Volume 1

Capítulo 10: Dons dos sonhos

 

Agora estou na aula de Morfologia, ouvindo o professor Saramago curtir a própria voz ao falar de suas experiências no tempo de universitário em um passado distante..., mas qualquer coisa que não é as vozes da minha cabeça, se torna apenas um ruído distante e abafado.

Meu olhar está vidrado no pátio, observando Sashi conversa com o persona detetive, acertando os últimos detalhes da detenção de Danilo.

...

Ele é alguém muito perigoso para continuar à solta, então a Mandala irá se encarregar dele — disse Charles depois do ocorrido no hospital.

Danilo acordou, mas acordou estranho. Seus olhos estavam vidrados, embaçados, vazios... ele, voluntariamente, levantou e saiu andando para algum lugar como se fosse um zumbi. Ou como... estivesse sendo controlado.

Uma marionete na mão de seu mestre. Agora, para onde, ninguém sabia. Talvez nunca soubessemos. Pelo menos, não por ele. Isso explicaria seu comportamento e aura que senti no funeral de Tabata.

— Agradeço novamente pela ajuda, jovem Calebe e jovem Sashi — agradeceu o detetive, cordial. — Isso deve resolver a questão da mortes, creio eu.

— Se me permite perguntar... o que vocês... vão fazer com ele?

— Ah, sobre isso não posso contar. Informações confidenciais.

Claro... tinha que ter a parada do “confidencial”, né?

— Mas posso garantir que depois que terminarmos, ele não vai mais causar problemas para ninguém.

Meu rosto empalideceu. Charles deve ter percebido minha reação quando emendou:

— Calma... nós não vamos ferir seu primo e nem nada disso. Só iremos garantir que ele ou quem quer que estivesse controlando-o, não consiga mais usar seu dom para ferir mais ninguém. — Ele fez uma pausa e concluiu: — Abrirei uma investigação sobre isso. Deve haver mais alguma coisa além de Danilo e apenas dei o primeiro passo. 

Não pude conter um certo suspiro de alivio. Mesmo que as memórias novas que criei dele fossem a de um psicopata invejoso, eu não queria que nada de mal realmente acontecesse a ele. Principalmente agora que havia confirmado que ele não estava pensando direito.

Quem sabe meu verdadeiro primo jamais tivesse feito coisas tão horríveis.

— Entendi... então, acho que eu vou voltar já que está tudo bem.

— Pensou sobre a proposta? — Sua pergunta retomou um assunto que eu já tinha considerado encerrado.

— Já disse que não quero me juntar a vocês — reforcei.

Sashi pareceu um tanto decepcionada com o fato de eu não ter reconsiderado, mas disfarçou. Charles deu de ombros.

—  Tudo bem, mas sabe onde me achar se resolver mudar de ideia — falou enquanto desaparecia no ar.

— Pode apostar esse seu bigode que eu não vou mudar.

— É uma pena. Você tem talento para isso, jovem. Me lembra muito o sangue do seu sangue.

Levantei uma sobrancelha e meus neurônios deram tela azul.

— Ei, o que você quis dizer com isso?

— Acho que já falei demais. — Ele levantou um dedo sobre os lábios tapados pelo bigode. — A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro.♪

...

O que ele quis dizer com “sangue do meu sangue”? Ele se referia a algum familiar meu além do Danilo? Se sim, quem seria? Porra, sempre que esse velho aparece ele deixa escapar alguma coisa que faz meu cérebro sobreaquecer por dias! Que ódiooo!

Suspiro, pouso a mão sobre a cabeça ao sentir outra onda de enxaqueca vindo. Não importa o quanto eu pense, todas as respostas que encontro para as minhas perguntas — se é que eram resposta mesmo — só me levam a mais e mais perguntas.

E no fim, continuo na mesma... simplesmente não sabendo de nada sobre esse mundo.

— ...

Não tenho mais notícias do Bernardo ou do Danilo. Até liguei para a mamãe para saber algo dele, mas a única coisa que soube por ela é que o Danilo saiu da cidade. É algo de certa forma... curioso. Charles se certificou de que daria um jeito nele, então acho que não ouviria mais sobre meu primo por um bom tempo.

Com sorte, não voltaria mais a vê-lo... nunca mais. Foi a pior visita que já fiz questão de receber. Só depois daquilo eu percebi, claramente, que não se tratava apenas de mim. Esse novo mundo... essas coisas, esses poderes... têm consequências. Algumas, irreversíveis.

