Volume 1

Capítulo 14: Gênio maligno dos sonhos I

 

— Huáaaaa... isso não acaba nunca! — O bocejo sai lento e pesado. Estou cansado demais até para isso.

Não dá. Não importa quanto eu tente, eu não consigo entender essa porra de matéria, mesmo com a ajuda do Bernardo. Eu não queria pedir ajuda a ele de novo, já que faz poucos dias que ele saiu do hospital e ainda está se recuperando.

Eu tenho que entender essa droga logo, já que a prova está próxima. Algumas doses de café processado devem dar conta do recado.

O dia seguinte chega; o dia decisivo. Passei tanto tempo lidando com coisas bizarras que esqueci completamente da prova. A professora não ia facilitar pra ninguém e notas baixas consecutivas geravam problemas futuros. Eu não posso me dar ao luxo de ficar pra trás nas notas.

— Calebe? — A voz de Sashi fala comigo vindo de trás.

— Que foi?

— Nada, só que eu tô preocupada com você. Quer dizer... você passou a madrugada em claro. Mal dormiu e vez ou outra ficava dormindo sentado ou em pé.

Minha própria persona está preocupada comigo e está me repreendendo por varar a noite estudando com um copo de café do lado. Apesar de não ser muito saudável, de fato, foi um mal necessário.

— Vida de universitário, Sashi. Não foi a primeira vez e nem vai ser a última, pode acreditar.

Eu estou ao máximo tentando não ser tão ignorante com ela, mas o fato de eu não ter dormindo e nem comido bem me deixa com um profundo desequilíbrio no juízo. Estou muito sensível a qualquer coisa e sinto que consigo matar qualquer coisa só com meu olhar de morto.

A última coisa que eu queria hoje era de um pesadelo maluco arruinando minha prova.

— Olha... falta algum tempo para a prova e eu preciso pelo menos forrar o estômago com qualquer coisa, então... — Eu aponto para o restaurante universitário, os olhos ardendo com a claridade do ambiente. — Não se preocupe comigo, está bem, Sashi? Depois da prova, vou dormir a noite toda e a manhã inteira também, certo?

— Tudo bem — responde ela. Seu rosto ainda era um retrato de pura preocupação.

Ao olhar para ela direito, assim que chegamos ao restaurante universitário, percebo algo incomum na Sashi. Mesmo sendo um sonho, uma parte da minha mente que só eu podia ver, ela não é diferente de nenhuma pessoa para mim; tão visível, tão tangível quanto qualquer um.

Mas naquele dia em específico, ela está diferente; translúcida, borrada. Vez ou outra, partes dela somem e voltam, como se fosse uma projeção malfeita de um data show com defeito. Mesmo alguém com o raciocínio e a visão tão fodidos quanto eu perceberia tranquilamente.

Mas não penso muito nisso, até porque eu não quero me dar ao luxo de pensar em nada mais além da prova hoje — e minha memória está no gerador reserva, apenas armazenando o que eu consegui “aprender” noite passada.

— Cara... cê tá legal? — Bernardo pergunta.

— Melhor impossível. Por que tá perguntando isso?

— Sei lá, cara... cê tá tomando sopa de garfo, então achei melhor perguntar, cara.

Olho para o talher que seguro e de fato é um garfo, mergulhado em um prato generoso de sopa — estava mais para caldo de óleo do que sopa — enquanto um Bernardo de expressão confusa e piedosa me encara. Sashi está sentada no batente de um dos janelões ao lado.

— Olha, eu só passei a noite toda acordado. Tô bem, tá? — digo, meio irritado.

Bernardo dá de ombros.

— Se tu diz..., mas e aí cara, já tá sabendo das novidades?

— Que novidades? — pergunto, agora tomando sopa com o talher certo.

— Caaara... as aulas parecem que só vão até o meio do ano, cara. Tem a ver com umas burocracias deles aí e as provas também vão ser adiadas, tirando as dessa semana. — Algo dentro de mim se alivia. Bernardo continua: — Mas também tem a ver com as doideiras que tão acontecendo lá fora.

— Que doideras? Dá pra não falar em charadas, filho da mãe?

Bernardo gargalha com a mão na barriga, parecendo uma hiena, batendo no tampo da mesa. Eu fico muito feliz — e puto ao mesmo tempo — ao ver que sua recuperação está indo bem.

— Sério cara, eu, que fiquei hospitalizado esse tempo todo, sei das coisas e você não? Em que buraco de toupeira você vive?

— Se já parou de me avacalhar, pode dizer logo o que é.

