua mente. Será que ele ainda a culpava pelo que havia acontecido? Eram sentimentos juvenis, nascidos de corações imaturos, e que, agora, pareciam insignificantes.

— Posso te fazer uma pergunta? — a voz dela soou hesitante, sem muita esperança de que ele se interessaria em conversar. Eles não eram mais os amigos de antes, apenas estranhos, seguindo caminhos diferentes.

— O quê? — A fala dele veio curta e apática.

— Por que guardou a coroa de flores?

Ela esperava um silêncio longo, talvez um olhar perdido, mas Asher, com uma expressão dura e fria, respondeu:

— Porque eu esqueci de jogá-la fora.

Ela piscou, seus olhos desviando-se da face dele. Não exatamente a resposta que ela esperava; estava surpresa pela crueza dela. E, mesmo assim, ela deu um sorriso triste, como se já soubesse que as coisas não poderiam ser como antes.

— Entendo — disse, suas palavras, em parte, abafadas pelo som das folhas que farfalhavam ao vento.

O que esperava? Que ele dissesse que a coroa era uma lembrança preciosa de uma amizade que ela, por tanto tempo, acreditou ser eterna? Eles já não fluíam como a água de um riacho em um único curso. De um lado, ele conferia a sela de Varlosy; do outro, Edwynna tocava de leve a saia de Rose.

Tudo havia terminado.

— Bem, eu preciso ir — falou Rose, segurando suavemente a mão da filha.

— Tchau, senhor! — Edwynna acenou animada, ao tempo que a mãe, sem olhar para trás, caminhou pela trilha.

Asher apertou a guia do cavalo, seus olhos fixos nas duas figuras que se afastavam, desaparecendo nas sombras da floresta. Em silêncio, ele umedeceu os lábios, deslizando os dedos pela testa, sentindo o desconforto crescer. Rose ainda mexia com ele, mesmo depois de tanto tempo.

Sua respiração tornou-se mais pesada, e ele sentiu a raiva subindo com a desilusão que não conseguia nomear. Ele era um homem que já havia matado a sangue-frio no campo de batalha, mas, entre todos os horrores que enfrentara, aquela única mulher ainda conseguia atormentá-lo de maneiras que ele jamais imaginaria.

— Merda! — ele xingou, a mão passando pelos cabelos em um gesto de puro desespero.

Era ele o problema. Estava preso em sentimentos que deveriam estar mortos há anos, em dúvidas que, a cada segundo, corroíam sua alma. Será que uma única decisão, tomada anos atrás, mudaria o rumo de sua vida? Entretanto, de qualquer forma, ele sabia que tudo era temporário. Rose havia surgido novamente para provocá-lo, para testar sua paciência, disso ele tinha certeza. Mesmo assim, Asher, montado em Varlosy e guiando o cavalo pelo caminho contrário, estava decidido a enterrar tais sentimentos. Ainda que isso lhe custasse ser arrastado para a cova pelo resto de seus dias.


2º Volume e retorno de Ribeira Dos Desejos. 

obs: Asher é um louco, ou apenas um homem apaixonado?



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