Volume 1
Capítulo 13: Portal para sonhos II
Todos nós já jogamos jogos de Survivor Horror alguma vez na vida, não é? Como em todos os jogos, o instinto de sobrevivência do jogador é posto à prova, testando as capacidades de quem joga de saber lidar com situações de escassez e perigo constante.
Afinal, você é o único sobrevivente! Você está cercado por monstros ou zumbis por todos os lados; você está em constante desvantagem.
Com isso em mente, a conclusão mais razoável a que se pode chegar é que, em um cenário onde se encontrando encurralado, haja uma progressão linear. Um cômodo por vez. Devagar. Na maciota.
O meu quarto está cheio daquelas coisas e mais esperam no corredor. O quarto do Ruan Neto — quarto de hóspedes — fica no fim do outro corredor, do outro lado da casa. Fora o corredor lotado de bramidos, gemidos e sons apavorantes, nós ainda temos que passar pela sala e a cozinha.
Sashi se certifica de que não há mais nenhum pesadelo de penetra no quarto e vamos para o corredor.
— Porra! Cuidado, Sashi!
Tem um pesadelo aranha enorme rastejando pelo teto do corredor. O bicho tem um abdômen peludo enorme, umas 16 — pelo menos a que pude contar rapidamente — patas com pelos que parecem facas e três cabeças, cada qual com muitos e muitos olhos vermelhos. Uma visão digna de um filme de terror.
Me pergunto como aquilo nasceu da mente de uma criança.
Abaixo, uma matilha de cachorros desfigurados, de quatro olhos, dois rabos e oito patas cada um — pelo menos as que eles usavam para se mover — vinham na nossa direção; alguns são de carne, outros de ossos e até sombras, mas todos sã igualmente horríveis.
— Sashi!
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão! 』
Sashi desembainha a espada e ataca, se tornando aquele raio violáceo brilhante enquanto descabeça os cachorros endiabrados, todos ao mesmo tempo em questão de segundos.
Nesse meio tempo, a aranha monstro acima da gente dispara uma cusparada em mim e quase sou pego pela teia dela se eu não tivesse me jogado para o lado em um pensamento rápido.
Droga!
E aí assisto à cusparada caustica derreter completamente a porta do meu quarto, reduzindo-a a um líquido verde e malcheiroso que faz meu estômago fervilhar. O que andam dando pra esse garoto jogar ou assistir?!
— Merda! Merda!
Sashi não perde tempo e salta, enfiando sua espada na barriga oval do bicho, arrancando sons e chiados desconfortáveis enquanto a aranha esperneia no teto, aquelas dezenas de pernas se movendo de forma asquerosa. Mais daquela gororoba verde espirra em jatos enquanto Sashi fatia o monstro como alguém corta uma picanha no churrasco.
Após o serviço, ela balança a espada para limpar a lâmina enquanto o corpo fatiado da aranha e dos cachorros desaparecem como cinzas. Mas não penso um momento sequer que estamos a salvo.
Chegando à sala de jantar — uma sala que um dia existiu ali — um buraco negro massivo sugava tudo que entrava em seu campo de ação para dentro, enquanto a gravidade e qualquer lei da física parece deixar de existir naquele espaço; móveis flutuam e quicam uns nos outros, coisas como blocos de pedra, paredes, objetos e as encanações são torcidas em ângulos impossíveis; até mesmo os conceitos de luz e sombra, profundidade e dimensionalidade não parecem fazer sentido algum ali.
Não só de sugar e distorcer coisas vivia o buraco negro... ele também está cuspindo mais e mais coisas bizarras!
Uma horda de esqueletos cartunescos marcham em fila contra a gente, vários deles ejetados do centro da singularidade, se desmontando e se remontando no ar. Morcegos com a cabeça de espada sobrevoam a gente, nos cercando de todos os lados.
Mais daqueles cachorros aparecem, e alguns deles vem com um upgrade dessa vez: uma grande cabeça de tubarão cheia de olhos e chifres, mordiscando.
— Mas que bosta é essa que tá rolando aqui!?
