Volume 1

Capítulo 29: Até esse dia chegar

 

E-e-estou paralisado. Está difícil até de respirar, como se até meus pulmões não fizessem nada além de tremer. Sequer consigo fechar o punho. Que presença é essa que está diante de nós? Tão majestática, tão terrível, proibida...

É diferente de qualquer coisa que tenhamos enfrentado antes. Além de pesadelos, personas...

Do pilar negro igual obsidiana, contornos de uma figura feminina se desenham gradualmente, se libertando da estrutura. A escuridão parece reverenciar quem quer que fosse que estivesse se libertando daquela estrutura obscura.

— É... o verdadeiro Oru! — arqueja Nádia, suando frio.

Ela está amarela de medo. O único sobrevivente de sua aparição, o cosplay de Chapolin, está ofegante. E é quando percebo que foi embora metade de seu corpo. O que sobra está translúcido e se desvanecendo.

— Erick?

— Lena... Urso... como pôde?!

— Erick, pelo amor de Deus, seja lá o que esteja querendo fazer, se acalme. — Nádia tenta dissuadi-lo.

— Me acalmar? ME ACALMAR? ESSA COISA MATOU MEUS AMIGOS!

— Ei! Não faz isso! — grito, mas é em vão.

Martelinho Martelão: MartelAUMENTAR!

Ele gira o martelo gigante, mirando a base do pilar onde a figura feminina se delineava, se formava. No entanto, seu ataque sequer chega a acertar. Nem mesmo chega perto disso.

Antes disso, o meio corpo de Erick é amassado abruptamente no meio do ar como um mosquito sendo esmagado por duas palmas invisíveis. Seu martelo é destruído instantaneamente e então, as sombras vivas que cercam o pilar se encarregam de terminar o serviço.

Diferente das sombras de Jane, a Obscura, aquelas são especialmente terríveis; de um preto tão profundo que até mesmo a luz era consumida, os ramos não são tentáculos, mas sim garras. Mãos. E elas possuem olhos escarlates por toda a extensão.

Além de serem mais rápidas, mais precisas e mais letais. Erick não teve chance algum antes de ser completamente esmagado.

— Ná-Nádia... foi mal. Tô... caindo fora.

E então a forma de seu persona se desfaz de uma vez, assim como o que sobrou de sua arma. Sashi, no quesito de distância daquilo, é a próxima.

— Sashi! Sashi, sai daí!

Ela me encara, parecendo nervosa. Seu olhar me diz que não conseguiria escapar de lá, mesmo se tentasse.

Merda! Merda, merda, merda!

— Foi um bom experimento. Ainda não alcançou seu verdadeiro potencial, mas paciência.

Do pilar surge uma mulher alta e magra, lembrando o persona de Enrico, mas sem as suturas e marcas profundas de expressão. Usa um vestido tão negro quanto as próprias sombras que o formam, um decote de canoa generoso que proporciona uma visão ampla de seus... atributos femininos.

O vestido se molda perfeitamente à ampulheta que é seu corpo; lindo, provocativo, curvas sedutoras e fatais. Longos cabelos negros e lisos se espalham atrás dela, e se desbotam como névoa sombria logo depois. Uma aurora boreal em tons escuros tremeluz de leve ao seu redor.

Em seu rosto, olhos carmesins cruéis, como os que percorriam suas sombras, nos fitam com superioridade e desdém, fazendo um par perfeitamente maligno com os lábios negros e carnudos.

— Não pode ser... ela não pode estar aqui — Nádia balbucia para si mesma, seu rosto contorcido em pânico.

— Quem? — Minha voz parece um sopro de ar.

E-Excella.

Minha fala parece chamar a atenção da rainha sombria. Seus estreitos olhos escarlates se grudam em mim com interesse.

— Olha só, o que temos aqui. Você que derrubou Enrico? — pergunta ela com um sorriso felino.

Minha falab não sai. Eu abro a boca na intenção de dizer algo, mas estou mudo. O medo é tanto que sinto que as cordas vocais atrofiaram. As finíssimas sobrancelhas dela se arqueiam com curiosidade e malícia.

— Ah, sim. Agora estou lembrando. Você é o filho da Márcia?

Meus olhos se arregalam tanto que parecem que vão voar da cara ao ser mencionado o nome da minha mãe. Essa mulher terrível que está a nossa frente conhecia ela? Como é possível? Minha mãe é só uma dona de casa comum e aposentada.