— Ultimamente tem acontecido uns lances bizarros na cidade. Várias mortes estranhas tão rolando em todo lugar de Morro Branco e tão cogitando até suspender as aulas no campus até que a poeira baixe. Sério cara, que cara é essa? Tá passando em tudo que é jornal, cara! Cê não tem televisão em casa, não?

— Que besteira, Bernardo! Eu assisti a maioria dessas reportagens e tudo não passa de sensacionalismo. Não tem nada e nem indícios que liguem esses incidentes à um assassino. Se toca, mermão.

Bernardo coça o nariz, descontraído sobre a mesa gordurosa do restaurante.

— Iih, caara! Eu que não sei, né? Tomara que eles suspendam mesmo as aulas para a segurança da gente.

Suspiro e continuo tomando minha sopa, em silêncio. Dou a conversa encerrada por ali. Sabia que conversar essas coisas, no estado de nervos que eu me encontrava, só me traria mais estresse, então fico na minha.

Enquanto isso, dá para ver os carros passando atrás da Sashi, que está bem mais quieta que o normal. Boa parte dos seus pés e braços já não passam de uma simples silhueta borrada, como uma miragem.

Será que ela está bem? Queria eu ter tempo para me preocupar com isso agora.

 

 

*****   *****

 

    

A prova começou às 14h em ponto. Sem atrasos, sem exceções. Caneta no papel, mente à mil por segundo, trabalhando o dobro para processar argumentos e formular teorias acerca das relações interlocutórias os quais exercem cada membro da sociedade e no que isso influi para...

Argh! Só de lembrar, o cérebro já estremece — onde eu já ouvi essa frase?

Perdi a conta de quantas vezes apaguei legal durante a prova, acordando sempre que minha testa e o tampo da carteira se beijavam. Não bastando isso, tinha que ficar aturando a Sashi perguntar, de 5 em 5 minutos, se eu estava bem, como uma mãe grudenta.

Bem... terminei a prova. Terminei mesmo, mas... agora estou aqui. Na maca da enfermaria do campus. Uma bolsa de soro se conecta ao meu braço e a única coisa que minha visão rodopiante me permite enxergar é o forro branco de PVC, se conectando às paredes brancas e lisas e a lâmpada brilhante.

A sala está silenciosa, fazendo o som do ar-condicionado, o único ruído dentro daquele espaço, parecer 10x mais alto do que realmente era. Não tem ninguém ali a não ser eu. Ninguém... ninguém... silêncio... paz...

Ninguém...

Espera... estou sozinho? Onde está a Sashi?

De repente, o som metálico do trinco sendo movido se espalha pela sala fria da enfermaria. A enfermeira — uma das alunas do curso de enfermagem — entra com uma prancheta na mão e uma sacola de compras na outra.

— Já está acordado? — diz ela, surpresa.

— É... é o que parece, né? — A frase parece soar mais ignorante do que eu pretendia. — O que aconteceu? Por que eu tô aqui?

— Não é óbvio? — Ela faz uma pausa, esperando que eu lembrasse sozinho. Se fosse óbvio eu não estava perguntando, né? — Você desmaiou depois que acabou a prova e foi trazido aqui pelos alunos.

Mas a enfermaria fica quatro blocos depois da sala onde eu fiz a prova! Eles me carregaram de lá até aqui?

— Então... posso ir pro meu dormitório?

— Só terminar de tomar o soro com a medicação e você estará liberado para ir. Mas se sentir qualquer coisa, só voltar aqui, tá bom? — Ela diz com um sorriso. Já me sentia até melhor.

— Ok...

Volto para o dormitório depois de ser liberado... e nada da Sashi em lugar algum. Não a vejo desde a prova, um pouco antes de apagar em algum momento. E antes disso... antes disso ela estava... translúcida, incorpórea, fraca...

Como se fosse... desaparecer. Que merda foi que eu fiz agora?

Mas eu ainda estou muito fraco e cansado para tentar qualquer coisa. Tanto que ao chegar no dormitório, a primeira coisa que faço é cair morto em cima da cama. O cansaço pesa sobre meus ombros e o sono é praticamente instantâneo... Só queria... só queria...

Onde está... você... Sashi?

ZZzzzzzz...

 

*****   *****

 

 

Correria! Correria incansável por um lugar escuro, sem saber pra onde estou indo, de quem estou fugindo...

Não... aquele sonho de novo, não!

E como sempre, a porra daquela pedra saída do quinto dos infernos me derruba e eu saio capotando alguns metros para frente. Por que aquilo não tem fim? Já estou cansado disso! Já não aguento mais! Assim que eu me virar, irei acordar no meu quarto e sofrerei de insônia e palpitações a noite toda, além de suar mais que um porco.