— Toda a casa foi envolvida em um Campo Lúdico — diz Sashi brevemente ao desembainhar a espada. — Fica atrás de mim, Calebe!
De dentro da cozinha, onde duas torres de madeira foram erguidas do mais absoluto foda-se, uma tropa daqueles bonecos de soldadinhos verdes prepara para catapultar algo contra a gente: um sofá em chamas! O sofá da mamãe, caralho!
Porra! Como eu vou explicar pra ela que o sofá caro da sala de estar virou munição para uma catapulta de soldadinhos de brinquedo?!
— Armar! — exclama o comandante deles.
— Tsk! São muitos! Não tem como eu lidar com todos e te proteger ao mesmo tempo! — lamenta a Sashi, mantendo a katana sempre a postos.
Por mais que eu deteste admitir, ela tá certa. Eu sou só um fardo. Um peso morto que ela tem que proteger. Não posso arriscar ser desvivido por qualquer uma daquelas coisas.
— Sashi! Tive uma ideia.
—...?
Seguro a mão quente e delicada dela com força, fazendo-a corar.
— No três, a gente pula, beleza? 1...!
— Quê?!
— 2...!
— Disparar homens! — berra o comandante.
Duas bolas incandescentes se aproximam rápido, fazendo o bando de pesadelos morcegos se dispersar.
— Hyahahaha! — Os esqueletos vestindo armaduras de papelão e espadas de madeira atacam.
— 3!
— AAAAAAAAAAAHHH!!
Nós dois nos jogamos no centro do buraco negro, sentindo a pressão brutal pressionar nossos corpos ainda no ar enquanto somos puxados para o centro da massa estelar brilhante. Se minha teoria estivesse certa, seríamos “cuspidos” de volta para sala ou em outro lugar. Se não...
Me sinto espremido como um assalariado no busão de volta do trabalho no horário de pico, só que 2x pior. Em nenhum momento largo a mão da Sashi, que também aperta forte a minha mão enquanto grita.
Outro momento, sinto outro tipo de pressão meu corpo e a sensação que tenho — não sei quanto à Sashi — é de que estou dentro de um canhão inundado e que vou ser disparado a qualquer momento.
E, de forma irônica, é definitivamente isso que acontece.
Nós saímos voando até bater em um pedaço de pedra solto no ar e mergulhar no chão com tudo. Para nossa sorte, o chão é tão macio quanto um travesseiro e até pulamos um pouco antes de estabilizarmos no lugar.
— Aff!
— Que ideia doida! — Sashi reclama com tapinhas no ar.
— Você tá bem?
— Tô sim, mas... que coisa macia é essa que a gente caiu?
— Eu não sei... eh?!
— HIHIHAAAHAHAHAAA!!
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHH!!
De repente, uma risada alta e estridente tomando todo aquele espaço, seguido do chão abaixo de nós se abrindo. Um rosto gigante e aterrorizante de um palhaço surge no horizonte, rindo com seus dentes pontudos amostra e olhos vermelhos brilhantes como dois faróis.
— Essa nãaaaaaao!!
Aquilo em que nós pousamos é a mão enluvada dele, essa mesma mão que se abre e agora se fecha para me agarrar como um bonequinho na mão de uma criança. O palhaço sai de uma caixa, seu tronco conectado à ela por uma mola tamanho extra super GG.
— MERDA!! — Ele consegue me agarrar ainda no ar, apertando meu corpo.
O ar dentro dos meus pulmões é brutalmente obrigado a ser expelido, fazendo meu peito arder. Tusso convulsivamente, tentando trazer o ar perdido de volta, mas não tá dando certo. Que dor, que dor, que dor...!
— Sa... shi!
— HYAAAA!!
Sashi desce com um golpe vertical de cima para baixo, as chamas violetas vertendo da lâmina como água. O golpe parte o braço do palhaço demônio gigante e eu começo a cair, ainda imobilizado.
— Aqui! Segure em mim!
O palhaço fica olhando pro coto, balançando a cabeça de um lado pro outro, tentando entender que acaba de perder um braço. E então ri alto.