É definitivamente impossível que ela saiba que essas coisas existem.

— Ohoho... não precisa responder. Seus olhos são iguais aos da sua mãe. Eu olho para você e a vejo mais jovem.

— Calebe! — Sashi recupera sua espada e alguns centavos de força, pulando na minha frente.

Uma expressão viperina toma conta do rosto da mulher que atendia por Excella, a palma da mão repousada sobre o rosto perfeito como se estivesse rindo diante de brincadeira de criança.

— E devo supor que essa é seu persona. Que espírito de luta incrível ela tem.

— Posso fazer valer seus elogios e lhe dar uma amostra do que posso fazer.

Duas mãos gigantes agarram Enrico e Jane, erguendo-os no ar, sem que Excella fizesse qualquer comando para isso. Ela passou a mão delicada sobre as mechas de um escuro brilhante e esboçou um sorriso maldoso.

— Eu adoraria brincar com vocês, mas no estado atual, não teria graça alguma — disse, com desdém. — Só vim buscar meu menino e vou embora.

— Seu menino? — Nádia repete, surpresa.

— Você não vai levar o Enrico a lugar nenhum! — Finalmente consigo gritar algo. Um calor percorre meus músculos e a descarga de adrenalina me permite levantar, mesmo com a dor.

O rosto de Enrico se fecha para mim. Uma barreira de ódio e ressentimento se levanta entre nós enquanto ele é envolto pelas sombras vivas de Excella.

— Parada aí! — Sashi ordena, brandindo a katana. — Ou vou abatê-la aí mesmo.

— Não — sibila Excella ao erguer o indicador. — Ainda não. Essa pequena forma que você manifesta ainda não está completa, menino.

— O que você quer dizer?

— Ainda assim, sua Fictomancia despertou mais cedo do que esperava. — Excella solta uma risadinha vulpina. — Como imaginei. Sua mãe deve ter feito exatamente o que eu esperava depois do seu acidente.

— QUE MERDA VOCÊ TÁ DIZENDO?! — grito, interrompendo-a. — VOCÊ SABE SOBRE MEU PODER?

— E como sei, kukuku... — Ela estende a mão na minha direção. — Se quer que eu diga, venha comigo, meu filho nascido da tragédia.

— Ir... com você?

— Sim. Venha e eu lhe contarei tudo que quer saber. Não só isso. Eu o ajudarei a chegar no seu pleno potencial! Seu persona será a mais poderosa de todo o Mundo dos Sonhos!

— A mais... poderosa?

— Calebe? — Sashi me encara por cima do ombro com preocupação.

— Até parece. Até parece que eu vou me juntar a você! — Eu aponto para ela e continuou: — Tenho uma proposta melhor. Eu acabo com sua a raça aqui e agora, você deixa o Enrico em paz e diz tudo que eu quero saber! Está bom assim?

Excella solta uma gargalhada cheia e sensual. Praticamente tudo nela exalava luxúria e escuridão.

— Tão presunçoso e convencido! Puxou mais do que apenas os olhos dela!

— Para de ficar aí falando miolo de pote e diz logo o que eu quero saber, porra!

Um portal sombrio se forma atrás dela, formado de suas sombras. Lembra uma singularidade, um vórtice de matéria escura orbitante que engole a tudo e nada escapa dele. Excella se vira para adentrar aquela massa negra giratória, levando Enrico e Jane como dois bonequinhos em suas mãos feitas de sombras.

— Sashi!

— Certo! — Ela salta e balança a katana, as chamas violetas se condensando na ponta da lâmina. —『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Divisor Horizonte Primaveril! 』

— Calebe! Não ataque! — Nádia grita lá de trás.

Quase no mesmo instante que o ataque foi anunciado, as chamas se apagam repentinamente. E então, como se tivesse levado um coice potente, Sashi é acertada em cheio no meio do movimento, jogada para trás enquanto cospe um filete de saliva.

— ...!

O impacto também me atinge com tudo, me fazendo pigarrear e me contorcer. Sashi sai voando até esbarrar em mim com tudo. Nós dois saímos rolando no chão, até parar, arregaçados, aos pés de Nádia. A Chefe-Executiva da Mandala continua sem reação alguma além de espanto.

— Urgh! Ai, porra! Tá doendo, doendo, doendo, ai!

— Que foi... isso?! — Sashi diz em meio a tosses.