Nunca pensei que “sonhar” fosse tão perigoso.

Ao chegar na frente do meu dormitório, Micaela me aguarda nas escadas, mexendo no celular. Estranho... ela não é lá a menina mais esperta do mundo, mas com certeza não erraria o caminho do seu dormitório... né?

— Micaela?

— Calebe! Estava te esperando! ♪ — Ela me recebe com tanta empolgação que eu coro.

— Olha, não tenho dinheiro não, viu? — Levanto as mãos como em um assalto. Esse é o único motivo plausível para uma mulher vim falar comigo tão calorosamente.

Ela infla as bochechas, segurando uma risada ao mesmo tempo que deveria estar se controlando para não me xingar. Lá se vai minha primeira impressão, meus caros.

— Calma, cara. Eu só vim falar com você. Foi difícil achar seu dormitório.

— É... o caminho é meio complicado, mas a gente se acostuma, né? — digo com uma risada, tentando não parecer que passei vergonha agora pouco. — Mas então... o que veio falar comigo?

— É sobre o Bernardo.

Meu coração de um triplo mortal carpado dentro do peito.

— O que? Como ele tá?!

— Ele acordou!

 

*****   *****

 

— Carambaaa! Eu achei que nunca ia terminar essa porra, por Deus! — Estico os braços, sentindo a liberdade do vento e do calor.

— Esse professor ele é... bem prolixo, não é? — Sashi pergunta com certa hesitação e uma risada fofa.

— O problema não foi nem o professor! Foi a porra da Micaela, cara! A mulher não para de matraquear a aula toda, e logo na única cadeira que eu realmente presto atenção! E é porque só tem uma amiga pra conversar agora, imagina quando tinha as duas!

— Você não é lá o estudante mais aplicado mesmo — alfineta Sashi com uma careta divertida.

Outra careta, uma mais azeda, surge em resposta.

— Quê?! Eu sou sim um estudante aplicadíssimo que estuda muito, tá?!

— Imagino... kukukuku! ♥

— Aaah! Maldita! Do que é que cê tá rindo?!

— Não! Não me atinja com seu terrível livro da morte! Que medoo! Hihihihihi! ♪

Depois de me zoar um pouco como de costume, tento mandar a Sashi na frente para inspecionar o dormitório, mas sem sucesso. Eu ainda não tenho como suportar aqueles olhos brilhantes e aquela cara de manteiga derretida com biquinho.

Que fofinha, porraaa!! ♥

Então, no meio do caminho, me vem algo na cabeça que eu não sei como não tive essa ideia antes — talvez as brincadeiras de Sashi tivessem um fundo de razão afinal. —: simplesmente perguntar para ela, oras!

Só que ela responde que não sabe. Simplesmente. De certa forma, eu já esperava por isso e talvez por essa razão não cogitei a possibilidade de perguntar a ela antes. Mas ainda assim, não deixa de ser curioso o fato de Sashi, sendo parte dos meus sonhos conscientes, não saber sobre o pesadelo que venho tendo nos últimos tempos.

O mesmo pesadelo de sempre... o mesmo que me atormenta desde não sei quando. O da mulher costurada.

Tento não pensar a respeito disso enquanto estou fazendo cópias. Alguns fóruns e artigos e livros já estão sendo passados e as atividades, iniciadas. Se eu bobear, fico para trás.  Hunf... É extremamente estressante conciliar a vida comum de universitário com a de um caçador de pesadelos que tem que sobreviver a uma bizarrice por noite.

E falando em caçar pesadelos...

— Tu não vai me deixar em paz mesmo, né?

— Perspicaz, meu jovem Calebe. — “Perspicaz” é a cabeça da minha...

— O que você quer? Se for sobre a proposta para entrar na sua organização, já sabe qual é.

— Em nenhum momento me ocorreu perguntar sobre. — Velho mentiroso! — No entanto, já que tocou no assunto, gostaria de saber se pensou sobre a proposta.

Velho mentiroso e canalha!

— Ah, deixa eu ver... é... não! — Curto e grosso.

Ele abaixa a alça do chapéu, sentado sobre o balcão da xerox ao lado do atendente, mais parecido com um gangster do que um detetive. Acho que o velho Francisco é muito adepto aos filmes de época para ter formado um persona daqueles.

