Volume 2
Prólogo: A era dos pesadelos
Meus olhos abrem devagar. Com o mover dos lábios, névoa se condensa na minha frente. Borboletas, contendo galáxias em suas asas e orbes brilhantes na ponta de suas antenas, cintilam no ar, batendo-as ao passo que soltam um brilho negro e etéreo, voando sem parar até o fim do corredor infinito.
Sem pensar, sem sentir, me ponho a segui-la. Os passos estão duros, travados. Não sei se é por causa do frio ou da sensação inquietante que sinto desde que cheguei ali. Fazia quanto tempo? Quantos anos se passaram para me fazer esquecer a sensação?
Uma torrente negra se esgueira às minhas costas; uma gigantesca sombra que ondula e se move a cada passo, a cada movimento meu.
Jane, a Obscura.
Isso significa que esse lugar está longe do alcance do mundo. Sim, deve ser isso. É assim que eu me lembro desse frio e melancólico lugar. Mas ao mesmo tempo, um refúgio para mim.
Estou quase alcançando as altas portas duplas de carvalho ornamentado. A borboleta que vi já desapareceu, deixando para trás apenas uma amostra de sua graciosidade astral.
Meu hálito se condensa em nuvens maiores e densas conforme me aproximo da sala principal. Meus dentes trincam discretamente, meus poros se fecham e a singela presença de Jane faz o ambiente penumbroso parecer ainda mais escuro e triste. Minhas mãos trêmulas alcançam as maçanetas.
As dobradiças da porta gritam, o som ecoando por todo aquele salão ao anunciar minha chegada. A única luz de toda aquela imensidão recaia sobre uma mesa de pedra retangular, marcada com símbolos geométricos nas laterais. As pontas da mesa lembram torres altas de um castelo e o centro, talhado com linhas e formas e desenhos, revela um mapa.
Um mapa para o que o coração e o desejo de quem quer que o utilize possa ser guiado até seu destino. Um mapa para guiar ela pelo Mundo dos Sonhos até a capitulação de seu plano.
— O menino prodígio chegou! Hihi! — Uma voz feminina e sedutora exclama das sombras.
— Enrico.... chegar? — Outra, mais grave e gutural, acompanhou a primeira.
— Deve estar cansado depois de ser surrado pelo ex-amigo — pontua uma voz jovem e enérgica, com claro escárnio.
— Deixem disso. Não esqueçam de que foi ele quem matou um dos Executivos da Mandala — uma voz adulta e comedida repreendeu. — E não qualquer um. Foi Charles Winston.
— Bah! Era um velho caduco que se esqueceu de morrer. — Uma mulher de aproximadamente 20 anos, de corpo escultural e poucas roupas — quase nenhuma — surge das sombras, montada no ombro de seu golem de puro músculo, contido em uma camisa de força. — Eu teria lidado com ele facinho, facinho!
— Ou ele teria te dissipado igual a um pesadelo comum, Filis — alfineta a voz do menino em meio a gargalhadas.
— Não enche, Yura! Mesmo um fóssil daqueles teria sido capturado pelo meu charme.
— Ninguém... encostar em Filis. — O monstro de mais de 3 metros, batizado de Juggernaut, grunhe enquanto baba escorre das barras de sua máscara.
— Já vão começar vocês dois? Quando vão parar de se comportar como duas criancinhas?
— Z, para de dar uma de papai agora! Não tô com saco pra isso!
— Olha ela! Tá toda putinha! Ah... espera. Ela é uma puta mesmo — Yura gargalha alto.
Filis rilha os dentes e um chicote, com tachões de metal negro brilhante, surge na mão dela. Os olhos brincalhões de Yura se estreitam, tornando-se ameaçadores.
— Quer vir aqui pra ver o que a “putinha” pode fazer?
— Cai dentro, megerazinha de terça.
— Querem parar?! Quando a Madame chegar, vocês serão duramente repreendidos! — disse Z, a voz alta e controlada exalando autoridade.
— E aí, conseguiu alguma informação de útil para nós, ô menino dourado? — Outro homem surge das sombras.
De aspecto selvagem, com tantos pelos no corpo quanto músculos trincados, ele ocupa seu lugar à mesa. Seu olhar é agressivo e bestial. Caninos proeminentes escapam de sua boca. A única coisa que deixaria qualquer um minimamente à vontade perto desse cara é seu jeito largado e preguiçoso.
