Retalhadora de Sonhos Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 2

Capítulo Extra I: A melhor eu

                       


Eu sugiro que os recrutas sejam diretamente treinados pelos Executivos.


Essa frase foi muito despretensiosa na época. Não imaginei que apenas algumas palavras mudariam minha vida para sempre.

Antes daquele dia, eu era o que podemos chamar de “modelo de Instagram”. Minhas redes sociais eram limitadas e eu postava apenas fotos de trabalho e versões de mim mesma que nunca fui, mas todos acreditavam que sempre fui.

Bonita, bem-humorada, bem-sucedida, bem-resolvida, bem-aventurada... essas coisas. Se você me conhecesse pelas redes sociais, poderia muito bem ser um fã meu, ou das minhas supostas fotos de bikini na praia, exibindo minhas coxas bronzeadas ou as marquinhas para conseguir views.

Ou talvez você me seguisse nas redes sociais pelas minhas frases de motivação, minhas críticas a uma sociedade materialista que defende a objetificação da mulher, dicas de como ser uma pessoa bem-sucedida como eu e por aí vai.

Talvez você possa ter me visto em alguns de meus reels, em grandes viagens a lugares famosos, ou me encontrou em seus sonhos. Sim, você sonhou comigo e senti seus pensamentos perversos com meu persona. Pode até ser que eu tenha salvo você de algum pesadelo horrendo em alguma ocasião e agora você venera uma deusa de pele escura e olhos claros, com vestido branco chinês, e um casaco que lembra plumas divinas de um anjo.

Mas... se você tirasse as viagens, os itens ostentosos, as lições hipócritas de vida, as imagens, as posturas, as aparências... o que sobrava?

Eu tinha muito medo que os outros descobrissem. Sempre tive. Depois que perdi meu melhor amigo, aquele que me aceitou do jeito que era, me senti a pessoa mais deslocada no mundo. Na minha cabeça, ser a “Nádia” somente não era o suficiente. Nunca foi. Nunca poderia ser. Nunca seria.

Eu tinha que ser mais. Queria ser a pessoa que os outros admirariam, queria ser aquela que deveria sempre estar no topo das atenções e da pirâmide da importância. Perfeita, sem faltar nada. Não importava. Nesse mundo, o mais importante é o que você “aparenta ser”, e não o que “é”, não concorda?

Tive por muito tempo isso para mim como verdade, e me agarrar a esse fato me ajudou a superar a morte do Misael, um fato que pode ter passado batido mesmo aos hábeis olhos do senhor Charles, mas que criou outra coisa dentro de mim que me limitava ainda mais.

Como se eu estivesse eternamente presa dentro de um casulo, precisando dessa proteção artificial para me proteger do real julgamento daqueles que esperavam sempre o melhor de mim. E isso foi se tornando algo inseparável da Nádia. A máscara que não pode deixar o rosto, porque ela se tornou o próprio rosto.

Abaixo dela, havia músculos, veias e tecidos. Havia o grotesco, havia o ridículo. Meu verdadeiro “eu”. Via abaixo dela tudo que eu mais desprezava, principalmente nos pesadelos. Não suportava olhar para eles, encarar sua natureza vil e asquerosa.

Eu sentia uma vontade ardente de eliminá-los. Esmagá-los, enterrá-los debaixo da terra assim como fiz com aqueles que tiraram o Misael de mim. E essa repulsa foi, por muito tempo, a força motriz que impulsionava meu persona, o símbolo do meu conceito de "perfeito".

Minha preocupação não era mais comigo, mas a “aparência” que me tornei. Zelar por ela, manter aquele ar divino circulando ao meu redor, não importava o que tivesse além dele. Enquanto eu tivesse aquela barreira enfeitada para me resguardar, eu estaria bem. Estaria protegida do mundo.

Foi assim que pensei até aquele dia.

A ficha não caiu imediatamente, é claro. Mas então, um desespero me acometeu como se eu tivesse sido atropelada por uma carreta e passei alguns dias de cama, lutando para respirar.

Pessoas estão vindo morar comigo! Outras pessoas irão ver como eu sou de verdade! Elas vão ver além da máscara! O que eu faço, o que eu faço?

Com os poucos dias que tive, usei para colocar a cabeça no lugar. Me acalmar, pensar em como receberia os novos recrutas. Eu era uma Executiva da Mandala, a sucessora de Charles Winston, a Dama da Terraformação que poderia acabar com todos os pesadelos da cidade de São Paulo de uma vez se estivesse em um dia ruim.

