Volume 2

Capítulo 41: Despedidas

                       

Falta só um pouco! Mas é muito gente, droga! Será que todo mundo escolheu justo hoje para ir ao maldito shopping?!

— Enrico! Volta aqui!

Ele anda despreocupado, daquele jeito dele, todo largado. Reconheceria de longe. É ele, não há dúvidas! Preciso falar com ele, preciso chegar a ele...

Mas não importa quantas pessoas eu atravesse, quanto eu corra ou estenda o braço... por que ele se torna cada vez mais inalcançável?

— Espera, porra! Enrico!

Até que ele para. Pessoas passam e me olham com curiosidade e despeito. Elas passam por ele como se ele fosse intangível e não a vissem, então... ele está na forma de um persona? Não vejo Jane em nenhum lugar.

Poderia ele ter me arrastado para uma armadilha? Estou longe demais da Sashi e não posso contar com a ajuda dos outros, caso algo aconteça, já que estão todos acordados. Droga... que cenário difícil!

— Enrico. Pra onde você tá indo? Tá com medo de mim? — Ele continua virado de costas para mim, me ignorando. — Começa a se explicar, Enrico! Tô esperando!

— Acho que já está mais do que claro que estamos de lados opostos da mesa — ele responde, sua voz mais dura que qualquer pedra que Nádia tenha jogado em mim.

— Quer dizer o quê com isso?

— Não me procure, Calebe — diz ele, com olhos mortificados. Desdém pinga daquele olhar que me deixa arrepiado. — Não venha atrás de mim nunca mais. Será a última coisa que farei por você pelo respeito que tenho à Carla.

— Ela já morreu, Enrico — lanço a ele. Enrico aperta os olhos. — Eu me lembrei. Eu me lembrei como ela morreu, e eu...

— Isso não importa mais — corta, de repente. — Matei todos os sentimentos que tinha com relação ao passado para me focar no futuro. Meu desejo agora... é garantir que aquela mulher cumpra seu propósito.

— Se realmente é verdade o que diz, então porque fez tanta questão de me matar lá atrás? Por que fez questão de me fazer lembrar da promessa que fizemos? De me mostrar o sino? Não mente para mim, Enrico!

— E quem é você para achar que me conhece?

Rangi forte os dentes, como se eles fossem se quebrar. Um misto de raiva e tristeza começam a tomar as rédeas das palavras e isso é perigoso. Tenho que me acalmar e tentar convencer ele a desistir dessa insanidade.

— Enrico, tente pensar. Como a Carla se sentiria ao saber que você está com esses monstros? Como ela ficaria triste para...

— NÃO USE ELA PARA TENTAR ME REPREENDER, CALEBE!

Ele se exaltou quando toquei no nome da Carla. Mas isso somente serve para provar meu ponto. Ainda há como eu salvá-lo.

— Certo — estendo as mãos, em um tom apaziguador. — Tudo bem. Não vou mais falar nela. Eu só quero que você pare para refletir se, seja lá o que for que estejam planejando, vale a pena.

Ele desvia o olhar e sombras começam a pingar de alguns cantos, indicando que Jane está próxima. Meu coração acelera, mas me esforço para manter uma postura de controle.

— Só vim até aqui para lhe dizer isso. Fique fora do nosso caminho e poderá viver no novo mundo que está para chegar.

— Novo mundo?

— Sim. Um mundo onde não haverá mais distinção entre realidade e fantasia. Um mundo onde monstros e pessoas... possam ser a mesma coisa.

— Que insanidade é essa que está dizendo?! Não há como fazer isso! É impossível! — Enrico se vira de novo. — Ei! Por favor, desista dessa loucura e volte à razão.

— Eu... — A voz dele falha. Ele não ousa me encarar nos olhos e percebo seus punhos fechados tremerem. — Eu já tomei minha decisão, Calebe. Não há mais como voltar atrás.

— Enrico!

Uma parede de sombras surge no meio do espaço. Todas as pessoas que passam sequer percebem que aquilo está acontecendo e continuam a caminhar despreocupados. Mãos esqueléticas com dedos enormes e afiados surgem do vórtice de escuridão, envolvendo o corpo de Enrico.

O abraço da escuridão. Seu persona veio leva-lo.

