Volume 1

Capítulo 9: Sonhos que veem o futuro II

 

Relatório da polícia: Enquanto voltava para seu dormitório, Tabata foi abordada por um homem que tentou assediá-la. Ela tentou se defender e os dois entraram em luta corporal. O homem a agrediu com 5 facadas, mas ela tomou a arma das mãos dele e cortou seu pescoço, o matando lá mesmo.

Chegou a ser socorrida por outros estudantes que passavam na hora, mas morreu pouco tempo depois por ter perdido muito sangue e não resistir aos ferimentos. A família e os amigos estão abalados, incluindo Micaela. Ela está inconsolável.

Estamos no funeral, eu e Sashi, prestando nossas homenagens, mesmo que eu e, muito menos minha persona, não a conhecêssemos bem. Familiares e amigos estão reunidos, prestando as últimas homenagens enquanto o caixão desce.

E, como um fantasma silencioso, Danilo também está lá presente. Afastado. Silencioso. Sorrateiro.

Eu vou até ele e, por um momento, ele tenta fingir que não me viu. Canalha.

— O que você tá fazendo aqui?

— Não te parece óbvio, primo?

— Creio que não tem nada pra você beber ou comer em um enterro, então não, não é óbvio. — Curto e grosso.

Danilo pisca, com aquela cara de sonso que só ele sabe fazer. Sinto uma aura estranha e podre emanar dele.

— Você acha que eu sou esse tipo de pessoa, Calebe?

— Pra falar a verdade, não sei mais que tipo de pessoa é você, Danilo.

— O que está insinuando com isso? Acha que fui eu quem mandei aquele maníaco atacar sua amiga?

— E como você sabe a causa da morte dela, ô Sherlock?

Os olhos dele hesitam, olhando em várias direções descontroladamente. Sinto que o joguei contra a parede com a pergunta.

— Eu... ouvi... as pessoas comentando.

— Ouviu?

— Sim. Pessoas fofocam, Calebe.

É impossível cair naquele papo. Pelo menos, alguém que o conhece tão bem quanto eu.

— É muito coincidência você sempre aparecer como um bálsamo depois que a desgraça acontece, não é?

— Ah, qual é, cara! Não vai me dizer que acha que eu sou responsável pelo o que aconteceu com o Bernardo também! Aquilo foi um acidente! Um acidente!

De novo ele sabe como aconteceu e o que aconteceu.

— Vai me dizer que também ouviu as pessoas comentarem sobre isso?

Danilo aperta os olhos. De longe, entre as pessoas, Charles surge como um fantasma, invisível entre a multidão em luto e me rouba a atenção por um instante.

— Quer saber, Calebe?! Você tá tão abalado com as coisas que tão acontecendo que tá falando merda sem pensar. — Ele passa por mim com uma ombrada truculenta. — Quando tiver bom das ideias, a gente conversa, tá?!

Maldito canalha.

— Ei! Vol...

— Calebe... — Em um lampejo, Charles reaparece na minha frente.

Sufoco um grito de susto. Maldito velho pra gostar de me matar do coração!

— Porra...! Estamos em público, então seja mais discreto! — sussurro como se conseguisse esganá-lo com as palavras.

— Temos que conversar.

— Agora?! De novo que essas merdas de pesadelos?!

— A morte de sua amiga — corta o detetive. — Ela de fato foi causada por um pesadelo.

A garganta fecha e eu quase me esqueço de voltar a respirar depois da afirmação. Eu simplesmente podia ter ignorado, mas Charles fala isso com tanta certeza que eu me forço a escutar.

Nós nos afastamos mais um pouco, ficando atrás de uma arvore entre duas lápides. Para os olhos de alguém normal, o pior que podia acontecer é pensarem que eu estaria usando alguma das lápides como mictório.

— Certo. Você tem 5 minutos.

— Muito bem. Investiguei as atividades que senti nesses últimos dias e percebi que as anomalias no tecido da realidade, o que acontece sempre que Campos Lúdicos são formados, se intensificaram de uma semana para cá.

— Tá..., mas o que isso tem a ver com a morte da Tabata?

— Então... tanto no caso da sua amiga quanto o outro que está hospitalizado, horas antes do acontecido, a atividade onírica que tenho perseguido se tornou mais forte. Ou seja, um Campo Lúdico apareceu nessa região.

— E onde há fumaça, há fogo — diz Sashi, pensativa.

Então, na noite depois que voltei do bar, o que vi não era um sonho, mas sim um Campo Lúdico? Eu não estava acordado, mas tinha apagado completamente por causa do álcool e mesmo assim, pude sonhar. Está explicado o porquê.

