Volume 1
Capítulo 12: Portal para sonhos I
— Fiiiim de semanaaaaa!! #Sextou, papai!! HAHAHAHAHAAA!!
Sashi vem acompanhando logo atrás, surpresa pela minha alegria — e como é difícil eu expressar alegria ultimamente!
— E então, Calebe? Vamos pra onde?
— Pra casa! — digo, determinado. — Primeiro, uma maratona de duas horas de Liga dos Mitos com os parças e uma caixa de pizza pra acompanhar... ah, e muito refri! Até o talo! Depois, vamos de maratona de filmes... ou animes é melhor? Aí terminamos com uma madrugada de filmes adultos para lacrar essa noite! Ai papai! Essa noite que eu me acabo!
— Hahaha! Deve está bem animado. Faz tempo que não vê sua mãe, né?
Paro no seco de repente. De fato, Sashi tem razão: eu não a vejo desde o primeiro dia e, a partir da primeira vez que pisei na Universidade Morro Branco, tanta coisa aconteceu. Sashi é a maior prova visível — só pra mim, é claro — de que minha vida nunca mais seria normal de novo.
— É mesmo. — Eu apanho o colar que a mamãe me deu na mão, olhando fixamente para a pedrinha preta e brilhante que é o pingente. — Nem faz tanto tempo assim, mas parece uma eternidade.
Ela disse para mim no primeiro dia que queria que eu levasse para casa uma menina bonita para ela conhecer. Esperanças demais que essa velha tem em mim! Se ao menos ela pudesse ver a Sashi, ficaria, no mínimo, espantada. Iria perguntar para mim se ela trabalhava com cosplay ou se era alguma atora de um filme de baixo orçamento de samurai.
— Mas tá tranquilo! Eu vou chegar, conversar com ela e contar tudo da faculdade! — Tirando as partes que eu quase morri lutando contra pesadelos e pessoas com poderes bizarros. — E depois, vamos seguir com a programação da noite.
— Uhum! — Sashi concorda com um sorriso.
— Eu estou te dizendo, Sashizinha! Essa noite vai ser a mais pica dos últimos tempos!!
***** *****
— POR QUE LOGO EU?!
Sinto meus sonhos vazando pelos dedos como areia enquanto encaro minha mãe e minha tia Isolda sentadas na mesa da sala, implacáveis e impiedosas, ditando minha sentença.
— Porque é sua obrigação como um sobrinho responsável — declara minha mãe, na maior cara lavada.
— Obrigado Márcia por nos deixar ficar esse fim de semana. E obrigado, Calebe, por cuidar do Ruan Neto.
Minha tia Isolda é uma das muitas irmãs da mamãe e uma das mais vida loka que se tem registro no sangue da família. Desde que virou servidora federal e se mudou para Brasília, parece que esqueceu que tem família aqui nesse buraco do interior de São Paulo.
Logo hoje, que eu penso que vou ter um descanso de toda a bizarrice que se tornou minha vida ultimamente, ela decide dar as caras para nos visitar. E ainda mais trazendo meu sobrinho, um pivete catarrento de 7 anos que com certeza vai monopolizar meu pc. Que ódiooooo!!
— É um prazer ver a senhora de novo, tia Isolda! Como tem passado? — Vá embora! Vá embora imediatamente!
— Estou muito bem, querido. Fico admirada o quanto você cresceu! — Diz ela sorrindo.
— Calebe, eu e a Isolda vamos para um evento agora nesse fim de semana e eu quero que fique tomando conta do Calebe até a gente voltar, está bem?
Sinto algo quebrando dentro de mim, mas mantenho o rosto simpático ao máximo, empurrando o desgosto para debaixo do tapete.
— Sim..., mas eu tenho que perguntar... quando vocês vão mesmo?
— Vamos agora de noite e voltamos amanhã durante o almoço. Já deixei tudo separado para você e o Ruan Neto. Os números de emergência e de comida estão em um papel grudados na geladeira. Deixei comida pronta e é só esquentar amanhã para vocês dois. Se ele quiser brincar no seu computador, deixe tá?
Posso deixar ele brincar no seu quarto e com as várias pecinhas pequenas dentro das suas gavetas também, mamãe?
— Tá bom. Só isso, mamãe?
— Só isso. Qualquer coisa, só ligar pra gente que a gente volta na hora, tá?
Concordo com um gesto de cabeça. Ao me virar, mordo os beiços como quem mastiga um pedaço de carne, tanto que sinto o gosto ferroso do sangue na boca depois.
— Argahj!
— Calebe? O que foi? — pergunta minha mãe.