— Ah sim, Garuda — outra pessoa responde por mim. — Enrico e Jane se saíram muito bem no experimento. Os resultados foram satisfatórios.
De repente, todos, até mesmos os infantis Yura e Filis, tomam seus lugares em silêncio e postura. Garuda se arruma na cadeira de pedra, pousando as duas mãos robustas e peludas sobre a mesa de pedra. Filis se senta como uma princesa que julgava ser, ocupando seu lugar na frente de Garuda e Juggernaut permanece de pé atrás de sua cadeira.
Yura se senta de qualquer jeito, as duas pernas sobre o assento de pedra e os braços cruzados sobre elas enquanto um sorriso assustador de orelha a orelha preenche seu rosto. E por fim, Mr. Z se senta com postura e classe em seu lugar, do lado esquerdo da mesa, de frente para mim. Jane se posiciona atrás de mim, como minha sombra.
E na cabeceira da mesa, entre duas torres altas que são as arestas da bancada de pedra branca transcendental, está Excella. Sua presença faz o ambiente já frio, ficar praticamente glacial. Suas sombras esgueiram cada canto da mesa e dos assentos de pedra, observando cada um dos presentes com aqueles olhos vermelhos.
Tal presença pode ser até mesmo equiparada a de um buraco negro. Nada escapava dela. Felicidade, esperança, luz... tudo é engolido por suas sombras, esmagado até que não sobre nada. Sinto que até mesmo o mundo poderia sucumbir à suas sombras se assim ela desejasse.
Os olhos de Excella flutuam sobre todos na mesa. Um ar de satisfação enigmática preenche sua expressão.
— Imagino que saibam exatamente o porquê de eu tê-los convocado depois de tanto tempo — começa ela, pondo as duas mãos sobre as torres que margeiam a cabeceira da mesa. — Eu falei que, durante esse tempo, teriam a chance de se fortalecerem e entrarem em contato com o “Oru interior” de vocês.
Ninguém ousou falar. Yura cantarola enquanto Filis torce os lábios em uma careta de raiva. Mr. Z bufa.
— Vejo que não desperdiçaram tempo. São praticamente Orus completos, com exceção de Enrico.
Não pude evitar encolher a cabeça. Excella solta um risinho ao perceber a minha reação e emenda:
— Mas está em um ritmo excelente e tornará sua Jane um Oru muito em breve.
— Agora que conseguimos, vai dar a real missão para nós? — Z ousou perguntar.
A mesa começa a brilhar com uma luz cálida e fria. Os talhos ao centro se redesenham, mudando as posições, tamanho e largura. Aos poucos, uma imagem aparece ao centro da mesa.
A imagem de Calebe e seu persona, a samurai Musashi.
— Quem são esses aí? — Yura pergunta, inocente.
— Até que é bonitinho — comenta Filis, mordendo o mindinho.
Juggernaut solta um grunhido rouco de desaprovação. Me mantenho em silêncio e Mr. Z parece notar minha inquietação diante da imagem formada, mas se finge de doido.
— Esses dois... — retoma Excella. —... são o motivo da EXISTOR ter sido criada.
Os olhos de todos — exceto os de Juggernaut porque não dava para ver — se arregalaram em surpresa e interesse. Até mesmo eu.
— Então esse é o tal experimento de que tanto falava? A semente? — pergunta Garuda.
— Isso mesmo. A semente enfim germinou e seu poder está florescendo cada vez mais rápido a cada dia — diz Excella, a voz extasiada. — Dia mais, dia menos, eles irão me proporcionar meu sonho. Um sonho de anos e anos de busca e pesquisa incessante.
— E então, o que está querendo de nós é...?
— Minha mais bela criação está com a Mandala agora. — Os olhos de Excella se tornam assustadoramente sombrios. — Assim que Calebe descobrir a verdade sobre si e seu persona, se tornará uma verdadeira barreira entre mim e meu sonho. E a missão de vocês... — A mesa se redesenha novamente, dessa vez mostrando a sede da Mandala em São Paulo. — É trazê-lo para mim.
— Só isso? — Filis cruza as mãos atrás da cabeça e as pernas, sobre o tampo. — Pensei que fosse algo realmente difícil. Quer que façamos isso agora?