Só que não é isso que acontece. O sonho — ou melhor, pesadelo — não se interrompe naquele tempo. Aquele pesadelo está diferente. Tem algo estranho acontecendo.

— O que?!

Quando me viro, Sashi está na minha frente e uma mão branca e franzina atravessa seu peito, saindo nas costas, acompanhado de um grito de agonia e terror dela. Aquele urro de dor dilacerou meu coração.

— Não! Nãao! Saaaashiii!!

Uma sombra está diante dela. Grande, imponente, letal... Sashi cai de joelhos diante dela e, poucos momentos depois, ela some. Desaparece completamente com pipocos luminosos que lembram fagulhas de estalinho. Não sei como reagir àquilo; nunca cheguei até esse ponto do pesadelo.

Não estava preparado para ver isso... Para ver Sashi morrendo na minha frente. Estou... estou tremendo. Em choque. Tudo que consigo fazer é tremer e chorar e soluçar. Até minha voz foi sufocada. Sinto uma dor terrível no meu peito como se uma barra de ferro perfurasse meu coração.

Meus olhos se grudam na sombra à frente, aos poucos se revelando, saindo das profundezas da floresta escura, recheada pelos blocos negros dos prédios ao longe. Ele vem andando até mim com passos rígidos, comedidos, uma voz sombria rindo baixinho ao passo que se aproxima.

— Está feliz, Calebe?

Aquela voz... aquela... eu... não acredito! Aquela voz é minha voz! Minha voz, mas... distorcida, sombria, fria e insensível. E a figura que surge das sombras...

Sou eu mesmo.

— Está feliz, porra?!

— ...

Não consigo falar. Não consigo fazer nada. Estou paralisado, uma cachoeira de lágrimas escorrendo pelas bochechas vermelhas.

— Viu o que aconteceu com a Sashi? Você viu tudo? — Ele abre os braços em uma postura vencedora e convencida. — Pois saiba que isso que aconteceu com ela é tudo culpa sua!

Que é isso? Que desfecho inesperado é esse que se passa diante dos meus olhos? Eu não consigo entender..., essa é a primeira vez que vejo isso em meu pesadelo. Por mais que eu não seja um expert, está mais que óbvio que se trata de um Campo Lúdico.

Péssima hora para eu cair em um.

— Tá bom, tá bom... Sashi, tá na hora de dissipar esse Campo Lúdico. Sashi? Sashi?!

Minha versão cinzenta e de rosto maligno ri como se acabasse de escutar uma piada.

— Contei alguma piada, ô comédia?

— Ah, não, não. Você é que é a piada aqui. Ainda não se deu conta, não é?

Uma interrogação surge na minha cabeça. Por um momento, minhas narinas ardem e eu enfim posso soltar o ar que não me liguei que estava prendendo.

— Do quê?

— Tente chamar a Sashi. — Ele dá dois passos para trás e faz um gesto permissivo com deboche. — Vamos. Vá em frente. Tente chama-la.

O que esse cara tá fazendo? Acho que é a primeira vez que converso tanto tempo com um pesadelo. E por que ele está tão confiante ao ponto de permitir que eu chame aquela que vai dissipá-lo?

— Isso é alguma armadilha? Está me subestimando, sua cópia filha

 da puta?

— Só chame sua persona de uma vez, seu bosta. Eu nem isso consegue fazer no estado em que está?

— Nem precisa mandar. Não se arrependa depois! Sashi!

Um vento frio e fantasmagórico sopra e me deixa arrepiado quando nada acontece; nenhuma resposta é dada, nenhum sinal surge de nenhum lugar.

— Sashi? Sashi! Saaaashiii!! — grito tão alto que minha garganta começa a coçar e latejar. A cópia faz uma concha ao redor do ouvido como se não pudesse ouvir, tirando uma com a minha cara.

— Ué... acho que eu não tô ouvindo e nem ela. Dá pra gritar mais alto?

— Não pode ser. O que... o que você fez com ela?!

— Acho que a pergunta certa é: O que você fez com ela?

— Que merda que cê tá falando?

— Você é um tapado mesmo. Não está na cara? O sonho que mostrei a você não foi claro o suficiente? — Ele bate o pé no chão e uma onda me varre para longe, me fazendo rolar até bater de costas em uma arvore. — Você vai ser responsável por destruir a Sashi! Você é o culpado por ela ter sumido. Você sequer percebeu os sinais, né?

— Argh! Ui, ai. Porra, porra! Claro que eu percebi, seu merda! — digo enquanto me certifico de que minha coluna ainda está no canto certo.

— Ahaha! Você é tão bom mentindo quanto é bom em cuidar da sua persona — debocha ele. — Difícil acreditar em alguém que mal acredita no que sai de sua boca.