— O sonho que tive... — O pensamento acaba saindo alto.

Os dois me encaram com curiosidade.

— Que sonho?

— Uma noite antes do acidente com o Bernardo, eu sonhei com acidente. Tudo... exatamente tudo aconteceu da mesma forma. Tudo do mesmo jeito!

Charles alisa o bigode grosso, seus olhos espertos se estreitando ao refletir sobre o relato.

— Isso é mais uma evidência de que há um pesadelo por trás desses episódios infelizes. Mas... de onde é a origem? — Charles deixa a pergunta flutuando no ar.

Eu quero muito dizer que é o safado do Danilo, mas eu não tenho nenhuma prova concreta. Só suposições. Então, guardo minhas suspeitas para mim mesmo.

— Tá certo. Você venceu.

— ...?

— Essa ntoite, assim que o campus adormecer, vamos sair para procurar o agente.

 

*****   *****

 

1h37min da manhã e nada. Nadica de nada! Nenhum sonho, nenhum pesadelo... nada! Não sei se sou eu ou Sashi quem está mais frustrado com toda aquela caçada infrutífera.

— Que saco... Não tem nada... — Já é a 148° vez que Sashi diz aquilo.

— Será que você não tá conseguindo sentir nem uma coceirinha no cangote, não? — A voz já sai arrastada de sono.

— É questão de tempo até que tenhamos atividade onírica — Charles diz com total confiança. — O tecido da realidade está muito tênue e qualquer oscilação pode...

— Vem cá... só pra eu não dormir mesmo... você tem falado muito desse tal de “tecido da realidade”. O que seria isso exatamente?

— Somente a única coisa que separa o que é “real” do que não é.

— Explicou bem, Sherlockão!

Do nada um sopapo nos pega de surpresa, deixando Sashi em alerta máximo como um cão de guarda. A realidade desacelera, as cores do mundo desidratam. Charles olha para o céu com surpresa no rosto aparentemente inabalável.

— O Campo Lúdico?! Estamos no centro da atividade?

— Isso significa que o agente está próximo?

— Em teoria, sim, mas...

Como no sonho que tive naquele dia depois do bar, um cenário se forma ao nosso redor. Corredores frios, cores monocromáticas, paralelepípedos sem vida. A outra realidade montada pelo Campo Lúdico é o hospital da cidade e onde Bernardo está nesse momento.

— O que?!

A visão é estarrecedora; estou de frente para a sala onde Bernardo está e o sonho revela as máquinas parando de funcionar... as máquinas que mantém Bernardo vivo! Sinto que vou engasgar com a cena, tossindo como um cão resfriado.

— O Bernardo... — Sashi é a primeira a falar.

— Ele tá em perigo! — termino a frase com um grito sufocado.

— Vamos pro hospital!

Levamos bem menos tempo para chegar por conta da desaceleração do tempo causada pelo Campo Lúdico. A realidade em certos lugares está distorcida, como se alguém com uma borracha gigante tivesse apagado ou borrado a maior parte do hospital. Uma confusão de borrões se espalha por todos os lugares, mostrando apenas um único caminho até o lugar indicado no sonho.

O corredor da sala de Bernardo.

— É aqui! O lugar mostrado no sonho!

— Ali!

Serezinhos minúsculos e negros com chifres estão espalhados pelo quarto do Bernardo, mirando as máquinas ligadas a ele. Os tubos, quase no alcance de suas mãozinhas traiçoeiras.

Eu tenho que fazer algo agora ou o sonho... o sonho vai...!

— SAAASHIIII!!

O clique metálico da katana é seguido do som de sua voz séria:

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão!

Uma linha brilhante e incandescente de fogo violeta... isso é o que Sashi se torna naquele instante. A linha ziguezagueia entre os pesadelos. Cabeças são decepadas, corpos minúsculos divididos, braços e pernas e chifres cortados... tudo em uma fração de segundos.

Não... milissegundos!

Sashi é extremamente rápida e poderosa e imparável! Nesse curtíssimo espaço de tempo, retalha todos os pesadelos com uma facilidade assustadora.

— Sashi! Ali!

Um pesadelo está puxando um dos cabos, quase arrancando da máquina. O cabo que liga a máscara de oxigênio de Bernardo! Em um giro acrobático, fazendo sua saia levantar e me entregar um vislumbre generoso de sua calcinha, a espada chispa no ar e divide a cabeça do pesadelo em dois. Seu corpo cai e se desmancha em cinzas em seguida.