— Enrico! Não importa o que diga, eu vou cumprir minha promessa! — digo à ele, faltando ar nos pulmões. — Não vou abandonar meu melhor amigo!

Um pouco antes de desaparecer nas trevas, ele vira o rosto de leve. Seu olhar parece triste e ressentido, talvez até sinta dúvidas com relação à suas próprias palavras. Como posso deixá-lo ir assim?

— Da próxima vez que nos encontrarmos... — Sua voz reverbera no ambiente, distante e etérea. —... seremos inimigos. E eu vou mata-lo e terminar esse ciclo de uma vez.

— Enrico... merda!

E me assombro com uma mão ao tocar meu ombro, vinda de trás. Ao me virar, encontro o rosto preocupado de Emma.

— Ei, ei. O que aconteceu? Você tá pálido como um fantasma — ela me acalma, segurando meus ombros de leve. Ela ergue meu rosto com a mão e me encara nos olhos. — Me diga... o que aconteceu?

Meus olhos ficam baixos, marejados. Me sinto fraco, enjoado. Minha força foi embora, assim como ele.

— Eu reencontrei um antigo amigo...

Emma fica confusa.

— E então?

— Eu o perdi.

Depois desse encontro, algo se quebrou dentro de mim. Confesso que ainda tinha esperanças de fazê-lo voltar à razão. Conversar com ele, clarear sua mente..., mas agora já não tenho mais certeza.

Não tive mais estômago para treinar, então nos últimos três dias, Zeppelin, Jamal e Roberto praticaram a liberação de sua Gnosis. Zeppelin ainda tinha dificuldades para manter sua aura fluindo constantemente, mas melhorou bastante com últimos treinos.

Mas quando estava perto de Jamal, ele sempre dava um jeito de tirá-la do sério. Aqueles dois são como água e vinho, vinho e vinagre. Dois tucanos querendo conversar. Será que eles já têm história? Vai saber...

Roberto usou seu tempo para focar também no seu treinamento. Emma procurou se concentrar em entender aquela energia e manter o controle de sua “outra personalidade”.

Sim, foi descoberto que ela tinha um transtorno de dupla personalidade durante esses dias. Algo que impacta diretamente em seu persona. Quem diria, hein?

E por falar nela, não a vejo direito desde o dia do shopping. Ela passou os últimos dias trancada no quarto ou patrulhando com seu persona. E seu próprio persona, Yatsufusa, também tem agido estranho.

Tipo quando estava sozinho, procurando tirar sua máscara, mas nunca conseguia, segundo a própria Sashi.

É como se lutasse para tirar, mas estava presa ao seu rosto. Ele estava desesperado para tirá-la, mas lutava contra isso. Se debatia. Lutava contra si mesmo, duas vontades digladiando pelo controle.

Emma... eu sei que tenho meus próprios problemas para pensar, mas consigo imaginar o que ela está passando. A sensação de não conseguir dominar-se. De estar presa dentro de si.

Deve ser assustador.

Na noite anterior à viagem, não consegui dormir. Além dos roncos de javali com câimbra do Jamal, os pensamentos me mantinham ativos. Me assombravam com flashes.

De Excella...

 


Ainda não é a hora. Você voltará para mim muito mais forte e então terei a diversão que tanto espero de você... meu filho nascido da tragédia.


 

De Charles...

 


Esse persona está ligado ao incidente da Mandala há 2 anos... Está ligado de alguma forma a você e sua família, Calebe.


 

É muita coisa para pensar! Sentia que minha cabeça explodiria, então saí para tomar um ar. Na varanda do andar de cima, por mais incrível que me parecesse, Emma também estava acordada.

Ela admirava a paisagem noturna na penumbra. Mesmo com os barulhos que fiz para anunciar minha chegada, ela não se virou.

— Não consegue dormir também? — perguntei.

— Irônico, né? — Ela retrucou com uma risada sem diversão. — Logo eu, a dorminhoca do grupo, não conseguir dormir direito à noite... chega a ser cômico.

Me escorei no parapeito da área ao lado dela. Mesmo sem ver, sentia a Sashi por perto. Onde quer que ela estivesse, ela ouvia nossa conversa. Se bem que ela não precisava ouvir para deduzir as coisas.

— Desculpa, mas não consigo ser social. É muito difícil.