— Tá falando muita merda para uma xerox meia boca em preto e branco — disparo, ácido.

Mesmo que eu queira manter a pose, não passa disso: pose. Pose e provocações baratas. Não tenho nada para contestar, nada para dizer em minha defesa. Tudo que ele diz está certo. Eu fui displicente com a Sashi. Eu realmente vi que algo estava estranho com ela e não fiz nada.

Se ela realmente sumiu, a culpa era minha.

— Então caiu na real? Admite que fez merda, senhor sei-de-tudo?

— O que você quer, porra? Fala logo.

— Nada. Só estou aqui para dizer que vou tomar seu lugar como mestre da Sashi.

— Acho que eu não entendi muito bem.

— Não tem o que entender, Caleburro. EU vou TOMAR seu LUGAR. Entendeu?

— Meu lugar. Vai sonhando, laranja! Opa!

De repente, o mundo sofre com um grande abalo tal qual um terremoto destruidor. As folhas das arvores vão farfalhando conforme toda a floresta escura balança e balança e balança.

Me sinto enjoado enquanto tento me segurar a qualquer coisa. No entanto, aquela xerox está com um olhar de arrogância e não parece se abalar com os tremores.

— O que tá fazendo?

— Nada. Você está. Esse é o seu mundo. Nosso mundo. Assim que sua vontade se abala, esse mundo também. — Os olhos dele se estreitam enquanto me encara com uma nojenta cara de vitória. — Isso quer dizer que já aceitou o fato?

— Já não aguento mais a sua voz! Não sei o que tá acontecendo, nem o que quer com a Sashi, mas agora você vai ver!

Ainda no chão, eu fecho o punho como se pudesse quebrar meus próprios dedos e meu braço vai em direção à cópia do meu próprio rosto. Sem pensar, sem dar tempo para um revide.

Mas ele nem está mais lá quando meu braço termina seu trajeto. Ele some e aparece em outro lugar; uma pedra em forma de cone que desponta sobre as arvores negras.

— Olha, olha! — Ele bate palmas com deboche. — Vejo que ainda está disposto a brigar. Impressionante!

— Exatamente! Então por que não desce aqui pra eu arrebentar tua cara, hein?

— Acho que há uma forma melhor de decidirmos isso.

— Não há nada que decidir! Não vou deixar a Sashi nas mãos de ninguém, principalmente de um sujeito suspeito e que copiou minha cara.

— Você ainda não tá querendo sacar, não é? Compreensível. Tudo isso é demais para sua cabecinha do tamanho de um kinder ovo, mas vou te dar uma colher de chá dessa vez. — Ele bate palmas de novo.

E então, o mundo se transforma em questão de instantes; o que era chão vira parede, o que é céu vira chão, e o que é chão vira parede. Um efeito alucinógeno tão potente que os grandes fabricantes de drogas se sentiriam como crianças brincando no laboratório da caixinha de areia do parquinho.

Mas não penso muito sobre isso ou tenho tanto tempo para prestar atenção na paisagem, pois estou caindo. E rápido!

— Uurrgh!!

Me agarro com o que consigo, como um gato tentando escapar da água enquanto crava as unhas no que consegue. Me apoio em um parapeito com os antebraços, sentindo a dor sufocante nos meus ossos e articulações, porém consigo me segurar. É o parapeito de uma janela. Estou pendurado no parapeito de uma janela de um prédio que parece se estender ao infinito, através de um mar de nuvens e estrelas e pedaços de reboco flutuantes.

— Não pensei que fosse conseguir se segurar. Até que você é rápido.

— Vai se foder — rebato, seguido de um gemido.

Escuto uma gargalhada vinda dele. Nunca pensei que teria raiva da minha própria risada.

— Certo. Já que estamos aqui, podemos seguir. Olhe para o lado, Caleburro.

Abro os olhos lentamente e vejo a ponta de uma espada. A ponta do cabo dela, na verdade. Ela está presa na parede. Só que então, um pouco acima dela, vejo mais um cabo de uma espada presa. E mais outra. E outra e mais outra e mais dez, e mais vinte, cinquenta...

Uma cacetada de espadas! O prédio está cheio delas!

— Vê todas essas empunhaduras? Todas elas são “Sashis falsas”.

— Falsas? Como assim, porra?

— Cada uma delas são personas falsas, criadas a partir do seu Alter Ego. Uma delas é a espada da Sashi verdadeira. Se você conseguir dizer qual é, você pode tê-la de volta, mas se errar...

— Se eu errar...?

— Então eu serei o novo mestre dela. Para sempre!

 



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