Quando percebo, a sala já está lotada mais uma vez com aqueles seres pequenos que lembram crianças. Eles são como baratas; a forma como rastejam pelas paredes, como se esgueiram pelos cantos do quarto, circulando o Bernardo, é simplesmente repugnante!

— Droga! Eles são muitos!

Calebe! Cuidado! — Sinto um puxão forte pela gola da camisa, vindo de trás. Charles me arrasta como um boneco, me jogando para trás e me fazendo rolar no chão.

— Ai, ui... que porra...?!

Um bocão circular, entupido de dentes, se abre onde eu estava há pouco. Se não fosse Charles, agora seria uma mosca na boca de uma planta carnívora — acho que uma mosca teria uma morte mais gentil.

Outro pesadelo? Estou ofegando, quase em ar em pensar que quase fui mastigado.

A bocarra abre e fecha, soltando um líquido pungente e malcheiroso, dividindo o corredor. Enquanto isso, Sashi está dentro da sala, protegendo Bernardo dos outros pesadelos.

Esse tipo de conexão que tenho com ela é que me faz capaz de saber o que ela está fazendo ou onde está, mesmo que eu não a veja.

Sashi está retalhando e cortando e dividindo e desmembrando... e não para. Mais e mais pesadelos vem para fazer aquele sonho se tornar real; para fazer essa premonição se concretizar. Mas... o sonho de quem?

— Sabe... — Uma voz venta pelo corredor, suave e pesada, calma e selvagem ao mesmo tempo. É Danilo quem surge andando calmamente no corredor, aparentemente falando consigo mesmo. — A parábola do filho pródigo conta uma história interessante. Sobre um homem, muito rico por sinal, que tinha dois filhos. Só que um dia, o filho mais novo do homem pede ao pai a sua parte da herança, dizendo: “pai, dê-me o que me cabes.” O velho, amando muito seu filho como amava, repartiu seus bens e sua propriedade entre os dois irmãos e entregou sua parte da herança ao filho mais novo...

E esse pastor pregando pra mim uma hora dessa da noite? Fora ter que livrar a minha própria cara e a do meu melhor amigo, ainda tenho que ouvir esse cara falando?

— Você...!

— Mas, não muito tempo depois... — Ele me ignora gloriosamente, continuando o monólogo: — O filho mais novo gastou tudo o que tinha com devassidão e pecado em uma terra distante, sem pensar no dia de amanhã. Quando sua herança acaba, o filho mais novo se vê sem nada... — Ele faz uma pausa dramática, seus olhos me fulminando. —... passando a viver como um mendigo. A seguir, voltou para o pai em necessidade e disse: “pai, pequei contra o céu e contra ti e não sou mais digno de ser chamado de teu filho. Trata-me como um de teus empregados”. O pai, amoroso, o aceitou de volta.

— Quer parar de pregar pra eu finalmente poder arrebentar essa tua cara de almofadinha? — esbravejo, cheio de toda aquela falação.

Chaaaaato pra caralho!

— Você, Calebe, é o filhbo pródigo! E o pai amável, diferente da parábola, disse para mim: “Tudo que dei e que ainda tenho, vou dar para meu filho pródigo e burro que sequer estava com a gente e sequer se lembra que existimos e vou deixar você sem nada!”

— Do que você tá falando, cara?! Somos primos, porra!

— Não se faça de imbecil, Calebe! Você sabe bem do que eu falo, primo!

— Eu nem sei o porquê fui embora! Não lembro de nada!

— Você sempre teve tudo! Tinha amigos, tinha os melhores brinquedos, se vestia melhor, era melhor nos esportes, tinha a atenção de todo mundo... até da garota que daria a própria vida por você!

Do que aquele cara está falando? E desde quando ele me odeia tanto assim para ficar atacando meus amigos? Nem parece o mesmo Danilo o qual me lembro vagamente.

—... e simplesmente você deixou tudo para trás! Escolheu largar a vida fácil que tinha por puro capricho! Tudo que eu sempre quis, você tinha, e ainda assim você se deu ao luxo de jogar tudo fora como se não fosse nada... apenas para me humilhar!

— Eu já disse! Não lembro...!

— Calebe! São... muitos! E eles não param de surgir! — Sashi grita de dentro da sala, sem cessar a luta nem um segundo.

— Há! Claro! Como lembraria? Seu acidente lhe arrancou as memórias e você se esqueceu de todos, não é? Muito conveniente! Depois de tanto tempo longe, meu pai ainda vendeu tudo que tinha e o que eu tinha para custear suas despesas! O filho pródigo tomou tudo do pai e ainda do outro irmão! Mesmo longe, meus pais sempre pensaram mais em você do que em mim!