— Você deve ter suas razões. Não a culpo. — Ameacei espirrar com uma rajada fria de vento, esfreguei o nariz e continuei: — Mas se diz que não é social, então porque ficou comigo naquele dia?

Emma levantou as sobrancelhas. Tempos depois, o entendimento do que eu queria dizer levou seu rosto a ruborizar, encarando os dedos inquietos como se sua vida dependesse disso.

— Como você...?

— A Nádia me contou.

Silêncio. Ela devia estar esganando a Executiva em seus pensamentos.

— Bem... todos os outros estavam ocupados, então eu me ofereci. Não podia deixar você sozinho.

— Isso me parece bem social — disse, tentando aliviar a tensão da conversa. — Acho que você só está escondendo os pontos.

— Na verdade, esse... “outro eu”, que existe dentro de mim, é o principal motivo. Queria acreditar que isso é algo que eu pudesse lidar, mas não consigo. Sinto que vou machucar os outros se me envolver demais, entende?

Eu não sabia o que dizer, então fiquei na minha. Admiramos a paisagem por mais algum tempo até Emma voltar a falar.

— Mas eu também soube do que fez por mim. Mais de uma vez... — Ela sorriu tão genuinamente que fez meu coração aquecer. — E nunca consegui agradecer, então... obrigada!

Não pude evitar de sorrir também.

— Deixa disso. Saiba que você não tá sozinha nesse barco. — Fiz um gesto bobo, apontando para a minha cabeça. — Meio que eu tô tentando entender as loucuras que se passa na minha cabeça também, então...

— E quem você tá chamando de louco, hein? Cê é retardado por acaso? — Sua expressão mudou subitamente para um mortífero olhar afiado. Eu estremeci e me calei. — Vocês que tem problemas aqui, não eu. Eu que não entendo onde estava com a cabeça quando decidir vir para cá! Quando eu puder eu vou...

Emma balançou a cabeça com força como se desejasse se livrar de uma obsessão sobre ela.

— Não! Para com isso! Desculpa... eu...

— Tá tudo bem. Eu não vi nada — piquei para ela.

Emma sorriu mais uma vez e então bocejou.

— Acho que vou tentar dormir. Você vem?

— Vou ficar mais um pouco. Boa noite.

— Boa noite. — Ela se foi.

— Já pode sair, Sashi. Eu sei que está por aqui.

Ela surgiu do telhado, botando a cabeça para baixo e deixando seus cabelos escuros, levemente sombreados em cores neon de azul e violeta, cascatearem. Ela torceu as sobrancelhas e os lábios, lembrando uma criança fazendo birra.

— Está ficando boa em bisbilhotar, né? Acontece que eu também estou ficando bom em sentir sua presença.

— Acho que está ficando bom em ser um chato — Sashi desceu em uma pirueta e equilibrou-se sobre a fina superfície do parapeito, acocorando-se. Em mais um giro acrobático, sentou. — Você ainda não me contou sobre o que viu no dia do shopping.

— Desculpa, Sashi. Muitas coisas tem acontecido e estou meio atordoado com tudo isso.

— Não posso culpá-lo. — Ela deu de ombros. — Mas quero que sempre me conte tudo. Posso fazer parte de sua mente, mas não sei o que acontece dentro dela o tempo todo.

— Eu sei, eu sei... me desculpa.

Ela bufou.

— Tudo bem. Não se esqueça de que estamos juntos nessa, certo? Há alguém que precisamos salvar e não podemos nos dar ao luxo de vacilarmos nisso, não é?

Concordei com um aceno, mas por dentro, estava relutante. Meus dedos tremiam e encarei o céu sem estrelas ao ponderar na situação.

Será que ainda há como salvá-lo?

— Calebe, tá dormindo de novo? Você e a Emma estão competindo para ver quem dorme mais? — Jamal me dá um peteleco na nuca.

Acordo com um susto. Estou na fila e chega a minha vez de fazer o Check-in. O próximo voo para Fortaleza é em algumas horas e não tenho tempo para perder viajando na maionese.

Depois de mostrar o dedo do meio pra ele, fazemos o Check-in e esperamos na área embarque. O nosso voo está marcado para partir daqui a 30 minutos. Depois de mim, ainda tinha a Ingrid e o Roberto para fazerem os seus.

Nádia, Emma e Jamal me esperam na área de embarque, onde vamos passar pela inspeção de segurança. Emma já está com aquela cara de sono, e Jamal, de excitação. Se pensar que nunca viajei de avião, estou um pouco nervoso também.