— GYAHAHAHAHAHAHAHAHAHAA!!
— Que?
Eu ainda estou tentando recuperar o ar depois de quase ser esmagado por um palhaço. Por isso eu detesto palhaços! Pelo menos ele não me deu uma tortada na cara.
— Anhh?!
Um martelo... um martelo gigante, descendo nas nossas cabeças! As risadas continuam e ele se recupera do ataque da Sashi. Ela saca a katana e ergue sobre a cabeça, me colocando atrás dela para defender o ataque. Tudo que se pode enxergar do céu agora é o vermelho do martelo que se aproxima.
O choque entre o martelinho — que de “inho” não tem nada — e a espada da minha persona cria uma bolha de vácuo naquele espaço, quase nos esmagando. Faíscas se espalham em volta e me admiro que ela consegue segurar aquela coisa enorme sobre a cabeça, sem nenhum esforço extremo.
Não só sua velocidade, mas também sua força é tremenda.
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Círculo do Espelho do Inverno! 』
Sashi empurra e depois corta. Afasta e então divide. Seus braços viram e ela desenha uma linha vertical de baixo pra cima, as chamas violetas se condensando enquanto acompanham seu movimento. A samurai por fim gira sobre os calcanhares e monta uma área circular com vários cortes em forma de lâminas violetas brilhantes.
Os cortes são precisos; não só o martelo foi de saco como o palhaço sorridente também, reduzindo-os a papel picado. Na verdade, o próprio espaço parece cortado, se distorcendo, se separando com o que quer que chegasse perto. Uma fenda no ar aparece com aquele mesmo buraco negro que vi no chão da sala de estar.
— Ali! Acho que temos que ir pra lá! — aponto ao gritar.
Sashi concorda com um movimento de cabeça, parando no meio do movimento.
— Certo! Segura bem em mim, tá bom? — Sashi está um pouco corada. Não sei se é pelo contato ou por ter girado mais que um peão.
Subo nas costas dela, segurando seus ombros enquanto tento conciliar firmeza com gentileza, equilíbrio e distância mínima. Não vou cair nesses cenários de comédia romântica, não vou!
Só que simplesmente não deu. Como um foguete, Sashi se lança do chão em uma velocidade absurda que quase me faz sair voando tal qual uma folha sendo soprada. Ela consegue pular toda aquela distância de metros em metros do chão apenas com a força de suas pernas?!
Entre detritos e pastilhas e confetes, Sashi quica com suas pernas poderosas, me carregando no braço como uma mala — não quero saber da piada que estão pensando sobre isso. O palhaço monstro, mesmo dividido ao meio, ainda continua a rir e se contorce enquanto faz isso, de forma assustadora.
Falta poucos metros para o buraco negro.
Sashi salta mais e mais rápido.
— Ei, ei, ei, ei, ei, eeeeeeeeeeeiiii!! — A única coisa que consigo fazer em minha inutilidade é cobrir o rosto com os braços.
Mergulhamos na singularidade — está mais para um rasgão no ar — e de novo essa sensação incômoda; o corpo sendo espremido, esticado como a porra de uma mola, até quase se partir. E então, um supetão que obriga a merenda que comi a voltar por onde entrou.
— Calebe. — Ouço a voz de Sashi me chamar.
Abro os olhos devagar e estamos no que parece ser a cozinha. Um cômodo mais perto do quarto do Ruan Neto, mas ainda assim não acertamos o portal. E aí entendemos o que parecia óbvio: os buracos negros em cada cômodo da casa eram portais para os outros cômodos.
— E agooo... raAAAAAA!!
— Calebe!! — Sashi me agarra pela camisa e impede de eu mergulhar em um abismo sem fundo.
Quando volto para o chão, depois de um quase-infarto, percebo o chão meio branco, liso, frio... algo meio incomum para...
— Um cano?!
De repente encolhemos e estamos agora sobre um cano de pia! E não tinha só aquele sobre o qual estamos pisando, mas vários e vários passam sobre a nossas cabeças, se cruzando, se conectando e pingando... refrigerante?
