Volume 1

Capítulo 15: Gênio maligno dos sonhos II

 

O tempo parece parado. Quanto tempo eu já passei naquela realidade? Será que enquanto estou pendurado, ilhado naquele arranha-céu, estou dormindo? Será que depois de tudo isso, vou acordar e ver Sashi sorrindo, sentada na cama ao lado de novo?

Não posso escolher a errada, não posso escolher a errada, não posso...

— E como eu vou alcançar as outras para poder escolher?

— Você pode se segurar nos cabos para se mexer pelo prédio, mas a espada que tirar da parede, essa será a que vai escolher. Então, escolha com cuidado, Caleburrinho. ♪

Dados os avisos, está na hora de se mover. Mesmo que eu não confiasse nele, é a única coisa que posso fazer agora. Me mexo com cuidado e consigo me equilibrar de pé no parapeito da janela, tendo um vislumbre tenebroso de uma queda alta — “alto” é eufemismo para aquela queda.

Continuando... estico o braço e agarro o primeiro cabo bem, inspecionando-o. Não se parece em nada com o cabo da espada da Sashi. Continuo o caminho apoiando o pé sobre outro cabo de espada, devagar. Cuidadosamente. Um deslize e eu... eu...

Não... não posso pensar nisso! Tenho que focar. Tenho que me concentrar nos cabos da espada. Esquecer a visão lá de baixo, do vento e das nuvens geladas soprando pelo corpo.

Essa também não é. Nem essa e nem aquela. Enquanto vou fazendo alpinismo no paredão do prédio, vez ou outra parando em alguma janela para descansar. Depois, mais e mais espadas. De cima para baixo, de baixo para cima... não tem nenhuma ordem. Não tem um caminho.

É como buscar uma agulha em um palheiro. Não tem fim. Meus membros, meus ossos parecem que vão virar farelo, meus músculos parecem que vão romper. Onde está você, Sashi? Onde está? Onde está?

Em um desses movimentos, minha mão escorrega fatalmente e eu quase caio lá em baixo, se eu não tivesse me segurado em um dos cabos a tempo. Só que nisso, eu também quase retiro a espada da parede, boa parte da lâmina ficando amostra enquanto um fogo cinzento começa a escorrer da lâmina. A espada errada!

Parte de outra lâmina ameaçou submergir da parede cinzenta antes de eu fazer uma força para socar ambas as espadas dentro da parede de novo. A cópia ri.

— Já está desistindo, Caleburro? Olha que ela está prontinha, esperando para me receber, hein?

Ah, claro. Como podia me esquecer? Ainda tenho que ouvir provocações daquela xerox filha da puta de minuto a minuto. Sinto que não vou...

— Droga...!

— Ora, já vai jogar a toalha? Esperava que durasse mais alguns meses — desdenha ele, de braços cruzados. — Mas no fundo, eu já sabia. Pelo que vejo, sua persona não significava nada pra você além do que ela realmente era: uma ferramenta.

— Cala a boca!

— Por que não se joga então e acabamos com isso?

— Cala a porra da boca!

— Vamos lá... todos nós sabemos que você não vai conseguir achar a certa.

— Eu... eu... — Paro em uma janela, encolhendo as pernas. O mundo sofre mais um abalo que quase me derruba lá em baixo. — O que acontece comigo se eu cair?

— Isso quer dizer que aceitou sua condição, Calebe? Aceitou que a Sashi está fora do seu alcance pra sempre?

— Só me responde logo.

— Isso é uma boa pergunta que, infelizmente, dizer a resposta somente estragaria a experiência. Você me entender, não é?

Filha da puta arrombado.

— Uma coisa é certa: você não morrerá. — Ele dá de ombros. — Mas nem preciso dizer também o que vai perder, não é?

— Tá bom. Entendi. Não tem mais nada que eu possa fazer mesmo. — A ponta do pé direito desliza para o abismo que me espera abaixo. — Eu... aceito que perdi. — Os olhos ardem.

Meu corpo é puxado para baixo e o sentimento é de desespero. Estou caindo. Meu coração pesa, uma sensação amarga invade minha boca. Quero só acordar... só acordar de tudo aquilo, virar o rosto e encontrar a Sashi sorrindo para mim.

Caindo...