— Cara, é sério... vai se tratar.

— Eu nunca tive nada que me fizesse especial! Nada! Sempre fui só a “sombra do Calebe”! Só que então, tempos atrás, eu descobri que tenho esse... — Ele faz uma pausa, avaliando as palavras. —... poder. Senti que isso era uma compensação do destino pelas injustiças que sofri com você; que poderia começar uma nova vida usando isso, mas...

— ...?

— Jovem Calebe, tenho que te dizer algo... — Charles sussurra no meu ouvido.

— Agora descubro que até mesmo esse direito me foi roubado. Que você também possui tal poder... — Ele anda por cima da boca aberta como se ainda tivesse um chão ali. — E não posso te perdoar por isso. Nunca vou te perdoar por isso!

— Então foi você o responsável pelo acidente do Bernardo e pela morte da Tabata! Eu tinha razão!

— Eu não queria ter feito aquilo com ela, mas por causa dela... você suspeitou de mim. Foi uma punição adequada.

— Seu filho da puta! Quem é você pra decidir o futuro...?!

— Calebe!

— Que foi, velho?! Isso lá é hora?

— Descobri mais sobre esse sonho enquanto vocês conversavam. Ele é detém um dom onírico assim como você.

— Ah, beleza, detetive! Dá pra falar algo menos óbvio agora?!

— O dom dele é o Sonho Premonitório — revela Charles. — Quem tem esse dom pode fazer os acontecimentos de seus sonhos se fazerem reais no Mundo Desperto. Um dom bem poderoso... e perigoso!

Danilo sorri, confirmando a fala do detetive.

— Olha aí! Você descobriu muito rápido, senhor detetive. Mas mesmo que saibam o que é e como funciona meu poder, o que acham que podem fazer pra me parar?

— O que ele vai fazer eu não sei, mas quebrar a sua cara parece um bom começo pra mim! — respondo, os lábios franzidos de raiva.

— Calebe!! — Sashi ainda grita, sem conseguir conter a enxurrada de pesadelos que entopem a sala cada vez mais rápido. — Não vou conseguir... proteger o Bernardo por muito mais tempo!

— Rapaz... — Charles volta a sussurrar. — Esse tipo de dom é perigoso porque não há como evitar que o que for mostrado no sonho se realize.

— O QUÊ?!! E VOCÊ SÓ VEM ME DIZER ESSE DETALHE CRUCIAL AGORA, SEU CADUCO?!!

— Exatamente, primo — Danilo volta a falar. Já estou cansado da voz dele! — Não há como evitar o futuro que meus sonhos revelam! Eles vão se concretizar e não importa o quão forte aquela samurai seja! Não importa quantos pesadelos retalhe, ela não irá evitar a morte do seu amigo!

Dois pesadelos no formato de paredões de carne, cheio de bocas dentadas como bocas de piranhas, começam a se aproximar pela frente e por trás, lembrando uma armadilha mortal de algum templo antigo de filme de ação.

Agora estamos cercados, eu e Charles.

Sashi continua a lutar feroz e incansavelmente, mas aos poucos, a quantidade de pesadelos começa a sobrepuja-la. Ela não conseguiria segurá-los por muito tempo e os pesadelos iriam... o Bernardo... Droga, droga, droga!

— Calebe!

— Droga, Charles! Não dá pra ver que tô pensando?!

— Há uma forma de parar esse Campo Lúdico.

Olho para ele, os olhos marejados de alguém que já não sabe mais o que fazer. Sashi está sendo engolida pela enxurrada de pesadelos. As máquinas são alcançadas.

— O que?!

— Vai ter que confiar em mim. — Seus olhos estão sérios como eu nunca tinha visto até agora. — Seu amigo Bernardo vai, de fato, morrer.

— ...?!!

A voz falha completamente.

— Sim. Como eu disse antes, não há como evitar o que o sonho previu e, nesse caso, o destino já está estabelecido. — Ele faz uma pausa, retirando duas facas de seu sobretudo marrom. Ele me entrega uma. — No entanto, há um jeito de contornar isso, mas vamos ter que agir depressa!

— Hã... C-c-certo!!

— Muito bem! Comece a cortar, jovem!

— HYAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHH!! — Nos jogamos contra o paredão vivo que vinha pela frente, da direção de Danilo.

Aquela faca, dada por Charles, é especial. Nesse momento, eu sou tanto um sonho quanto uma realidade; eu posso empunhar essa faca, ao mesmo tempo que estou acordado; mesmo ela sendo um sonho, eu consigo retalhar aquelas coisas irreais, não importa se pertenço ao Mundo Desperto.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!! TOMA!! TOMA!!