É o que meus lábios dizem ao provar do conteúdo que pinga de um deles.
— Que tipo de Campo Lúdico é esse? — pergunto, coçando a cabeça.
— Queria que o Charles estivesse aqui. Ele já teria desvendado como dissipar esse sonho — lamenta Sashi e depois me fuzila com um olhar desagradável. — Ele estaria aqui se não tivesse expulsado ele.
Dei de ombros.
— Qual é? Ele já tava enchendo o saco e a minha noite já tava uma merda mesmo.
Sashi suspira.
— Só sei que temos que achar o próximo portal logo antes que... — Sashi para de falar de repente, seus olhos paralisando para algo logo a frente.
— O que...?
— Tem... algo saindo... detrás daqueles canos.
E então, vindo das sombras, fungando e piscando seus olhos vermelhos enormes, um rato enorme e cinzento, de cauda comprida, sai da escuridão de um emaranhado de canos. Ele fazia aquele “quii, quiii” típico de um guabiru puto da vida.
— Essa não...!
Ao nos ver, seus olhos se fixam em duas presas fáceis, como dois pedaços de queijo suculento. Inesperadamente, o rato ruge e nos derruba do cano, que vibra intensamente com o estrondar do som.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!!
— Te peguei! — Sashi me agarra no ar e usa um cano vindo na transversal de apoio para suas pernas. — Segura firme!
Com o impulso da Sashi, acabamos pousando em outro cano mais abaixo. Só que o rato também tem a mesma ideia de pular e nos perseguir. Seus dentes pontudos e amarelados são barrados por uma barreira de canos que ele não consegue atravessar por causa de seu tamanho. Ali, naquele espaço, somos do tamanho de baratas ou formigas.
— Ali! Lá embaixo! — Sashi aponta para o fundo daquela dimensão, escondida no escuro, debaixo de vários canos entrelaçados como cordas.
Lá estava nossa saída. O buraco negro.
— Se equilibra, Calebe, pra não cair. — Mais fácil falar do que fazer, né?
E assim que sabíamos onde chegar, o resto é fácil; com um empurrãozinho da boca e do hálito podre da bola de pelos gigante no meu cangote, eu me jogo lá de cima em direção à nossa saída. Mas quem disse que a queda seria suave?
Ao chegar lá embaixo, eu estou quase no nível de um fusca de ferro-velho que acabou de passar pelo triturador.
Me taquei em canos e mais canos até que conseguisse chegar na rede de tubos de metal entrelaçados e talvez eu tenha quebrado duas ou três costelas e trincado meu antebraço. Coisa pouca.
— Agora é minha vez — anuncia Sashi.
Mas para Sashi, descer aquilo não foi nada além de uma brincadeira de criança. Com uma destreza felina, ela quica e desce ágil como uma rã e leve como uma pena. Sério... tinha algo em que Sashi não fosse excepcionalmente boa em fazer?!
— Está bem, Calebe?
— Tô sim. Ai!
— Quiiii! Quiiiiii! Quiiii! — O rato desce rápido, deslizando nos canos como se fosse de gelatina.
— Aahh, porra! Esse rato de novo!!
— Vamos! Entra logo!! — Sashi grita.
Nós entramos. Mais uma vez; estica, estreme, puxa, prende, solta... puta que pariu, como eu odeio essa sensação! Dessa vez, caímos e caímos e... caímos?
— ...?!!
Quando abro o olho percebo que nós estamos caindo. E rápido! Como em uma queda livre, só que sem paraquedas. O vento machuca meu rosto enquanto caio, não conseguindo ver nada, nem ouvir nada além do meu corpo rasgando as correntes aéreas.
— Za-Za-Zaatchiii!!
O vento para de soprar de uma vez. Meu pobre e lindo rosto para de ser agredido pelo vento impiedoso da queda e fica ardendo. Enfim, consigo abrir meus olhos e percebo que estamos no chão. Bem... não posso chamar de “chão”, mas sim em algo que podíamos pisar: uma nuvem.
— Não tô entendendo mais nada.
