Volume 1
Capítulo 11: A líder de torcida que anima sonhos
Estádio do Sonhocanã; está lotado, as torcidas fazendo barulho — como se as líderes já não fizessem o suficiente — quando os times entram. Olhando direito, são só um bando de coisas com forma de homens, mas sem rostos, sem personalidade, sem qualquer traço que os distinguisse um do outro além das camisas de cores diferentes.
— MORRITOS BRA-BRA-BRANCOOOOOS!! ♪ — Os pesadelos com corpo e voz de menina gritam em coreografia sincronizada.
— Não era Morritos Furiosos? — Não pude deixar de perguntar.
— Fiz uma pequena alteração nessa realidade — Charles responde, estranhamente satisfeito. — “Brancos” deixa bem mais sonoro e mais gostoso de ouvir.
— E desde quando isso passou a importar, afinal?
— Shiu! A partida já vai começar.
No meio delas, Micaela comanda a coreografia e Sashi está logo atrás com cara de “o que eu tô fazendo aqui?”. Tenho que admitir que aquele uniforme de líder de torcida até que caiu bem nela.
Talvez algum dia desses eu “sonhe” com a Sashi vestindo um uniforme tesudo de líder de torcida quando eu estiver tendo um dia de bosta, enquanto ela diz: “Yaaww! ♥ Calebe! Seu pervertido! ♥”.
— Dá para se concentrar, por gentileza? — Charles me desperta das minhas fantasias.
— Quê? Como assim?
— Não se faça de desentendido. Dá pra sentir o fedor da sua luxúria daqui. Esqueceu-se do meu dom onírico, menino?
Meu rosto esquenta. Velho canalha!
— Tá bom, tá bom..., mas já descobriu como dissipar esse sonho pirado?
Charles nega com a cabeça. Mesmo que eu não tenha demonstrado na hora, fico um pouco nervoso.
— Ainda teremos que viver um pouco essa realidade para descobrir.
O jogo começa e as meninas torcem, tanto de um lado como de outro; gritos de guerra, saltos, dancinhas coreografadas e sincronizadas... tudo até aquele momento está normal e já se passou uns 10 minutos.
— PESADELOOOS! AII! PESADELOOOS!! ♪ — As meninas do outro ladro vibram mais alto.
O time deles marca um gol nos Morritos Brancos logo após isso. Incrível como a moral sobe com a vibração e a energia das líderes, tanto do time quanto dos torcedores. Mas aí é que chegamos à parte esquisita de todo esse teatrinho.
Um domo transparente se desfaz e é a primeira vez que vejo essa película fina e invisível. Isso ocorre ao mesmo tempo que os pompons das líderes do time adversário começam a brilhar, como se... como se estivessem em chamas.
Não, espera... eles estão em chamas!
— Saaashii! Toma cuidado! — grito automaticamente, me ejetando do banco.
Em manobras acrobáticas de uma dança alucinada, os pesadelos em forma de meninas jogam seus pompons incendiados na direção das líderes do Morritos Brancos. Um bombardeio de pompons pegando fogo sem fim!
Muitos passam em branco, explodindo ao acertarem o solo. Algumas das líderes de torcida são atingidas em cheio, inclusive Sashi, na barriga.
— Bwaargh!!
A sensação que sinto a seguir é de que minhas entranhas são esmagadas dentro da minha barriga por algo pesado e quente. Uma dor sufocante que me imobiliza. Solto uma golfada de saliva e deito encolhido no chão, tremendo com a ardência e a dor.
— Jovem Calebe?! — Charles me ajuda a levantar.
— Calebe! — Percebo Sashi tentar abandonar o grupo de líderes para vir ver como estou, mas algo a impede. A mesma barreira transparente se levanta de novo, a impedindo de deixar o comando da torcida. — Que isso? Que está acontecendo?
— Ela... está... Cof! Cof! Presa?!
— Essa parece ser a condição desse Campo Lúdico.
Minha cabeça ainda tá tentando voltar pro lugar, então demoro um bocado pra refletir sobre o que ele diz, mesmo depois de já estar sentado no banco.
— Condição?
— Alguns Campos Lúdicos... — Charles retoma a explicação quando percebe que já estou bem. —... e Personas, atuam sobre regras específicas. Isso são as condições. — Ele levanta um dedo, com uma pausa. — Por exemplo, quando enfrentamos o Danilo, ele precisava criar dois Campos Lúdicos para ativar sua habilidade: um onde ele mostrava a premonição e o outro era onde ele concretizava a premonição.
— Ah bom, saquei... eu acho.