— Kukuku... como imaginei. Ainda é muito imaturo.

— Ei! Parada aí!

— Voltaremos a nos ver, menino. Até lá cure suas feridas, fique mais forte... — Ao entrar no portal de sombras, a voz de Excella se torna ressoante, etérea, sobrenatural. — E então, eu poderei brincar o quanto eu quiser com você.

— Enrico! Enrico!

Ele não esboça reação alguma. Seus olhos estão mortiços e cegos pela raiva.

— Eu vou atrás de você, Enrico! — Apontei para ele, rasgando a garganta em gritaria. — TÁ OUVINDO, SEU MERDA?! EU VOU ATRÁS DE VOCÊ E VOU TE SALVAR!! ATÉ ESSE DIA CHEGAR, EU VOU FICAR MAIS FORTE! MUITO MAIS FORTE PARA ARREBENTAR A CARA DESSA TIA, OUVIU?

E assim, eles desaparecem no ar. Aquela realidade treme e sinto meu corpo sendo sugado para algum lugar em resposta. A paisagem monocromática se torna um borrão desconexo, como aquelas cenas de viagens de dobra de espaço em filmes de nave espacial.

Pisco várias vezes para recuperar o juízo e apareço em frente ao meu dormitório, junto de Sashi. Ela está de sobrancelhas arqueadas, se esforçando para processar tudo o que tinha acabado de acontecer.

Voltamos ao mundo real.

 

 

*****   *****

 

 

Depois daquele dia, nenhuma morte foi registrada nos noticiários. A polícia encerrou as investigações depois de um mês de buscas infrutíferas e deu o caso como “inconclusivo”, sendo arquivado logo em seguida. Não havia provas, não havia autor.

Porém, eu sabia exatamente o porquê e não me sentia nem um pouco melhor com isso. Os tempos monótonos voltaram para a pacata Morro Branco, mesmo que o fantasma do assassino invisível continuasse a assombrar o imaginário dos moradores.

Sério, Enrico se tornou uma lenda naquela cidade que continuaria sendo contada por muitos e muitos anos.

Com o atraso das aulas devido às investigações, a Universidade Morro Branco adiou as atividades para o segundo semestre. Grande parte dos estudantes voltaram para suas casas.

Inclusive eu. Mas não é para casa que eu voltaria. Meu destino era outro.

Aproveitei o tempo extra que tive para dar uma arrumada no quarto. Talvez recuperar velhas memórias. A sensação de que eu posso recuperar meu passado me encheu de expectativa, mas também de medo.

Só que nenhum objeto naquele quarto conseguiu produzir o gatilho que aquele sino de cavalo do Enrico produziu. As únicas coisas que eu me lembrava continuavam a ser os objetos das memórias que recuperei durante a batalha.

A bonequinha Musashi, agora mais significativa do que antes, estava em um lugar especial na prateleira mais alta, sentada com sua fiel arma de palitinho do lado. Juntos a ela, estava o Homem Dino e a Mulher Calebeira, bem como o amado de Musashi, o lindo e sensual Príncipe Brigadeiro.

Os protagonistas de minhas aventuras de infância. Assim como Carla e Enrico.

Carla... toquei na bonequinha que servia de molde para meu persona, meus olhos ardendo muito. Passei o braço suado no rosto e funguei. Não é hora de ficar lamentando o passado, seja lá como tenha ocorrido.

Trabalho concluído, usei o resto do tempo para passar com minha mãe. Ainda pensava sobre o que Excella disse a respeito de conhecer minha mãe, sobre eu ser a cara dela e tudo.

Em uma das conversas, ela me abordou sobre o assunto, claramente tentando evita-lo, mas a realidade é que era inevitável. Empurrou com a barriga por muito tempo, assim como eu, e finalmente tomou coragem para conversar sobre.

— Você tem que ir mesmo? O que aconteceu?

— Nada mãe, está tudo bem. — Antevi o motivo de sua preocupação e a tranquilizei. — Vou passar um tempo na casa da tia Isolda só. Acho que será bom para mim.

— Agora que começou a faculdade? — Minha mãe aspirou forte o ar e então continuou a me questionar. — Por que essa decisão tão repentina?

Não podia contar sobre o que aconteceu. Nem sei se eu teria o direito de arrastá-la para o meio dessa confusão, mas e se houvesse, nem que fosse uma remota possibilidade, de Excella ter falado a verdade?