Mas então... uma lâmpada se acende sobre a minha cabeça, iluminando minhas ideias. Olho para ele de rabo de olho enquanto formulo a pergunta na cabeça com a rapidez de um pizzaiolo. Só que antes me certifico de não ter ninguém por perto para não dar o ar da certeza de que sou um louco varrido.

— Charles... por acaso, qual é seu dom onírico?

Ele alisa os bigodes em uma súbita expressão de interesse.

— Por que a pergunta, jovem?

— Quero saber se pode me ajudar. Quem sabe se me disser o que eu quero saber... — Um calafrio desce da nuca até a planta dos pés com o que eu vou dizer. — Eu... considere... entrar para a tal organização.

Sashi pisca varias vezes, provavelmente pensando se teria ouvido errado. Charles cruza os braços.

— Pois muito bem. Meu dom onírico se baseia em descobrir aspectos relacionados aos Campos Lúdicos e sonhos em que estou ou já estive e descobrir seus pontos fracos.

Básico, mas bem condizente com o que um detetive faria, de fato. Titubeio um pouco, concateno cada ideia e então continuo: — Mas se eu descrevesse um sonho... você poderia me dizer o que significa?

— Baseado em minha vasta experiência, sim.

— É que...

— Está falando com quem, meu rapaz? — Merda! O senhorzinho da xerox nota eu falando sozinho e sou obrigado a me fazer de doido.

— Aaah... Nada, ninguém. Só estou repassando umas falas de uma apresentação que vou fazer.

— Ah, certo. Muito bem.

Povo comum despistado. No entanto, enquanto confiro as folhas do material que vou usar na pesquisa, percebo uma coisa se mexendo... na parede. O relógio. Um relógio deveria sair do lugar sozinho assim?

Só que não... não é um fucking relógio que observo com tanta atenção e quando um par de olhos estreitos se abrem nas laterais e algo que deveria ser uma boca surge no local do relógio em si, isso se confirma; minha respiração descompassa, me causando um desconforto abismal.

Meu rosto deve ter empalidecido, pois o senhor que ainda organiza as folhas comigo me pergunta: — Você está bem? Está pálido.

— Há! É só que eu ainda não comi hoje. Depois daqui, vou passar no Restaurante Universitário para ver se tem algum rango lá — minto, passando a mão na testa. — Tá calor, né?

— Huum... está mesmo. Mas confesso que não tenho sentido calor ultimamente.

O relógio na parede rasteja asquerosamente como uma lagartixa, suas partes “mecânicas” se esticando como vermes. Deve ser algum tipo de pesadelo do velho com relação a horários, prazos ou outras coisas que demandam tempo.

Só sei que dentro do corredor, escondido no escuro, mais um par daquelas coisas flutuam e rastejam pelo teto e pelas paredes como baratas em uma boca de lobo. Charles também percebe, mas finge não ver. Já Sashi não se move, apesar de ter visto como eu, mantendo a katana de prontidão.

— Está vendo aquelas coisas, Calebe? — Charles levanta um dedo em tom explicativo. — Vou dar um exemplo do que meu dom é capaz de fazer. Esse velho que está lhe atendendo agora tem apenas algumas semanas de vida. Arrisco a dizer só duas, no máximo.

Solto uma lufada de ar sem querer com a revelação. Me esforço para afastar a surpresa e o choque do rosto. Sashi aperta os olhos com pesar.

— Ele está com uma doença terminal — Charles prossegue com a narração. — E sem ver sentido nos tratamentos, os médicos o mandaram para casa. Agora ele está trabalhando todos os dias, sem saber quando e como irá morrer. Os pesadelos que está vendo representam esse temor... do tempo indefinido.

Engulo em seco ao imaginar. Deve ser algo apavorante não sabe quanto tempo te resta, mesmo para alguém conformado. Fico submerso naquele pensamento circundante... de que alguém pode ter seu maior medo encarnado naquelas... coisas bizarras.

E raciocinando com base nisso, o que a mulher costurada representaria?

— Ahn?!

Isso... Estava tão submerso na minha própria cabeça que demoro pra processar que eu não estou mais no campus. Ou estou e não estou... sei lá. Só sei que nós três estamos no meio de um campo de futebol lotado, como um Maracanã, debaixo de um sol estalando o couro. Nem me toco que está tão quente até que começo a sentir a pele exposta dos braços arder.