Não poderia me dar ao luxo de parecer uma ridícula na frente deles. Bati no rosto repetidas vezes, surtei e me acalmei. Surtei de novo, comi meio pote de sorvete e tornei a me acalmar.

Como poderia me apresentar adequadamente? Droga, eu nunca tinha parado pra pensar nisso! Nunca tive que me preocupar em mostrar meu “eu” fora das telinhas do celular, fora da capa do meu persona. Agora eu o faria para cinco estranhos de uma vez e eles iriam morar comigo por um mês!

O que eu tinha na cabeça?!

Matutei por horas, dias, até que pensei em um começo. Arrumar a casa. Sim, nas redes sociais, eu tinha várias casas ao redor do mundo, todas de arquitetura diferenciada. Coisa de cinema mesmo. Na vida real, minha casa é um duplex à duas ruas da Av. Brasil. Apesar de ser bonita e confortável, não é nada comparado às casas que minha figura pública ostenta em suas redes.

Fiz o possível para mantê-la o mais limpa possível. Eu sempre fui meio desleixada com a limpeza, mas, nos dois dias anteriores à chegada dos recrutas, fiz disso minha prioridade. Limpei tudo que pude limpar, me desfiz de tralhas, tirei pó suficiente para encher um caminhão e lavei tudo.

Também tinha planejado dar um trato em mim mesma, mas com toda a alucinação da limpeza, sequer tive tempo para isso. Ainda tinha que zelar pela manutenção das minha "eu" digital, então para mim, isso era mais importante do que minha aparência.

No dia que chegaram, acordei tarde. Fui pega de surpresa por Calebe, sendo o primeiro a chegar. Meu coração galopou dentro do peito e fiquei sem ar, logo não consegui ir ao portão. Usei meu persona para atendê-lo. Ainda assim, tive medo que meu nervosismo estivesse escapando pelas frestas da máscara.

— Puta merda! O que cê tá fazendo aqui já? E sério que você tá dormindo em pleno meio-dia? Não trabalha não, criatura?

— Eu trabalho em call center e meu período é noturno, então costumo dormir durante o dia — escamoteei, me esforçando para manter a voz firme. — Podem entrar, entrem! Acomodem-se na sala enquanto acordo, tomo um banho e troco de roupa. Um instantinho, tá? Sem problemas! É rápido.

Imaginei que ele pudesse perguntar mais algo sobre mim e então dei minha primeira desculpa esfarrapada. Assim que despertei fui ao banheiro e me impressionei como o vidro do espelho não trincou. Meus cabelos eram feios e desengonçados, minha pele era irregular e sardenta.

E aqueles pneus de caminhão? Tenho ganhado mais peso ultimamente, mas para o mundo eu nunca perdi a forma. Meu nariz de batata oleoso brilhava sobre a luz da janela do banheiro, contrastando com meu nariz arrebitado de mentira do meu último post em Viena.

O que eles vão dizer de mim? Provavelmente vão estranhar e então dizer que eu não tenho nada a ver com o meu persona. Acho que vão perguntar por que um dragão tem uma princesa como persona. O que eu faço? O que eu faço?

Tapas dados no rosto. Não era hora de surtar! Tinha que me concentrar. Respirei fundo — ou pelo menos tentei — e quase tive um choque térmico no banho.

Quando desci, todos já me esperavam. Demorei bem mais do que imaginei para me vestir e tomar coragem para encará-los. Botei minha melhor roupa — não que fosse grande coisa —, umas presilhas para conter a cabeleira rebelde que nunca fiz questão de cuidar e esconder o máximo das imperfeições com uma humilde maquiagem básica.

Ao descer, encontrei os cinco olhando para mim — seis, se fosse contar com a persona de Calebe que eu não podia ver. Seus olhos de admiração e surpresa me atingiram como uma saraivada de um pelotão em um muro de fuzilamento.

— O-oi... pessoal. Tudo bem?

Me sentia pressionada. O coração ameaçava saltar para fora da boca se eu a abrisse demais. Eram só cinco pessoas lá dentro, mas para mim era todas as multidões do mundo. Olhares ardentes de repulsa, de julgamento.

Isso derrubou meu olhar, fixo no chão naquele momento.

— Caramba, você é mesmo a Nádia? A Nádia?! — Jamal disse com tanta ênfase que me deu náuseas. Eu já esperava por aquela reação. Agora aguardava pelos dedos apontados como armas morais, risadas como chicotadas contra minha dignidade.