Eu não podia arriscar a segurança da mamãe assim. Talvez fosse egoísmo de minha parte, mas algo dentro de mim dizia que eu tinha de fazer isso. Não só por ela, mas por mim.

Pelos meus amigos de infância. Pela verdade. Senão, nunca serei completo sem isso, não importa o quanto eu queria me enganar.

— Mãe... vai ser bom para mim. Para eu recuperar minhas memórias. Eu tenho que fazer isso.

Minha mãe franziu a testa com pesar, mas concordou. Por outro lado, dava para ver que ela também estava feliz por mim. O médico tinha dito a ela que talvez eu nunca mais pudesse me lembrar de qualquer coisa antes do acidente, e agora que lembrei, isso só me deu mais gás para tomar essa decisão.

A quase dois meses atrás, eu e Sashi decidimos que descobriríamos sobre a origem do meu poder e nosso encontro com Excella, além de eu ter tido parte da minha memória de volta, foi mais um passo para isso.

E eis que, em junho, viajei para São Paulo, onde minha tia Isolda mora. Ela é funcionária pública, então tem uma casa que eu posso ficar e o apartamento onde ela e o pequeno Ruan Neto, além das trocentas faxineiras.

— Obrigado por me deixar ficar, tia — agradeci, observando o amplo espaço vazio.

— Sem problemas, Calebe. Pode ficar aqui o tempo que achar necessário. De vez em quando, eu venho ver como está ou a Márcia me mata — comentou ela com uma risadinha cansada. — Agora, se me der licença, eu tenho que voltar pra repartição. Qualquer coisa, sabe meu número, né?

— Sei sim. Obrigado, tia.

Ela sorriu e saiu pela porta da frente. Sashi observa a sala vazia, separada da cozinha por uma bancada de mármore conectada a uma parede lisinha e branca de gesso. O chão era de uma madeira encerada e brilhosa. Duas janelas gradeadas margeavam a sala, uma na frente da casa, outra nos fundos.

A casa tinha dois quartos e um banheiro simples. Nada de muito luxuoso, mas era confortável. Amei de coração. Seria ali que eu passaria meus dias em São Paulo até que terminasse o que vim fazer.

— Que casa linda! — exclamou Sashi, rodopiando pela sala. — Já amei muitão!

— Que bom que gostou. — Olhei pela janela, observando a rua movimentada. Carros indo e vindo na avenida, pessoas em suas andanças diárias. — Nunca pensei que as coisas mudariam tanto.

— E o que pretende fazer agora, Calebe?

Me virei e a encarei com um sorriso decidido. Uma sobrancelha dela se ergueu.

— Hoje a noite vamos dar um passeio.

 

 

**********

 

 

Andamos pela cidade e turistamos um pouco. Foi bem divertido, mas nossa última parada terminava em um parque.

Parque Ibirapuera. Era tão grande e incrível como se via nos cartões postais.

Andamos um pouco pelo calçadão amplo. Uma construção com vários pilares serpenteava pela área calçada, delimitando a área verde da área de passeio e atividades recreativas. Inclusive, algumas pessoas estavam lá dançando, se exercitando ou só simplesmente conversando.

Entre elas, uma pessoa estava invisível e se destacava do restante; uma mulher alta, de cabelos acinzentados e olhar afiado, chegando a doer quando me olhou. Usava um óculo pequeno e redondo no rosto e estava recostada em uma das colunas como se fosse uma espiã russa. Assustador.

Um leve sorriso apareceu em seu rosto quando eu me aproximei. Seus olhos estreitos balançaram como um pêndulo entre mim e Sashi.

— E então, Calebe? Já se decidiu? — perguntou ela.

— Oi também, Nádia — cumprimentei com um ar azedo. — E sim, já me decidi.

— E então?

Decidido, falei:

— Vou entrar na Mandala.

 

 

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Notas do Autor:

Olá, sonhadores! Espero que tenham gostado do primeiro volume e muito obrigado para os que acompanharam até aqui! A obra passará por uma pequena pausa (Pequena) enquanto o segundo volume está em andamento. Enquanto isso, aproveitem para deixar nos comentários o que acharam, dando um feedback e dizendo o que esperam do volume 2. Assim, me ajudam a deixar a obra ainda melhor para vocês.

Nos vemos em breve, meus lindios! Até o próximo sonho! <3



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