Volume 2
Capítulo 14
Dia 1 | Ano 1***
10:00 AM
Caminhando pela trilha que cortava a floresta, Asher deixou-se cair à beira da ribeira, observando a água cristalina vagueando entre as rochas afundadas. Havia muitos sons: desde a queda da cachoeira próxima, o farfalhar das folhas que esvoaçavam seus cabelos e o canto harmonioso das aves. Era uma melodia diferente do trovejar das bolas de canhão que ecoava em sua mente. Ele se lembrava da sensação do solo estremecendo sob suas botas, da arma de fogo firme em sua mão, e do barulho seco dos disparos que preenchiam o ar ao comando do líder.
— Atacar! — bradava o comandante, enquanto dezenas de soldados emergiam de todas as direções.
Asher podia sentir o caos em torno de si, soldados surgindo como uma maré, cercando seus inimigos. Seu olhar percorria o campo de batalha, homens que lutaram ao seu lado agora caíam, abatidos sem piedade. Mas, no meio do alvoroço de sangue e fogo, ele procurava um rosto familiar. De repente, avistou os cabelos castanhos de Lukas, lutando desesperadamente pela vida.
Seus olhos se arregalaram antes que pudesse se dar conta, suas pernas já o levavam em disparada. As vozes, gritos e lamentos ressoavam em seus ouvidos quando viu Lukas ser atingido por um chute violento no estômago, a arma de cano longo caindo ao seu lado.
— Lukas! — rugiu Asher, já próximo, levantando a arma e disparando duas vezes sem hesitar contra o inimigo. O estalo seco dos disparos reverberou no ar, fundindo-se ao eco dos gritos ferozes da guerra.
Todavia, a memória trouxe-o de volta à realidade, como se acordasse de um pesadelo recorrente que voltava para assombrá-lo. Ele se atentou à quietude da floresta, à estranha sensação de paz que seus ouvidos, após longos anos, se esqueceram.
— Obrigado… — murmurou Lukas na memória, apertando a mão de Asher. Ele tentou endireitar-se, mas uma fisgada na barriga o fez parar. — Argh! Merda… — Ele olhou para a camisa e viu a mancha de sangue que se espalhava lentamente.
— Precisamos sair daqui! — exclamou Asher, seus olhos seguindo os homens lutando, enquanto uma tempestade rubra se aproximava. Era o sangue de seus companheiros que inundava o chão lamacento.
— Não podemos fugir! Esqueça! — Lukas o empurrou. — Vai, eu não vou durar muito.
— Cala a boca! — esbravejou Asher, erguendo-o. — Nem que eu mesmo tenha que matá-lo no futuro, você não vai morrer aqui! — Ele apoiou o braço do amigo sobre o seu.
— Não há ninguém esperando por mim… — A expressão de Lukas suavizou, encarando o amigo com um olhar conformado. — Asher, você tem que lutar.
— Mandei calar a boca, porra! — A mente de Asher fervilhava, branca como um papel. Ele puxou Lukas até uma rocha afastada, longe da batalha, mas o grito repentino do amigo o fez virar de imediato.
— Asher!
Num reflexo instantâneo, o corpo de Asher se moveu. Ele se esquivou e, em um movimento fluido, virou a arma e disparou contra o inimigo que avançava. O sangue respingou sobre ele, mas seus olhos mantiveram-se fixos em Lukas, que gemia de dor. Ajoelhando-se ao lado dele, Asher levantou o trapo ensanguentado para examinar o ferimento.
— Parece que foi de raspão — disse, aliviado. Ele rasgou um pedaço de tecido de sua própria roupa, lamentando que, há gerações, seus antepassados se cobririam de armaduras pesadas, e agora estavam reduzidos a trajes finos e frágeis. — Aperte isso. Voltarei logo!
— Onde você pensa que vai? — perguntou Lukas, desconfiado, observando a expressão tensa do amigo.
Asher repôs o estoque de balas e pólvora, o brilho de seus olhos esvaindo-se de suas íris ao recarregar a arma, num curto som da trava do instrumento.
— Faz tempo que não caço. — A voz de Asher era sombria. Seu olhar era de um predador, que Lukas reconhecia tão bem.
Dois anos haviam passado desde que as batalhas se intensificaram. Reis contra países, príncipes contra herdeiros, e, no fim, eram eles que lutavam. Era uma guerra com mais de um século de história, e nem mesmo o governante mais astuto, gênio de sua geração, conseguira frear a ambição voraz de seus sucessores.
— Você é um idiota — riu Lukas, com a voz fraca. — Tente não se matar.
Asher conferiu o próprio reflexo no rosto, reparando nos pelos ralos e finos de sua barbicha, que ainda iria demorar para tornar-se a barba digna de um lenhador das redondezas, talvez de um velho ancião. De qualquer forma, ele não se importava com sua aparência. Ele tocou na bolsa de caça, pegou um pano enrolado e desembrulhou um pão. As mangas de sua camisa estavam dobradas até os cotovelos, e julgando pela rapidez com que devorava o lanche, parecia delicioso.
Seu corcel aproveitou o momento de descanso enquanto a água fluía sob as rochas, e Asher lançou alguns pedaços de pão para os peixes, agitados pelo alimento que caiu do céu. Contudo, de repente, ele ouviu um som distinto da mata. Era o choro de uma criança perto dele.
Desconfiado, Asher deu não mais que dez passos em direção à árvore e deparou-se com uma menina.
― Você está bem?