— Nada! Nada não! — Saio a andar, quase quebrando minha máscara de filho perfeito.
Olho para os lados e não vejo a Sashi em canto nenhum. Acho estranho; geralmente ela não costuma se afastar de mim a menos que eu peça e, àquela altura, ela já estaria rindo da minha cara por ver todos os meus planos pro fim de semana irem pro espaço.
— Sashi? — sussurro seu nome, chamando-a.
Ao chegar no meu quarto, ela está lá, admirando tudo com um olhar contemplativo, distante, como se estivesse imersa em algum pensamento, alguma lembrança. Eu tenho em mente que eu tenho que ter um cuidado redobrado quando for conversar com ela aqui em casa.
Já bastava uma parte do campus pensar que eu sou algum tipo de doente mental. Eu não precisava que minha mãe também achasse o mesmo.
— O que foi, Sashi?
— Nada, Calebe — responde ela com uma leve surpresa. — Eu só estou aqui pensando nos bons momentos que tivemos aqui.
— Tivemos?
— É... das brincadeiras, das aventuras, de todas as vitórias — Ela apontou para um boneco de um robô feio que eu guardo desde a infância, em uma das prateleiras. — Eu sempre vencia ele de algum jeito no final.
Ela fala como se estivesse comigo desde... sempre. Como se de fato fosse...
— Espera um pouco, Sashi!
Vasculho o velho baú de brinquedos que ainda tenho guardado debaixo da minha cama e lá, no meio de vários bonecos, carrinhos, monstros de pelúcia e de plástico, braços e peças soltas de outros brinquedos e casas e blocos de montar, encontro ela...
A Musashi, a grande espadachim que derrota todo o mal!
Está empoeirada e velha, com um dos braços faltando e os detalhes e pintura ruídos pelo tempo, mas com certeza é ela. Sashi se aproxima e observa sua versão em miniatura com um rosto indecifrável.
— Essa... sou eu.
Nos entreolhamos, parecendo ler as mentes um do outro — um claro eufemismo, já que ela, teoricamente, faz parte da minha mente.
— Não se parece em nada comigo — diz Sashi, enfim.
Coloco a bonequinha carcomida ao lado de sua versão em escala humana para uma rápida comparação; as roupas com certeza são iguais, apesar da falta de cor e forma em alguns cantos; A cor de pele é a mesma e os enfeites que coloquei nela, como o cinto militar — que transplantei de outro boneco, imagino — também batem.
Mas as semelhanças acabam aí. A boneca está sem arma, então não tenho como fazer uma comparação. Além disso, tanto o rosto como os cabelos são totalmente diferentes. A boneca tem um cabelo curto e lambido, o rosto inchado com lábios grandes e olhos irregulares.
Já a Sashi tem cabelos lisos e pretos — que pegam fogo, ficando violetas — chegando até a metade das costas, rosto oval com lábios finos e olhos amendoados, meio puxados, e brilhantes. Mesmo que vestisse a roupa e as cores da boneca, sua aparência não vinha daquela “Musashi”. De quê ou quem era aquela aparência então?
“Minha aparência vem de seu próprio subconsciente, Calebe. Sou vista por seus olhos como uma figura familiar de autoridade. Em outras palavras, alguém ou algo especial em seu coração”, disse Sashi no dia que nos conhecemos.
Mas então... de quem era...?
— Calebe? — A voz da minha mãe me alcança desde a sala.
— Já vou, mãe!
Olho uma última vez para a Musashi maneta em minha mão, com um rosto semiapagado, mas sorridente.
Alguém... especial pra mim, é?
***** *****
Ruan Neto volta com meu tio Heráclito do supermercado e o moleque já está ligado no 220. Depois que os três se despedem, é hora de encarar a mais difícil tarefa dada ao homem moderno: cuidar de uma criança ao passo que resiste a uma vontade latente de esganá-la a cada minuto.
O moleque não para quieto! Estou na sala assistindo ao noticiário da noite e sinto que é a vigésima vez que ele passa correndo com um carrinho puxado com corda, simulando o alarmar de uma sirene de caminhão de bombeiro com voz de garça com virose.
Enquanto isso, a principal notícia que figura nos noticiários locais atualmente é sobre uma onda de mortes misteriosas.
— A polícia se depara com um complexo caso de mortes que vem assombrando os moradores de Morro Branco no interior de São Paulo. A princípio, as autoridades alegaram que fossem mortes naturais, mas no decorrer das investigações, a polícia descarta a possibilidade de mortes naturais e crê que sejam homicídios. O inquérito segue em curso para encontrar pistas sobre as motivações e o paradeiro do assassino, mas até agora...