— MAS QUE PORRA É ESSA?!! — Não consigo evitar de gritar e soltar o livro recém-encadernado da mão.

— Parece que fomos pegos em um Campo Lúdico inesperado — responde Charles com naturalidade.

Sashi se impressiona com a dimensão daquele estádio. Nem eu me lembro de um estádio ser tão grande assim e já fui a vários jogos de futebol.

— Grrrr!! Será que não dá nem pra ir cagar sem bater de cara em um Campo Lúdico, porra?!

Sashi não consegue segurar uma risada enquanto Charles observa o ambiente.

— Tá bom, ô Sherlock dos Sonhos!  Qual é o desse Campo Lúdico?! Vai, usa seu dom aí, anda!

— Esse Campo Lúdico não é de um agente onírico comum — analisa Charles, os dedos penteando o bigode. — Ele foi criado por um agente com dom.

— Outro ataque então? De quem agora, pelo amor de Deus?! — Eu já estou imaginando o que a professor vai dizer quando eu contar a ele que me atrasei por causa de um Campo Lúdico.

No mínimo vou receber um atestado de três dias por surto psicótico.

Só que um rosto familiar decide aparecer para nos esclarecer tudo. Ela vem correndo de não sei aonde e está ofegante, mas animada.

— Aí! Calebe! Você também veio pra assistir a minha performance?

— Micaela?!

Ela também cumprimenta Charles e depois, sua atenção total vai para Sashi, a recebendo com olhos brilhantes e um sorriso largo enquanto a cumprimenta.

— Uaaau!! Você é tão bonita! Deve ser a nova integrante das líderes de torcida dos Morritos Furiosos!

— Líder de torcida?! — repito, as sobrancelhas arqueadas.

Viro o rosto e encontro Sashi vestida com uma blusinha curta sem manga e colorida, uma saia até a metade a coxa com as mesmas cores, meiões e tênis. Sua katana é substituída por pompons coloridos, um em cada mão.

Sério... nada mais tá fazendo sentido aqui.

— O que?! — Sashi percebe a mudança súbita de visual, não sabendo se olha para as roupas exageradamente curtas ou para os pompons.

Mas ela veste agora as mesmas cores do uniforme de Micaela.

— Ficou perfeita em você, gata!! ♥ Vamo nessa que o jogo já vai começar!

— Ei, ei, ei! Espera um pouco! Calebeee!! — Ela tenta lutar contra o ímpeto da tapada da Micaela, mas parece impossível.

— Ei, Micaela! Tá levando a Sashi pra onde?! Ela tá comigo, porra!

— Ah, o nome dela é Sashi? Que nome esquisito. — Sashi cospe. — Vou te chamar de Sisi!

“Sisi” é a cabeça da minha...

— Que se foda! Ela não vai torcer com a sua turminha!

— Mas ela é linda e tenho certeza de que com ela venceremos contra as líderes rivais!

Ela aponta para o outro lado do campo, indicando outra uma trupe de “meninas” — aquelas coisas só tinham corpo de menina, mas de menina não tinham nada — com pompons preto e branco chovendo glitter e uniformes de mesma cor. Entre elas, uma figura se destaca das demais.

É bem mais alta — tipo, mais de dois metros fácil — e seu rosto lembra o de um manequim. Suas pernas me lembram uma tesoura e seu corpo tem uma cintura exageradamente fina como a da Jessica Rabbit. Bizarro é pouco para descrever aquela coisa que, certamente, é um persona.

O persona da Micaela. Quem diria que ela, dentre todos do campus, fosse alguém com dons oníricos? Eu só agradeço que os poderes não caíram na mão do Bernardo ou eu teria problemas intermináveis.

— São... pesadelos?

— Pelo visto sim — A voz culta e comedida do Charles é difícil de ouvir no meio de tanta gritaria e tambores tocando no estádio. — Creio que há condições que tenhamos que suprir para desfazer esse Campo Lúdico.

— Ah, fala sério...

— Eu vou ter que me juntar a elas?! Quero não! — Sashi continua a choramingar enquanto é arrastada pela Micaela.

— Vamos. Temos que assumir algum papel nesse sonho. — Charles pousa seus olhos em dois pesadelos que tem a aparência de técnico e o outro de ajudante, sorrindo. — E já sei até o que seremos.



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