— Ali! — Sashi aponta com a katana para o topo da casa. E só então percebo que estamos flutuando sobre a casa. Lá, em cima da claraboia do quarto de hóspedes, está o portal que vai nos levar ao Ruan Neto — e para o fim dessa loucura toda.
GRÁAAAAAAA!!
— Por....! Saaashiii!!
— Calebe?!
— GRÁAA!! GRÁAA!!
Sou pego por um pássaro gigante e nesse momento estou quase me borrando de medo, tanto com a altura com o fato de eu ter sido levado por um pássaro — ou urubu, ou corvo, seja lá o que aquilo fosse!
Vejo Sashi se afastando cada vez mais e aqueles pés duros de ave estão quase esmagando meu frágil corpo de formiga.
— Meu-Deus-me-ajuda-não-quero-morrer-socorro-mamãe-vou-morrer-não-quero-morrer-prometo-que-vou-ser-alguém-melhor-não-vou-mais-roubar-a-marmita-do-Bernardo-alguém-me-ajuda-pelo-amor...!!
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Divisor Horizonte Primaveril! 』
Sashi concentra o golpe certeiro nos pés do periquito de oito asas e dois bicos — sério, que porra esse pivete anda jogando? Black Souls? — e o rasgão de fogo violeta decepa os pés do Piu-Piu do 5° inferno, fazendo o bicho grasnar bem alto.
— AAAAAAAAAAHHH!! — Eu começo a cair. De novo!
O pouco que consigo ver da Sashi, ela embainha a espada e mergulha dos céus na minha direção, enrijecendo o corpo como uma flecha para conseguir velocidade. No entanto, eu ainda estou muito longe dela... e mais perto ainda do chão.
— Droga!!
E ainda enrolado em patas de pássaro gigante, eu mergulho no teto da casa, destruindo completamente a claraboia e caindo ao lado da cama do nosso “Belo Adormecido”. Ruan Neto dormia como o bebezão que era, franzindo o rosto como se estivesse tendo um pesadelo.
Acima de sua cabeça, um portal com várias e várias correntes. Elos oníricos expostos como nervos. Pulsando, cintilando.
Mas ele mal sonhava com isso... o maior pesadelo que tá tendo nesse momento sou eu ao ter que sobreviver os sonhos desse pivete.
Estou todo quebrado e não consigo me mexer, preso pelas garras do urubuzão. Meu plano era deixar Sashi chegar para me soltar e nós dois juntos acabarmos com aquele pesadelo de uma vez, mas isso muda quando observo uma mão preta e esquelética sair debaixo da cama e do armário e das frestas do forro do quarto.
— Oh... merda... — Começo a fazer força para abrir aqueles pés, mas as mãos se esticam até mim, querendo me pegar. — Porra, porra, porra, porra, porra, porra!!
E então, em uma explosão de pedras, madeira, gesso, PVC e fogo, Sashi mergulha enquanto grita:
—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal! 』
As mãos se incendeiam e começam a bater e a se contorcer espasmodicamente de forma repugnante. A potência da descida da minha persona faz eu rolar até a parede, e a cama do Ruan Neto, tremer. O pivete ainda continua dormindo mesmo assim, imóvel como uma pedra, debaixo das cobertas.
— Cof, cof, cof!! Ai, ui! Tô todo fodido, merda...!
— Está bem, Calebe? — pergunta Sashi no centro de um círculo das chamas violetas.
— Morri, mas passo bem.
Sashi sorri e então se vira para o pivete dormindo. As correntes entram e saem do portal aberto. Muitas delas gemem, murmuram, gritam, riem com zombaria... uma infinidade de pesadelos como Charles havia chamado atenção.
— E agora? — questiono.
Sashi prepara sua katana antes de responder:
— O acordarmos.
Mas ela sequer chegou a desembainhar sua arma antes de ter a cara afundada no chão por uma sombra marrom. A sombra do sobretudo de Charles. Ele aparece de repente, do mesmo lugar de onde caímos. Provavelmente esse velho sacana estava de tocaia, só observando o tempo todo a gente se foder por todos os cômodos da casa.