Charles suspira com pesar, os olhos focados nas meninas pesadelos que representam os Morritos Brancos.
— Então se prepara. Esse é só o começo do jogo.
***** *****
Primeiro tempo acaba e eu já tô mais esbagaçado do que se eu tivesse entrado no ringue com o Michel Tyson. Vários bombardeios vieram do lado adversário, mas no decurso da partida, contra-atacamos algumas vezes também.
Enquanto os times voltam dos vestuários, as líderes de torcida já estão montadas no campo. A partida está empatada; cada vez que as líderes de torcida conseguem animar a plateia o suficiente, o time delas fazem um gol — ou levam, dependendo de qual lado anime mais. Essa é a condição sob qual aquela batalha está sendo travada.
— E então? Como vamos contra-atacar? — pergunto do lado de fora do domo invisível, mais tostado que o arroz que eu deixo queimar.
— Não sei. Aquela altona ali não deixa escapar uma! — reclama Micaela, ofegando e batendo o pé. — Que saco essa tiazona ai!
— Pois ache um jeito ou eu não vou durar até o fim dessa partida! — chio, mostrando meu uniforme arregaçado de ajudante.
— Talvez haja algum movimento que você saiba que ela não, Mica — reflete Sashi.
— Claro que eu sei! Sei um monte! Barraco é um deles. — Sério que ela está encarando isso como uma qualidade?
— Talvez se o time de vocês conseguir vencer — Charles pontua, ainda sentado no banco. — Nós consigamos desmantelar essa realidade.
— Que que esse tiozinho tá falando? — Mica pergunta na maior inocência do mundo. Para ela, tudo aquilo é realidade e não um sonho.
— Deixa ele de lado. Tomou sol demais, só isso. — Charles tosse. — Mas você tem que se concentrar em fazer as manobras ou meu couro é que vai pro saco!
— Certo. A Sisi... — Sashi pigarreia até engasgar. —... é muito habilidosa e flexível, mas tá muito lerdinha na sincronização e na coreografia. Se ela mandar bala no timing, acho que vai dar certo o que estou pensando.
— Já sabe, né? — Me viro a Sashi, tentando esconder a cara de acabado e mostrar uma expressão confiante. — Detona aquelas pesadeletes!
Sashi sorri e responde com um joinha.
— Certo, Calebe!
Com isso a reunião acaba e os times retornam ao campo, a partida começando instantes depois com o apito do juiz. Eu estou sentado no banco com Charles, o tronco duro e inflexível, pronto para qualquer impacto enquanto os minutos passam e passam. Os dois times de líderes de torcida começam suas danças e gritos de guerra.
— VAI LÁ CHORAR NO CANTO, VAI LÁ CHORAR NO CANTO, DEPOIS DE PERDER PARA OS MORRITOS BRANCOS!! ♪
— TENTAR VENCER CONTRA O TIME PESADELO É ENXUGAR GELO, É! É, É, É ENXUGAR GELOO!! ♪
Puta merda! É um grito de guerra pior que o outro! Eu não sei se eu sinto vergonha, se eu rio ou choro. Mas no meio disso, percebo uma coisa: depois do intervalo, a Sashi está muito melhor na dança e na sincronia com as outras do que antes.
Dado certo momento, Mica põe seu plano em ação. Ela começa a tomar a iniciativa, coordenando movimentos que, até então, nenhum dos dois grupos havia tentado. As líderes se montam uma em cima da outra, Micaela na base, formando uma pirâmide.
Sashi parece entender o que elas querem fazer e salta com uma pirueta em cima das duas de cima, completando o topo da pirâmide.
— VAI LÁ CHORAR NO CANTO, VAI LÁ CHORAR NO CANTO, DEPOIS DE PERDER PARA OS MORRITOS BRANCOS!! ♪
A plateia surta com a manobra e o time dos Morritos Brancos se motiva para fazer o...
— GOOOOOOOOOLLLL!! — Algum narrador grita de algum canto.
O domo cristalino que protege o outro grupo de pesadelos femininos se desmancha aos poucos e eu lembro do que nós conversamos durante o intervalo.
..
— Sashi. Descobri algo.
— O que, Calebe?
— Tanto os pesadelos como vocês são protegidos por barreiras invisíveis que somem depois que algum dos dois times sofre um gol. O Charles calculou que a barreira deve ficar em torno de 30 a 40 segundos desativada. Essa é a chance que você vai ter para acabar com aqueles pesadelos
— Mas e se eu não conseguir? Não estou com a minha espada.
Segurei seus ombros bem firme e meus olhos estavam focados nos dela, sem hesitação.