Terminados os registros e feito a vistoria, é hora de ir ao portão de embarque. Nádia fica para trás com o rosto sombreado. Mesmo com alguns problemas e desentendimentos durante o mês, acho que ela gostou da companhia.

— Então é isso — Nádia diz, antes de prosseguirmos. — Quero parabeniza-los uma última vez. Vocês aprenderam realmente como acessar a Gnosis, então deram um passo importante nessa caminhada para dominar a fictomancia. — Sua voz está trêmula e ela faz uma pausa, pigarreando. — Esse mês me mostraram que, apesar de poucos, selecionamos bem nossos recrutas. São jovens obstinados, esforçados e tenho certeza de que desempenharão um papel importante na guerra que está por vir.

Todos ficam em silêncio e a atmosfera é de um momento solene... uma despedida. Até Jamal parou de matraquear e eu já não me perguntava se ele tinha algum vínculo sanguíneo com o Bernardo.

— Houve muitas dificuldades. Alguns mais que outros mostraram grande competência nessa área e gostaria de ter ensinado mais, mas o tempo é curto. Ensinei um dos conceitos basilares para conseguirem seguir adiante e acredito que ensinei bem. O polo ativo da Gnosis será ensinado por alguém muito mais capaz que eu para ensinar. Até lá, serão capazes de verem por si mesmo o poder que adquiriram e o quanto podem evoluir.

Os interfones do aeroporto anunciam com a voz feminina e robótica: ÚLTIMA CHAMADA PARA O VOO 321, DESTINO, FORTALEZA. ULTIMA CHAMADA!

— Chegou a hora. — Nádia sorri. — Desejo boa sorte a vocês e esforcem-se! Pois daqui em diante, o caminho será mais difícil ainda.

Jamal começa a chorar de repente.

— Obrigado, minha honrada! JAMAIS VAMOS ESQUECER VOCÊ!!

— Ela não vai morrer não, idiota — Ingrid comenta. — Deixa de drama.

— Como pode ser tão sem coração?! Eu quero dar um abraço ne...!

Ingrid puxa Jamal pelo capuz de seu casaco e sai andando. Ele sai cambaleando atrás dela, com chorinhos e engasgos. Roberto põe a mão na testa, sentindo a vergonha alheia lhe consumir e começa a andar depois de acenar para Nádia. Emma segura um riso e também vai.

Só falta eu.

— Calebe — Nádia me chama.

— Nádia...

— Tenho certeza de que conseguirá salvar seu amigo. — Ela abre um brilhante sorriso. — Eu acredito em você, assim como o senhor Charles acreditava.

Nesse momento, as nuvens negras do meu coração se dissipam com os raios de sol daquele imenso sorriso. Meu peito se enche de ar e o peso que puxava para baixo parece sumir. Uma descarga de motivação percorre meu corpo e agora me sinto melhor.

Sashi sorri com alívio e põe a mão no meu ombro. Seus olhos brilhantes como a abóbada celeste para mim me diziam a mesma coisa, mesmo que nenhuma palavra fosse dita por ela.

Elas estão certas. Nada de esmorecer! Eu só comecei a caminhada. Não tenho que temer nada, apenas continuar avançando. Continuar progredindo. Não importa se vou convencer o Enrico com palavras ou socos, eu vou dar meu jeito.

Eu prometi para ela.

Aperto forte sua mão e, olhando em seus olhos, digo do fundo do meu coração.

— Obrigado por tudo, Nádia.

Entre dúvidas e esperança, meu coração duelando entre essas emoções, sigo para meu próximo destino ao lado de Sashi.

A terra do sol, Fortaleza.

 

 

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Notas do autor:

Olá pipols! Tudo bem? Passando para avisar que esse fim de semana, no domingo, teremos um capítulo extra, uma forma de comemoração por várias coisas que tem acontecido de bom ultimamente e coisas boas merecem boas comemorações, não acham? \O w O/ 

Na próxima semana, o capítulo não sairá na quarta, mas na sexta. Agradeço a todos que leram até aqui e em breve trarei mais novidades sobre a continuação da obra! Sério, para vocês que estão acompanhando, só digo uma coisa: Vocês são incríveis!

Até o próximo sonho!!



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