E se descobrissem as minhas farsas nas redes sociais, aí sim minha vida estaria acabada! Contudo, o que eu esperava, felizmente, foi bem diferente da realidade.

— Prazer, minha abençoada! — Ele estendeu a mão.

— Vai ter um troço, meu bom? — Roberto perguntou. — Vai deixar a garota com vergonha.

— Parece que nunca viu uma mulher na vida! Te controla, cara. — A outra menina me defendeu.

— A qual é, sangue bom? Estou muito emocionado em encontrar alguém tão importante pessoalmente, só isso!

Importante... eu? Mesmo depois de ver como eu sou de verdade?

Aquilo me abalou, mas não no mau sentido. De alguma forma, aquilo me deu um respiro e minhas lentes ficaram um pouco menos cinzentas. Criei coragem para erguer o rosto e não encontrei rostos escarnecedores. Não encontrei risadas presas, não encontrei olhares desconfiados fingindo serem amigáveis.

Eles realmente me viam como alguém importante. Me viam com uma figura de autoridade e eu não estava usando meu persona. Isso era mesmo real?

Ainda queria enfiar minha cabeça na terra, mas não me sentia mais refém de estranhos. Por algum motivo, pude respirar de novo, apesar de ainda me sentir desconfortável.

Quando mostrei a casa para eles, ficaram encantados. Não eram as residências luxuosas que eu esbanjava nas minhas fotos, mas ainda assim eles aceitaram. Fiquei com um pé atrás ainda com as gentilezas e a forma normal deles agirem perto de mim. Ainda tinha minhas dúvidas, mas só o tempo as responderia.

O mês foi passando. Sessões atrás de sessões, lições atrás de lições, eu me sentia cada vez menos desconfortável. Diferente da grande casa fria e silenciosa que tinha antes, aquele lugar ganhou vida.

Uma nova explosão de cores, pintando aquelas paredes cinzentas de solidão, surgia a cada manhã quando Ingrid me dava um bom-dia ao passar pelo quarto coçando os olhos. Ou quando Roberto perguntava se queria ajuda com a cozinha — pois era difícil cozinhar para tanta gente sozinha.

E por mais que eu aguçasse meus ouvidos para ouvir seus comentários ácidos ou suas risadinhas do fundo da garganta, eu nunca as ouvi. O que eu ouvia antes parecia uma alucinação, uma coisa da minha cabeça. Aqueles sorrisos gentis me perguntando se eu queria ajuda eram mesmo autênticos?

E quando eu treinava Calebe e Sashi e eles agiam comigo de modo informal e irreverente, diferente de todos os subordinados que já trabalharam comigo. E isso não mudava mesmo quando conversávamos pessoalmente. Ele sempre agia comigo do mesmo jeito, assim como Jamal.

Mesmo aquela forma gorducha e distorcida era bombardeada de elogios dele. Cansei de sair do quarto depois de me arrumar e Jamal me chamar de “bonita” ou “elegante”, rendendo a ele alguns puxões de orelha de Ingrid. E quando ele estava no banheiro e deixava todos para explodirem?

Eu simplesmente não conseguia aguentar e ria comigo mesmo. Quando foi a última vez que senti vontade de rir na presença de outras pessoas que não fossem o senhor Charles ou... o Misael?

Emma sempre me elogiava, dizendo que era uma boa pessoa e que eu sabia muito sobre o que eu ensinava. Mesmo sem palavras e muito menos jeito, eu aceitava aqueles elogios. Os tinha como verdadeiros e parei de questionar a fé deles.

E saia sorrindo como uma boba no fim do dia. Chorava no banho, mas não de tristeza e sim de alegria.

O tempo passou e a convivência deixou de ser um fardo e passou a se tornar uma diversão. Um prazer. Nenhum dia era chato com eles ali. Haviam dias difíceis e algumas chateações, mas nada comparado à monotonia que eu vivi até então.

Teve vários dias que sequer lembrei de atualizar meus feeds das redes sociais. Para falar a verdade, mesmo que eu lembrasse, não me importava. Eles estavam ali comigo, zoando uns com os outros, fazendo barulho, me pedindo conselhos e instrução e me pedindo para participar de suas brincadeiras.

Era tudo o que eu precisava. Tudo que eu poderia querer. E não só eles aprenderam comigo, mas também aprendi com eles.