— Eu sei que vai! Você é a Musashi, aquela que sempre derrota o mal! Qualquer coisa que estiver segurando, será sua arma! — Fiz uma pausa, segurando sua mão bem forte com as minhas. — Acredito em você!
...
Agora é o momento. A barreira se dissipa, deixando o caminho livre para um ataque certeiro. A turminha de pesadelos do outro lado não consegue replicar o movimento, pois a persona da Micaela é de um tamanho maior que o restante delas. Para executar aquela manobra, o mínimo é que todas sejam quase do mesmo tamanho.
O Morritos Brancos está na frente e Sashi percebe que é o momento de atacar, como eu esperava. Ela salta lá de cima em uma pirueta tripla e pousa no chão com firmeza e graciosidade e técnica. Os pompons dela já estão tomados pelo seu fogo violeta, assim como seus longos cabelos.
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo Especial: Pompons Fofinhos Explosivos! 』
É... o nome não é lá o mais ameaçador, mas o que importa é o que vem a seguir! Os pompons são arremessados com uma potência e velocidade de uma bala de canhão e acerta a base das líderes de torcida dos pesadelos com tudo.
— Caralho!! Isso!
— Ela conseguiu — comenta Charles, serenamente.
A explosão do outro lado do estádio joga vários dos pesadelos para os ares e oblitera o restante, que desaparece no meio do fogo e da fumaça. Ela consegue desmontar o time de líderes de torcida do outro lado com um só golpe!
— YAH, YAH, YAH, já acabou, Sisi?
—...?!
Outra turma aparece montando a mesma pirâmide que as meninas dos Morritos Brancos montaram, mas dessa vez, são clones da persona de Micaela, todas uniformizadas. Elas montam e desmontam em acrobacias olímpicas, prendendo a atenção dos torcedores e dos próprios jogadores.
— Não é possível!
— YAH, YAH, YAH, cabou né miga?
O time dos Morritos Brancos é atordoado e estão próximos de levar o gol. O segundo tempo já está quase no fim e se perdêssemos, mesmo Sashi com sua katana talvez não conseguisse desfazer o Campo Lúdico. Merda!
— Acabou é o caralho! — Micaela passa na frente e conduz o restante de pesadelos sem rosto. — Vamos meninas! Ainda tem 4 min!
— O que essa doida vai fazer?!
Elas se aproximam todas juntas da borda do campo e então, sem qualquer pudor, começam a gritar como várias bichas loucas:
— UUUUUUUUHH!! SAI FORA, BUNDÕES!! UUUUUUUUUUUUHHH!!
Vaias?!, estreitei as sobrancelhas.
Sashi empalidece e engasga com a ação inesperada. Enquanto a mim e o Charles, ficamos com cara de bunda, observando aquele pagode no canto do gramado. Ela não estava exagerando quando disse que sua especialidade é o barraco.
Só que parece dar certo, por incrível que pareça. Os jogadores dos pesadelos se desorientam com as vaias e o barraco da Mica e tem a bola tomada pelos Morritos. Um contra-ataque!
— Rápido menina! — Micaela tem seus dois braços segurados pelas ajudantes. — Como ensaiamos... manobra dois, quatro, oito! UP!
Elas correm as três juntas, pulam sobre as pernas flexionadas de duas líderes e pegam impulso para um salto. No meio do ar, Micaela é arremessada pelas duas meninas pesadelo em um salto magistral, roubando a atenção de todos do gramado, até mesmo da torcida adversária.
— Táaa poooorraa, fia! — grito, boquiaberto com a manobra.
Charles apenas bate palmas atrás. Sashi está encantada com o show de habilidade, flexibilidade e destreza dignos de uma trupe de circo, seus olhos brilhando como dois cristais roxos.
A plateia vai ao delírio e o time dos Morritos Brancos marca, perto do jogo terminar. A barreira é desfeita e os clones do persona da Micaela aproveitam a deixa para ataca-la, ainda em sua queda. Recupero o juízo e percebo que a Mica está em perigo.
— Sashi! — chamo por ela.
A samurai deixa tudo queimar... literalmente tudo mesmo — até as roupas. Quase tive esperanças de conseguir um ângulo digno de animação japonesa — enquanto se joga contra a mulher de pernas de tesoura.
A roupa de líder de torcida enquanto queima, revela de novo seu quimono branco e violeta, carregando sua espada ainda dentro da bainha. Em um saque rápido, Sashi corta ao meio a persona da Micaela... não, um clone dela, que se desmancha no ar.
As outras sete cópias a atacam simultaneamente, em uma dança coreografada de ataques com as pernas laminadas, como se dançassem balé. Sashi bloqueia e deflete quase todos os ataques com certa dificuldade, alguns arranhando seu corpo — e o meu, é claro — de leve.