— Cara... não se fala de outra coisa não? Política? Besteirol? Análises dos jogos da rodada... — Mudo de canal várias e várias vezes até enjoar, mas a televisão é a única coisa que deixa meu ânimo a um nível aceitável.
— Crianças são mesmo uma dádiva do Criador, não é?
— AAAAAAAAAAAAAAHHHH, VIAAADOOOOO!! — Meu corpo, em um impulso natural por puro reflexo, se joga com um rolamento para trás e eu caio no chão.
Ruan Neto olha para aquilo, pendendo a cabeça para o lado, sem entender.
— Que cê tá fazeno, Cabe?
— N-n-não foi nada. E-e-eu me assustei só. — Só faltava meu sobrinho também pensar que eu tenho uma caixa de parafusos a menos. — Vai brincar no meu quarto, vá. O... — Minha voz se espreme quando penso no que vou falar. —... computador... tá lá pra você. Pode jogar nele.
— Ieeeeeeeeebaaa! — O pivete saiu saltitando pela sala até o corredor.
— Não corre, peste! — Me recompus e me virei para o homem sentado no sofá. Ou melhor... persona. — Qual é a tua, mano?!
Charles mantem a postura enigmática e rígida dele, fingindo que quase não me matou do coração. De novo! Ele já fazia isso de propósito para me deixar puto, aparecendo nos momentos mais inconvenientes.
— Nos encontramos de novo, jovem Calebe.
— No caso, você nos encontrou. Que foi agora? Seja lá o que for, não posso ajudar porque já tô dando uma de babá aqui.
— Não era Danilo.
Ele apenas diz isso e meu cérebro dá um nó, rebobinando alguns dias.
— O quê?
— A energia que senti. — Charles está mais sério que o habitual. — Por mais que Danilo tivesse um dom muito poderoso, a energia onírica que eu vinha perseguindo não era dele.
— Claro. Você mesmo disse que ele estava sendo controlado por alguém, não é?
— O que significa que quem quer que esteja por aí, causando distúrbios no tecido da realidade, ainda está agindo. Voltei à estaca zero — lamenta o detetive com um suspiro frustrado.
— É... é uma pena, mas agora se não se importa, eu tenho que cuidar do pedacinho de cão do meu sobrinho.
Charles gruda os olhos analíticos em Ruan Neto e depois me lança um olhar de aviso. Não gosto nada quando ele vem com esse ar misterioso de seriedade. Sashi pende a cabeça para o lado, confusa.
— Tome cuidado com as crianças, jovem Calebe — adverte, em um tom assustadoramente sério.
— O que? Que que cê tá dizendo, cara? Acha que me sobrinho de 7 anos vai tentar me matar com algum dom onírico? Ele é só uma criança!
— E é por esse mesmo motivo que deve tomar cuidado com ele. — Charles entrelaça os dedos. — Crianças são os seres mais puros e cheios de vida que existem. Sua imaginação não tem limites e, aliados à energia calorosa que possuem, são portais vivos para vários tipos de pesadelos.
Porra, meu irmão... será que nem mesmo no fim de semana, dentro de casa, estou livre dessas coisas?
— Está dizendo que me sobrinho pode me matar sem querer?
— Estou dizendo para ficar vigilante. Uma vez que ela adormeça, se tornará um portal para pesadelos.
— Certo, certo. Agora pode fazer o favor de se retirar da minha sala? E, se veio aqui saber, mais uma vez, a resposta é não!
Eu o expulso de uma forma super delicada e vou ver como está o pestinha do meu sobrinho, deixando Sashi na sala, imersa em seus pensamentos. Ele está no quarto, deitado no chão, dormindo tanto que babava.
Como um pivetinho desses poderia ser um problema?
Depois de acordá-lo, vesti-lo e deita-lo em sua cama, só saio de perto dele quando me certifico de que ele está dormindo. Ainda assim, não esqueço, em nenhum momento, do aviso de Charles. E sempre que ele aparece, é porque alguma merda está prestes a acontecer. Me certifico de olhar ele mais uma vez e depois vou pro me quarto.
Lá não tem uma cama reserva para a Sashi ficar como no dormitório do campus, então ela teria que ficar em algum outro lugar. Diz ela que vai ficar no armário como se fosse o bicho-papão, garantindo o elemento surpresa para caso surgisse alguma coisa, mas eu asseguro: nada vai acontecer essa noite.
Dormirei como um bebê e amanhã será outro dia normal. Normal! Sem pesadelos, sem Campos Lúdicos insanos, sem pessoas querendo me matar com personas... só a doce normalidade.