Sashi... Sashi... eu... não entendo nada desse mundo. Nem mesmo queria fazer parte dele. Nunca quis, nunca imaginei algo assim. Detesto tudo isso. Odeio me sentir impotente, de correr perigo, de ver meus amigos e família correrem perigo. Odeio ter minha paz perturbada, abomino tudo que fuja da normalidade.

Caindo...

Só que... se eu pudesse tirar algo bom disso tudo, seria a Sashi. Desde que esqueci todos da minha antiga vida antes do acidente, a sensação era de solidão. Isolamento. Uma carta eternamente fora do baralho. Então conheci ela. Sashi me salvou naquele dia, não só daquele pesadelo, mas me salvou também da solidão.

Aos poucos passei a me acostumar com ela. Mesmo quando eu não a via, eu sempre sabia que ela estava por perto. Sentia sua presença, sabia que ela estaria pronta para vim ao meu socorro quando eu precisasse. Mas e quando ela se for? Será que vou conseguir conviver com o fato de que ela se foi por minha causa? Será que vou conseguir acordar e ir dormir tranquilo, sabendo que ela não está por perto?

Caindo... caindo...

Sashi, eu não entendo nada desse mundo. Eu devia ter perguntado mais, me importado mais... eu estava muito cansado para... não. Não é isso. Eu... só não queria mesmo. Eu só me importava com a prova e me importei tanto que não queria ver algo que estava tão claro na minha frente. Só fui negligente e egoísta.

— Eu não desisti de você, Sashi. — Minha voz não passa de um sussurro entre o som do vento nos meus ouvidos. — Você é parte minha, então eu sei que vai me escutar. Por favor, me perdoa. Me mostra. Me mostra o caminho até você e espero que possa lutar por mim mais uma vez.

Sashi... me mostre.

Abro de leve um olho quando sinto um calor inesperado, como se estivesse me aproximando de algo muito quente. Uma sensação que eu até então não tinha sentido naquele mundo cinzento, escorado em paredes de concreto monocromáticas.

Uma luz... no fim daquele abismo; e meu corpo vai desacelerando, desacelerando mais e mais... tanto que agora, em vez de mergulhar como uma bomba solta por um avião, estou flutuando como uma pena, como se a escuridão ao meu redor fosse um grande oceano.

No centro da negritude sufocante, uma chama brilha, tímida. Se mantém firme, sem apagar, mas fraca. Não consigo conter o sorriso quando reconheço uma sensação tão familiar.

Sim, eu sabia. Mesmo que aquele falso eu quisesse me fazer acreditar que eu estaria desistindo ao cair aqui, era exatamente o contrário.

Estendo a mão até a luz e, ao passo que me aproxima, a chama se atiça e aumenta.

Mas tem uma coisa que aquela cópia disse que era verdade: as espadas lá em cima... aquelas falsas “Sashis”, realmente eram falsas. Todas elas. Eu nunca iria encontrar a verdadeira entre elas, não importa o quanto eu procurasse, o quanto eu escalasse.

Assim como agora, naquele primeiro dia em que te vi, quando cheguei no campus, você estava isolada da multidão. Tão destoante do mar de rostos iguais que não pude deixar de reparar. Longe, sozinha, isolada... um reflexo de como eu me sentia, mesmo estando com tantas pessoas.

E assim como o dia em que me falou que tudo podia ser como eu quisesse ser, assim como aquele graveto que se torna uma espada, eu reconheço que esta pequena chama que queima no centro da escuridão...

Ao tocar nela, ela cresce e se expande, aos poucos tomando forma. Mesmo com a mão dentro dela, eu não me queimo. A chama não me machuca. Como poderia? Um fogo que existe para me proteger, para zelar por mim, não poderia me queimar.

Eu acredito...

E assim, chamas se tornam braços, centelhas viram pernas. Todo o corpo das chamas transmuta-se em um tronco e a claridade se reúne em grandes cabelos pretos, dissipando a escuridão.

... que essa pequena chama é você, Sashi.

 

 

*****   *****

 

 

— Ca... le... be? — Ela lentamente vai abrindo olhos sonolentos enquanto me chama.

Seu rosto, seu corpo, suas roupas... até as mesmas pintinhas estão no lugar. A Sashi está ali na minha frente, de verdade! Ela não desapareceu, ela não se foi como meus maiores temores acusavam. Ela está ali mesmo.

Não sei se eu posso ou não, se aquilo é um sonho ou não, mas eu também não me importo. Eu flutuo até ela com urgência e a tomo em meus braços. A abraço com tanta força como se não fosse mais deixa-la ir. E nunca deixaria mesmo.