— Porra!
— YAH, YAH, YAH! A estrela desse campo sou eu, piranhonas! — Cara... alguém faça esse persona parar de falar!
A barreira está se refazendo de novo. Se Sashi não atacar agora, perderá a oportunidade de dissipar o sonho. Ela parece perceber isso também, tanto que rearrumou a postura, deixando os ombros relaxados e a espada posicionada na frente dela.
— Sashiiii!! Se não atacar agora, não vai...
Ela ergue a espada sobre a cabeça de repente, segurando-a firme com os dois braços. E então, fala em voz alta:
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Divisor Horizonte Primaveril! 』
Um pouco antes dos golpes dos clones a acertarem, uma pressão esmagadora é feita no ar, fazendo o solo ao redor dela ceder e explodir; uma lâmina invisível de pressão sai rasgando tudo que está na frente: o ar, o gramado, as traves, os jogadores, os clones e, é claro, a própria persona.
O ataque poderoso acerta a mulher de pernas de tesoura em cheio, do outro lado do campo, demorando só o embainhar da katana de Sashi para reproduzir seus efeitos. Quando pisco algumas vezes, ela está lá dividida ao meio enquanto a própria realidade daquele sonho parece ser retalhada com o golpe da Sashi.
Micaela solta um grito e cai enquanto todo o cenário e o espaço daquele sonho começam a se desfazer.
— Não!
— Está tudo bem, Calebe — Charles, já com seu típico uniforme de detetive londrino, toca meu ombro. — Ela não morreu.
Quando me dou conta, já estou de volta ao campus, de frente para a xerox. Onde raios eu me meti? As horas se passaram? Que dia é hoje? Quem sou eu? E, como a voz da consciência me chamando para o mundo, Sashi toca meu braço delicadamente como um anjo.
Ela está do meu lado, aninhada ao meu braço e me olhando com um sorriso. Fofo para um caralhoooo!! ♥
— O que aconteceu?! Acabou? — Desorientação é pouco para descrever o sentimento que estou tendo agora.
— Sim. A senhorita Sashi dissipou o Campo Lúdico. Muito bem, mocinha.
Ela cora e agradece abaixando a cabeça. Procuro em todos os lados para ver se encontrava a Mica em algum canto e, para minha surpresa, ela sai descendo as escadas como um jato, toda descabelada.
— Senhor Amado!! Eu me atraseeeeeiiiiii!!
***** *****
No outro dia, entrego o relatório fechado sobre as leituras, meus olhos ardendo como dois pedaços de carvão quentes na minha cara. Passei a madrugada todo concentrado nisso e ainda preocupado se apareceria algum pesadelo intrometido para sacanear com o meu trabalho.
Dá certo no fim e o professor aceita. Volto para a cadeira todo moído, mas com a sensação de missão cumprida. Ao lado, Micaela está morta em cima da cadeira, dormindo mais que um bicho-preguiça.
— Você tá bem?
— Eu... tive um sonho muito estranho ontem. — Ela levanta a cabeça, o canto da boca todo babado. — Sonhei com você, um velho de bigode estranho e uma garota samurai muito assustadora que destruiu todo o estádio onde eu torcia.
Disfarço um riso, olhando para a Sashi sentada na janela, com uma careta por ter levado o nome de “assustadora”.
— Haha... imagino!
— Eu tenho que parar de tomar muito energético. E de andar com você também.
— Ei!
Depois da aula, minha vontade é de passar na lanchonete mais próxima e me presentear com o burgão mais calórico que eles tivessem no cardápio. Lidar com a persona da Mica e um trabalho de mais de 20 laudas tinha sido demais para mim.
— Calebe... — Sashi me chama.
—...?
— Eu acho que... gostei de ser líder de torcida. Posso ter um uniforme só pra mim?
Empalideço, parecendo um anêmico. Da última vez, eu quase morro com isso, sério. Acho que ser samurai é mais seguro para mim do que uma líder de torcida.
— Haa... vou pensar no seu caso.
— Eu sei que você me imaginou com aquelas roupas... fufufu ♥ — Sua voz agora está bastante sensual. — Como você estava me comendo com os olhos... ♥
— Aaah!! Não vamos mais falar nisso!!
— Hahahahahahaha!
No meio do caminho, percebo alguém se movendo de forma furtiva entre as plantas e prédios da praça, de um poste a outro. Ele olha de lado a lado, parecendo preocupado se está sendo seguido ou não.
Enrico. O que será que ele está aprontando?