E então eu fecho os olhos, deixando aqueles pensamentos e pressentimentos de lado. Até que eu... começo a sonhar.
Aquele pesadelo de novo! As silhuetas quadradas no horizonte, o céu em um vermelho escuro, a floresta, a trilha, a perseguição... tudo de novo! Mas dessa vez, eu não tropeço e caio rolando como nas outras mil vezes que tive aquele sonho. Não... isso me permite mais liberdade, de forma que eu tomo coragem e me viro, conseguindo olhar bem no rosto daquilo que vinha me pegar.
— O QUE VOCÊ QUER DE MIM?!
Sem respostas. Ela se aproxima mais e mais... É um ser muito alto, feito de sombras e escuridão e, ao se mexer, reproduzia um som assustador e mortiço de arrastar de correntes. Seu rosto, devido à altura e à pouca iluminação do lugar, ficava escondido.
Mas as garras cintilantes e afiadas que chispam nos seus dedos, não. Eu não tenho reação alguma além da paralisação completa dos músculos. As pernas não correm, não cedem, apenas tremem. Os braços estão balançando como se estivessem quebrados, sem força. O coração bate forte como um tambor e a respiração sai quente e apressada, o ar sem conseguir voltar aos pulmões.
Dessa vez, ela carregava algo consigo. Não... não era algo, mas alguém. Um corpo, em suas mãos gigantes e ossudas.
E então...
— Hum! — Eu abro os olhos de uma vez, mas sem gritar ou quase pular da cama.
— O~~~~~~~~lá~~~~~~~~~~...
Um bicho com aparência de uma pessoa desnutrida, as vertebras da coluna saltando sobre a pele empalidecida e desprovida de músculos. Ele olha para mim do teto, com aqueles olhos fundos e pretos, sem vida, enquanto murmura com a voz grossa e arrastada.
Meu estômago vira do avesso quando percebo que sua cabeça está do lado das costas, como o de uma coruja.
— Gyaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh!!
— HIIIYAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!!
Sashi brota do armário gritando e atacando. Sua katana cospe chamas violetas e, em um único balançar, ela corta ao meio aquela coisa assustadora que rastejava pelo teto como uma aranha como se fosse um pedaço de presunto.
— Que merda foi essa?!
— Um pesadelo. Já cuidei dele — diz ela, confiante e serena ao embainhar sua arma.
— Eu sei! Porque tinha um pesadelo no meu...
— Gu~~~~~~~~~~~~gy!
Sinto uma pressão pesada esmagando meu ombro e nesse momento enquanto ouço aquele som bizarro, lembrando um soluço arrastado; meu pescoço trava hard, parecendo o guidão de uma moto trancada, sem conseguir movê-lo para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.
Não ouso olhar para o lado até que sinto dedos frios e grossos dedilharem meu ombro enquanto o que quer que fosse se movia por cima da minha omoplata como uma aranha. Minha respiração parece parar nesse exato segundo... quando... quando...
— Eh... eh... eh?!
— Guu~~~~~~~~~gy~~~~!!
— PUTA QUE PARIUU!
— HYAAAH!!
Sashi empala aquela coisa com sua espada em um movimento, me fazendo cair da cama e engatinhar pelo quarto com o corpo inteiro tremendo, lembrando um estado de hipotermia. Quando enfim consigo recuperar algum juízo, posso enxergar melhor o que se mexia no meu ombro.
É uma mão azul com dedos asquerosos e deformados e veiúdos, unida a uma cabeça do que parecia um boneco quebrado, sem um olho, com nada no crânio irregular além de poucos fios dourados. A espada atravessa sua boca aberta e sai na nuca daquela coisa; um pescoço unido a um coto do pulso de uma mão fantasmagórica.
O bicho desaparece poucos instantes depois, reduzido a cinzas.
— Que merda que tá acontecendo?!
— Não sei, Calebe — admite a samurai. — Estou sentindo uma forte força onírica..., mas...
— “Mas”?!
— Não consigo precisar sua origem. Ela está muito forte em todos os lugares.
Para um bom entendedor, meia palavra basta. Charles — como todas as vezes que aparece — tinha vindo prenunciar a merda que estava para acontecer e agora estou vendo-a se concretizar bem diante dos meus olhos.
O fato de Sashi não conseguir saber a origem daqueles sonhos era bem óbvia, e isso se confirma quando observo pela janela a alguns... monstros, andando — ou rastejando, ou levitando, ou saltitando — casualmente pelo quintal da minha casa.
Toda a casa está tomada por pesadelos.