— Ei! Que cê tá fazendo, velho?!
— Impedindo-os de fazer mais besteira — retruca, segurando a cabeça da Sashi com uma mão e seu braço com a outra. — Já que acredito que queria sua casa e sua vizinhança inteiras não é, jovem Calebe?
Engulo em seco, sem uma resposta. Sashi fica rosnando e fungando com a cara amassada contra o piso queimado do quarto.
— Volto a repetir. Crianças não são simples agentes que simplesmente se pode acordar de um pesadelo. Não ouviu minhas advertências?
Impressionante... ele está segurando Sashi pela cabeça sem qualquer dificuldade, como se fosse uma criancinha malcriada. Mesmo que não pareça — e isso porque a imagem do velho Francisco, acabado em cima de uma cama, é a primeira coisa que me vem na cabeça —, Charles deve ser bem forte para conseguir fazer isso.
Qual seria a força dele comparada à de Sashi?
— Crianças são portais abertos para o mundo dos sonhos. Não são Campos Lúdicos quaisquer, mas sim conexões diretas com a terra dos pesadelos. Acordá-los de qualquer jeito é um convite ao desastre.
— Tá bom, Obi Wan Kenobi dos Sonhos... dá pra soltar ela?
Ele sorri e larga a cabeça de Sashi, então ajeita sua gravata e o chapéu enquanto a samurai se levanta, ainda sem entender como conseguiu ser dominada daquela forma. Na verdade, nem eu, que estava assistindo tudo de longe, entendi muito bem — assim como a maioria de todas as maluquices que me acontecem.
— E como a gente faz isso então?
— Deixem comigo, meus caros. — Ele arregaça as luvas e vai até o Ruan Neto. — Apenas observem a mágica acontecer.
***** *****
O dia amanhece e eu estou literalmente zumbificado com toda a trabalheira que tive para reverter a casa a como estava antes do Campo Lúdico. A única coisa que não foi ajeitada é uma mancha de queimado na parte de trás do sofá. Espero que a mamãe não descubra.
— Nós vamos indo, Márcia. Nossa, esse fim de semana foi babado, mulher!
— Foi mesmo! Vamos combinar por telefone nosso próximo encontro!
Espero que não seja tão cedo! Tipo só daqui a dois anos! O sorriso está brilhante, contrastando diretamente com as marcas debaixo dos olhos.
— Ruan Neto. Se despeça da sua tia e do seu primo.
O pivete balançou a mão.
— Obrigado, tia Mácia. Obrigado Cabe! Bora brincar mais depois, tá bom?
— Vocês brincaram ontem? — A mamãe me encara com um sorriso e uma sobrancelha erguida.
Eu forço uma risada boba para disfarçar o terror da nossa “brincadeira” de ontem, as lembranças chegando na cabeça automaticamente. “Brincar mais” uma porra, moleque! Nem em sonho isso vai acontecer de novo!
— Claro que sim. Foi bem divertido!
— Que relação saudável esses dois tem. Estou pensando em vir aqui um final de semana sim e outro não, Márcia. Acho que ainda não faturamos o suficiente em cima daqueles caras.
NEM NAS INFINITAS TERRAS ISSO VAI ACONTECER, TIA ISOLDA!!
— Sintam-se à vontade para nos visitar quando quiserem! — Minha mãe concorda.
Enquanto minha mãe e minha tia combinam meu próximo suplício, olho para meu redor; não vejo a Sashi em lugar nenhum. Ela já some de novo e parece que ela está cada vez melhor nisso.
Só poderia haver um canto para ela estar agora.
— Então você está aí. — Como imaginei, ela está no meu quarto. Sashi está parada no meio do quarto, de frente para meu velho baú de brinquedos e tralhas.
Ela está segurando a bonequinha da qual herdou o nome.
— O que foi, Sashi?
Calmamente ela coloca a Musashi de volta no baú e se vira, sorrindo para mim. Aquele sorriso que só ela tinha naquele mundo, que me fazia perder até o cansaço.
— Nada, Calebe. Não é nada.