— Calebe? O que foi? Você tá bem?

Sua idiota..., mesmo agora você ainda se preocupa se eu estou bem ou não?

— Eu tô. Tô sim. Melhor do que nunca.

— Tá chorando?

— Não. É meu nariz... snif... que tá irritado só. Snif!

Que bom que está de volta, minha amiga.

Logo sinto meu pé alcançar a base de uma superfície sólida. Quando percebo, eu e a Sashi estamos na frente do campus. O mundo se transforma em uma fração de instantes, nos pegando de surpresa. E quem vem andando até nós, batendo palmas enquanto um sorriso nojento e malvado paira em seu rosto, é ele...

Eu mesmo.

— Que momento emocionante. Olha... chega caiu uma lágrima aqui.

— Calebe, ele...

— Sim — interrompo-a, prevendo a pergunta da Sashi. — Ele é uma cópia malvada minha. Já o que isso significa é assunto para outro momento.

— Significa que você tem plenas faculdades mentais, meu bom — diz ele, com uma pitada ácida. — Mas também, que não será tão fácil para você consertar o que fez.

Assim que ele termina de falar, uma outra coisa sai de trás dele que até então não percebemos. Como uma sombra se descolando de seu corpo, outra forma, um pouco mais baixa, se revela para nós.

Era outra cópia, mas dessa vez, uma cópia da Sashi! Uma cópia cinzenta, sem expressão como um guarda real britânico. Fria, sem vida, sem vontade... era isso que me esperava se eu tivesse escolhido errado?

— ...?!

— Aquela sou... eu?

— Sim e não — diz minha cópia ao apoiar as mãos na cintura. — Pode se dizer que é uma versão aprimorada sua.

— Aprimorada? Como assim?

— Por que não vê por si mesmo? Sashi.

Com um estalar de dedos, a cópia da Sashi nos ataca tão rápido que eu mal consigo enxergar o momento em que as duas colidem. Só me dou conta de que algo aconteceu quando eu já estou no chão, beijando o concreto frio.

A cópia é tão rápida quanto seria esperado da Sashi verdadeira. Um retinir de espadas ecoa na imensidão do espaço e faíscas saltam no ar com a fricção de duas forças se chocando. O chão cedeu com a violência do impacto, formando uma cratera ao redor delas, e o ar ao nosso redor está quente apenas com o choque dos poderes de ambas. Mesmo corpo, mesmas roupas, mesma arma...

É... aquilo vai ser complicado.

— Hurg! Que força! — grunhi a Sashi.

A cópia não mostra nenhuma emoção em seu rosto pálido, nenhum sinal de esforço... nem mesmo pisca! A sensação é de estar tretando com um robô.

— Está vendo, Caleburrinho? Entende agora ou ainda quer que eu explique?

Calado estava, calado fico, os punhos e dentes rangendo. Logo eu e Sashi iríamos arrancar aquele sorrisinho arrogante da cara dele.

Sem ter tempo para fantasiar como nós faríamos isso, a luta prossegue. A cópia empurra a Sashi para trás até que ela chegasse até mim para segurá-la. Nós fomos arrastados alguns metros até pararmos.

— Urgh! Caralho, que força!

— Calebe!

Sashi me afasta dela com um empurrão com as costas, me fazendo cair sentado, antes da cópia se aproximar como um raio. Então as duas trocam golpes velozes de espada, onde só consigo ver explosões de faísca e chumaços de fogo se cuspidos das colisões entre as lâminas. Uma luta incrível! As duas estão equiparadas em força e velocidade... ou pelo menos, é isso o que eu pensava até...

— Argh!

— Aaaiii!! Porra! — Pressiono a mão sobre a barriga, sentindo uma dor profunda rasgando a lateral da minha barriga.

Sashi é jogada para trás de novo e as lâminas se desenlaçam. O que tinha acabado de acontecer que eu senti uma dor queimando em mim? Meus olhos confusos e assustados vão parar no olhar da cópia, que faz questão de manter o sorriso arrogante de superioridade.

— Tá com uma cara de quem não entendeu. Dói, não é?

— Eu fui ferido? — Meu corpo treme e eu mal consigo levantar a mão da região em que a dor lateja sem parar. Só que não há sangue, nem entranhas escapando.

Mas a dor está lá. O que está acontecendo aqui?