Cortes e cortes e mais cortes! Sangue espirra na minha cara e sinto alguns dos dentes resvalarem nos meus braços, me cortando. Eu estou cansado, sentindo dores, mas continuo avançando.

Graças a Charles, que avança mais rápido que eu, conseguimos atravessar o pesadelo parede e chegar na orla da bocarra escancarada no chão do corredor. Danilo está lá, nos encarando com um rosto de espanto, mas ainda convencido da vitória. Tirando tudo que eu sabia que era um pesadelo de lá, o resto é real.

As paredes do corredor, o teto, a janela quebrada... tudo isso é real!

— Que isso!! Como vocês...?

Eu o ignoro cabalmente e me jogo contra ele, socando aquela cara de principezinho com tanta vontade que sinto os ossos do punho estralando. Meu soco amassa seu nariz e ele solta um jato de sangue antes de cair duro para trás, sem esperar por aquele ataque. Sem reação.

— Pronto! Pau no cu abatido!

— Certo! Vamos logo! — Charles guarda sua faca e a minha e entramos para a sala.

Uma avalanche de pesadelos com corpos de criança desaba sobre a gente e nos imprensa contra a parede do corredor.

— Merda!! — Eu quase caio no triturador vivo de sonhos que era o centro do corredor nessa hora. Alguns dos nanicos escuros caem lá dentro e são completamente triturados como pedaços de banana em um liquidificador. Meu sangue gela com a cena.

Sinto mais um puxão pela camisa e Charles me tira da beira do precipício. Quando recupero o equilíbrio, outra cena me apertou o coração, focando no interior da sala: tanto as máquinas como a Sashi estão completamente soterrados por aquele monturo de pesadelos! Ela nem mesmo consegue se mexer ou usar qualquer habilidade.

— Ca... Cale-be!! — Sashi está imobilizada.

— Droga!! E agora?! Chegamos tarde?!

Sem responder aos meus gritos de desespero, Charles caminha com dificuldade pelo mar cor de açaí e negro que estava aquela sala, cheio de mãos e corpos entulhados um por cima do outro. Ele consegue alcançar o Bernardo no centro da sala, montando em cima do corpo adormecido.

E sem que eu esperasse por isso, Charles espalma a mão e enfia no peito do Bernardo! O que eu comi mais cedo agora vira pedra dentro do estômago.

— O que você tá fazendo, velho?!

— O que o sonho previu, jovem Calebe? — Uma pergunta retórica. Nós dois sabemos porque vimos. — As máquinas param, causando assim a morte de Bernardo. Estou apenas concretizando o que vimos... — O corpo de Bernardo começa a ter espasmos.

—... parando o coração dele! — concluo o raciocínio. — MAS VAI MATA-LO MESMO ASSIM!!

— Sim. É isso o que o sonho de Danilo previu — confirma Charles, me olhando por cima do ombro. — Mas diferente do sonho, só o matarei temporariamente.

—...!

Assim que o corpo de Bernardo e seu coração param de mexer, os pesadelos dentro da sala param junto. O mar de corpos pequenos e roxos dos pesadelos lentamente começam a sumir, um por um, deixando a sala vazia em questão de poucos segundos.

O coração de Bernardo está parado e a profecia mostrada no sonho se concretiza!

— Os pesadelos... sumiram!

Sashi está se contorcendo de nojo no chão, sua katana logo ao lado, como alguém que acaba de ser desenterrado.

— Aargh! Bleh! Nojooo!  

As máquinas que mantém Bernardo respirando, apesar de danificadas, ainda funcionam. O Campo Lúdico começa a se desfazer, a realidade voltando a seu curso natural.

— Agora, jovem Bernardo... — Charles faz pressão no braço enterrado no coração do cara. — Volte à vida.

Eu não consigo ver, mas tenho uma ideia do que acontece pela reação do corpo do Bernardo às ações de Charles. O detetive está apertando o coração dele para fazê-lo voltar a bater sozinho. Era como dar um empurrão para dar partida em um carro.

E o Campo Lúdico se desfaz. A realidade recupera suas cores, o tempo se normaliza. Eu me aproximo do corpo inerte do meu amigo e deito a cabeça no peito dele, procurando por batimentos... qualquer sinal, som... qualquer coisa! Responda, seu corno!

 


tum... tum... tum-tum... TUM-TUM! TUM-TUM! TUM-TUM!


 

Eu não consigo conter as lágrimas quando ouço os batimentos dele, seu peito peludo subindo e descendo.

O sonho se desfez... e ele ainda está vivo!



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