 


Tem coisas que você precisa resolver dentro de si para seguir adiante. Pode não ter todas as suas memórias, mas se não ficar em paz com o que existe dentro de você, com aquilo que se lembra e as emoções que elas trazem, nunca vai progredir. Esse sentimento de impotência irá consumi-lo e você começará a achar que não é bom o bastante. Aos poucos, esses sentimentos não aceitos se acumularão e serão as correntes que formarão a prisão da sua Gnosis. Você tem muita Gnosis escondida, pude ver. Um poço de Gnosis e isso é refletido no poder inato da Sashi, mas você o desperdiça. Faz mal-uso dessa energia. Você pode ficar muito mais forte, Calebe. Só depende de você.


 

Eu disse isso para o Calebe com tanta propriedade e convicção, após abrir uma ferida que pensei até então estar cicatrizada, que não parei para olhar para mim mesma e me dar conta de que a voz não tremia mais. Os gestos não vacilavam, o olhar já não fugia.

Aquele cara do meu lado na varanda, para quem levei pizza, não era um algoz que iria me machucar. Um juiz para me julgar. Era uma pessoa com tantos problemas quanto eu e que estava lutando contra eles. Meu discípulo temporário que precisava de mim.

Um amigo.

E quando terminamos de conversar, não consegui dormir de noite, pensando. Aquilo que disse também servia para mim. Eu olhava para uma imagem quebrada de mim mesma que podia ser remedada facilmente pela imagem de meu persona ou pela minha vida de mentira na internet.

Mas o dia terminava e “Nádia”, a verdadeira Nádia, voltava a ficar quebrada. E para mim estava tudo bem viver assim, contanto que os outros aprovassem, que eu me mantivesse protegida dos porquês.

Mas então chegou Calebe, com seu modo de me tratar com tanta casualidade. Chegou Roberto com suas gentilezas e sua prestatividade, chegou Jamal com seu bom-humor e elogios aquecedores. Chegou Ingrid com sua forma meio bruta, mas também verdadeira, de me dizer aquilo que preciso melhorar e Emma em ver em mim aquilo que eu não conseguia ver entre as rachaduras.

Eles chegaram e tudo mudou. Não só no ambiente, mas algo também mudou dentro de mim.

Por isso foi tão difícil vê-los partir. Mas eu tinha noção de que seria apenas um mês. Um mês, o qual se passou rápido e, que no início, eu desejava todos os dias que passasse logo. Naquele momento, enquanto via o avião subir aos céus, eu só desejava que aquele mês tivesse durado para sempre.

Um peso amargo, mas gostoso, da saudade apertou meu peito enquanto eu acenava lá debaixo. Agora só podia desejar a eles boa sorte, força e coragem para enfrentar os dias sombrios que viriam.

Enquanto não nos reencontrássemos de novo, eu continuaria trabalhando em mim. Continuaria melhorando, me descobrindo. Sempre fui elogiada e notada pelas minhas habilidades com o polo passivo da Gnosis, o autoconhecimento, porém nunca dei oportunidade à Nádia de verdade se reconstruir. Se sentir importante, e bonita, e prestativa e habilidosa e tudo o que ela poderia ser além da farsa que era.

A verdadeira “Nádia” já não precisava mais do casulo dela. Agora ela estava livre para se curar e aqueles recrutas me fizeram enxergar isso.

Está vendo, senhor Charles? Você estava certo. Como sempre. Não pude conter as lágrimas que escorreram dos olhos. E você também, Misael. Olha quantos amigos novos eu fiz depois de tanto tempo! Você teria gostado muito deles.

Os ventos sopraram minhas madeixas e eu as afastei do rosto. Agora não com desgosto, mas me sentindo linda e imperiosa. Me sentindo plena, assim como eu me sentia sendo minha persona.

E foi essa a maior dádiva que eles me deixaram.

— Vejamos... Acho que vou postar uma nova foto para minhas redes sociais. — Peguei o celular e bati uma selfie, enquanto saia do aeroporto. Olhei para foto, encantada. Eu sorria, meus olhos brilhavam, meu cabelo estava mais lindo e sedoso do que nunca.

Essa era eu. Minha verdadeira versão... e a melhor delas.

 

Notas do autor:

Olá sonhadores e sonhadoras! Espero que tenham gostado do capítulo extra e passando para avisar (se eu já não tiver avisado) ou reforçar que o capítulo só irá sair na sexta. Mas não estranhem se sair no dia normal. 

Agradeço mais uma vez de coração por terem lido até aqui. Vocês são maravilhosos, mussarelos.

Até o próximo sonho!



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