― Eu quero a minha mãe… ― A voz frágil da menina se perdeu no ar enquanto ela abraçava as pernas, agachada no chão úmido da floresta.
O ambiente ao redor não era um lugar para uma criança. A densa vegetação, as sombras que pareciam se mover por conta própria, e os ruídos sussurrantes do vento entre as árvores criavam uma atmosfera ainda mais temível do que o som assombroso de uma Nortunália cantando nas madrugadas gélidas.
Asher a observava em silêncio, seu olhar afiado percorrendo a menina de cima a baixo. Cada detalhe, desde os cabelos de cor amadeirada até os olhos verdes úmidos que espelhavam a vegetação ao redor, revisitou memórias indesejadas. As semelhanças eram inegáveis. Ele tentava encontrar uma justificativa para simplesmente se afastar e deixá-la ali, mas o som do choro infantil era irritante demais para ser ignorado.
Em um suspiro resignado, ele estendeu a mão.
― Você entrou na floresta sozinha?
― Não, a mamãe estava comigo ― respondeu ela, levantando os olhos brilhantes de lágrimas na direção dele.
― E por que se afastou dela? ― perguntou ele, seu tom repreendendo-a.
― Fui atrás de um esquilo… e me perdi ― murmurou, encolhida.
Ele fez uma longa respiração, dedilhando o pescoço e cansado após o longo dia. Aquela situação estava longe de ser a ideal para ele.
― Faz muito tempo que você está perdida?
A menina, sem dizer mais nada, segurou a mão dele. Asher começou a guiá-la pela floresta, seus passos largos e cuidadosos, durante o tempo ela tropeçava nas raízes e pedras.
― Você conhece minha mãe? ― ela questionou com uma inocência que o fez hesitar.
Asher não respondeu de imediato. Como ele poderia! A lembrança da mulher invadiu sua mente com a força de um vento gelado, revivendo sentimentos que ele havia enterrado há muito tempo. Memórias de um amor que nunca foi seu, de uma dor que cortava mais fundo do que qualquer ferida de batalha.
Ele apertou o maxilar, afastando os pensamentos.
― Irei ajudá-la a encontrar sua mãe ― disse finalmente, sua voz séria.
A menina estudou o homem gigante ao seu lado por um momento, como se tentasse decifrá-lo. Ele era enorme, com ombros largos e barba rala, e ainda assim, havia uma gentileza em seus gestos, uma calma que contrastava com sua aparência intimidante.
― Qual é o nome dele? ― ela apontou para o cavalo, fascinada com o animal.
Asher pegou a guia do cavalo, lançando um olhar breve para a menina.
― Varlosy ― respondeu com simplicidade.
― Varlosy? Que nome bonito! ― A garota sorriu, um sorriso radiante e sincero, que parecia dissipar a escuridão ao redor.
Um sentimento antigo e estranho percorreu o coração de Asher. Uma nostalgia dolorosa, como se ele estivesse revivendo um pedaço de seu passado. Ele balançou a cabeça e tentou afastar a sensação.
― Você gosta de cavalos? ― Estava curioso com tal interesse.
― Meu pai cuida de muitos cavalos, mas ele nunca me deixou subir em nenhum. Ele diz que é muito perigoso.
Asher, contrariando qualquer senso comum que possuía, esboçou um sorriso discreto. Ele sabia que não deveria, mas algo dentro dele o impulsionou a desobedecer às regras.
― Varlosy gosta de crianças. Acredito que ele gostou de você ― comentou, lançando um olhar de relance para a menina.
Os olhos dela brilharam de imediato, mas desta vez, de alegria.
― Eu posso subir nele? ― indagou ela, com uma mistura de esperança e surpresa.
Ele não tinha o direito de permitir, mas naquela situação, ele não se importava com o que os pais dela pensariam. Logo, ele levantou a menina e a colocou cuidadosamente no lombo do cavalo.
― E então? ― Ele observou sua reação.
— Uau! ― A menina acariciou o cavalo com delicadeza. ― Ele é tão bonito! Forte e gentil, como o papai!
Asher revirou os olhos, um tanto incomodado pela comparação, mas preferiu não comentar. De qualquer maneira, o cavalo era o meio mais rápido para tirá-los daquela floresta.
― Onde foi a última vez que você viu sua mãe? ― Asher perguntou, seus olhos sempre atentos à trilha que se estendia à frente.
― Nos arbustos de amoras, perto da estrada.
― Ótimo, vou levá-la para a sua casa.
― O senhor sabe onde eu moro? ― Ela o encarou, seu olhar vagando entre o homem desconhecido e o corcel adorável.
― Sim, eu sei.
A garota olhou para ele por um bom tempo. Ele aparentava conhecer sua família, e sua aparência condizia com a descrição de um comentário fugaz que sua mãe fez um tempo atrás. Então, com a naturalidade que apenas uma criança poderia ter, disse:
― O senhor é o dono da camisa que a mamãe gosta de usar para dormir?
Asher congelou no lugar, o choque transparecendo em seu semblante. Ele virou a cabeça lentamente para encará-la, seu rosto rígido de surpresa.
― O quê? ― expôs, quase como um sussurro.
Ele tentava processar as palavras da menina. Seus olhos estavam parcialmente arregalados, e pela primeira vez em muito tempo, Asher sentiu que o controle que ele tanto prezava estava escapando por entre seus dedos, estes, apertando a guia de Varlosy.
2º Volume e retorno de Ribeira Dos Desejos.