— Devido à nossa revelação... — Excella olha de soslaio para mim. — e às ações de Enrico, a Mandala está se reorganizando em sua matriz. Todos os Executivos estarão lá, o que inviabilizará que o capturem por enquanto.
— E o que tem? Somos Orus. Pegamos o que quiser e quando quisermos, né? — retrucou Yura.
— Não pensei que diria isso, mas concordo com ele — diz Filis, cruzando os braços. — Se alguém ficar no nosso caminho, é só a gente matar.
— Aprecio a confiança e a disposição de vocês, minhas crianças, mas se subestimam os Executivos da Mandala, são mais idiotas e ingênuos do que imaginei.
Os dois ficam com os olhos piscando e a cara tremendo e se calam. Mr. Z pousa a mão na testa. Garuda cospe e Juggernaut continua grunhindo como um porco com dor de barriga.
— Por isso, a EXISTOR irá sair oficialmente das sombras. Vamos dividí-los, cerca-los e encurrala-los. Quando pensarem ter vantagem, iremos destruir a esperança frágil deles bem diante de seus olhos. Quando fizerem um movimento, estaremos a dois de distância à frente. Atacaremos onde são mais fracos e em várias frentes.
Excella mostra uma imagem que flutua sobre a mesa. Centenas... não, milhares de pesadelos engaiolados, juntos. Bestas selvagens, de vários formas e tamanhos e propriedades apenas esperando para serem libertadas e espalhar o caos no Mundo Desperto.
O que ela pretendia fazer com tantos pesadelos juntos?!
— Meus bichinhos já esperaram demais. — Excella se levanta, abrindo os braços. — Então essa é a missão de vocês. Tragam Calebe e Musashi para mim. Espalhem a tristeza, o medo, o caos e a morte a todos que ousarem ficar contra a EXISTOR.
— Isso aí! — exclama Yura, pulando do assento de pedra.
— Vou fazer todos eles conhecerem meu charme fatal! — Filis se levanta deslizando os dedos finos demais sobre as curvas exageradas.
— Juggernaut seguir Filis — A gigante montanha de músculos se contorce dentro da camisa de força.
— Sim, Madame. Às suas ordens — responde Mr. Z com uma reverência cordial.
— Tá, tanto faz. Se eles me derem uma boa luta, já vou estar satisfeito. — Garuda se levanta preguiçoso do assento.
Me levanto também, mas enfim tomo coragem para falar.
— Excella.
— Pois não, Enrico?
— O que vai fazer com Calebe?
...
— Por que, menino prodígio? Tá preocupado com o ex-amigo? — Filis questiona.
— Creio que isso não diga respeito a você, Enrico — disse Mr. Z em reprovação.
Excella fez um sinal para se calarem. Ainda bem que ela toma a iniciativa, ou eu mesmo teria feito a Jane fazer isso por ela. Não importa se eles são ou não a pior espécie de pesadelo que existe.
— Só posso dizer que ele é uma peça fundamental para meu plano de unir os dois mundos. Mas lhe asseguro, minha criança... — Sua mão gelada e sombria acaricia meu rosto. — Que ainda terá sua vingança por seu amor. E mais cedo do que imagina.
Suspiro e concordo com a cabeça.
As sombras dela se espalham por todo o salão, criam uma abobada negra que poderia cobrir o mundo inteiro em uma torrente obscura e sussurrante. A sombras nos encobrem em uma bolha e densa, fazendo todos ali tremerem.
Sua voz etérea oscila por todo o espaço, como se ela estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo, como se ela estivesse além do espaço e do tempo. Os olhos piscam e irradiam uma luz vermelha criando buracos negros que serviam como portais.
A voz daquela que carrega a escuridão consigo conclui, dizendo sonoramente:
Agora... proclamo, oficialmente, o início da era dos pesadelos!
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Notas do autor:
Olá sonhadores! Sentiram minha falta? Finalmente começando a parte II dessa webnovel incrível que estou gostando muito de escrever e espero contar com o engajamento de vocês para tornar essa experiência a melhor possível.
Só passando para avisar que os capítulos serão postados na quarta-feira e nos domingos (Mas aí avisarei aqui se não tiver ou for passar para um dia diferente). E também avisando que as notas sobre referências e termos a serem explicados ficaram aqui também.
Dados os avisos, espero que gostem da história. Nos vemos no próximo sonho! <3