— Agora que sentiu, percebe o que quis dizer? — Ele estende a mão na direção da cópia da samurai. — Ela é a versão aprimorada da sua persona porque tem tudo que a sua tem, mas sem a fraqueza das emoções. Uma verdadeira ferramenta de destruição!

A cópia salta enquanto desembainha sua espada no ar, preparando outro corte poderoso. Sashi fica em guarda, esperando sua adversária fazer seu movimento. Trocando as mãos na pegada da katana, Sashi respira uma lufada de ar e se concentra. Ela está preparando um contra-ataque!

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Círculo do Espelho do Inverno! 』

Aquela técnica... eu já vi antes! Ela usou aquela técnica para nos proteger daquele palhaço gigante no sonho do meu primo. Ela forma um movimento giratório enquanto corta. Corta rápido, mas sem as chamas como da última vez. O ataque repele a katana da cópia e ainda a acerta com vários cortes, a mandando para longe.

— Uau! Isso aí, porra! Mostra pra essa xerox sem-vergonha quem é a mais forte! — O grito sai automático, assim como o pulo.

Sashi abre um sorriso sem graça, relaxando a postura.

— Obrigado, Calebe.

— Bom contra-ataque — diz a minha cópia, os lábios retesados. —, mas já se esqueceu do que eu falei, Caleburro?

— Hã?

Assim que a cópia calca os dois pés no chão, automaticamente ela entra em uma postura que indica que iria sacar a espada, uma mão na bainha e a outra sobre a empunhadura. Sashi esbugalha os olhos, surpresa.

— Ela tem tudo que a sua tem. Inclusive as habilidades.

— Sashi!

Ela rapidamente monta a mesma postura de sua cópia, parecendo entender o que ela está prestes a fazer. A cena me lembra olhar o reflexo de algo em um espelho.

— Calebe, se abaixa! — grita Sashi.

Por instinto, eu me jogo no chão. Um clique é ouvido. Em tons diferentes, a de Sashi mais vigoroso e o da cópia, frio e neutro, a mesma frase é dita por ambas:

—『RETALHADORA DE SONHOS, ESTILO DO EQUINÓCIO: DIVISOR HORIZONTE PRIMAVERIL! 』

E então um estrondo invisível aos meus olhos ocorreu, seguido de um som estridente e agudo de metal se chocando com metal feriu meus ouvidos. Um show de faíscas se espalhou para todo o lado enquanto o local, onde o choque dos dois ataques aconteceu, parece se deformar e o tempo, desacelerar. Uma pressão avassaladora jogou as duas para trás com uma rajada de vento do furacão mais violento, ambas voando a vários metros até capotarem e se afundarem no chão.

— Saa...! Urgh!

E então uma sensação abominável me atingiu. Não consigo falar, não consigo pensar e muito menos descrever em palavras aquela dor, mas se fosse ter que comparar a algo seria como se atingindo por um trem-bala em sua velocidade máxima. Minha voz some, não consigo me mexer, o mundo foge de meus pés. A dor percorre todo meu corpo; cada poro, cada pelo, cada centímetro de pele queima e lateja intensamente. Os ossos das minhas mãos parecem que vão se desmanchar, minha barriga afunda quatro palmos dentro do corpo.

Eu só consigo ficar tremendo no chão por vários momentos, que eu não sei dizer se são segundos, minutos ou mesmo uma fração de instantes, enquanto uma voz de longe chama por mim.

— Calebe? Calebe?

Quando sinto a Sashi tocar no meu corpo, vou recobrando a razão aos poucos. Mas enquanto o juízo retornava, algo vem junto com ele: a dor. Uma dor que eu não desejo nem ao meu pior inimigo.

— Calebe! Calebe! Respire! Aguenta!

Pisco várias vezes na tentativa de me desvencilhar da agonia que paralisa meu corpo, que me rouba os sentidos. A primeira coisa que vejo é o braço de Sashi, partindo desde a mão até o cotovelo, ficar novamente translúcido.

— Sashi... seu, seu braço! — Eu estico o braço para tocar nela, na região que desaparecia.

Só ali eu tive a certeza de que ela não percebeu nada, pois sua reação é de surpresa.

— Não entendo. Isso nunca aconteceu antes. Você está tomando o mesmo dano que eu?

— Acho que... sim — respondo com uma golfada de saliva. — Argh, que dor! Tá doendo pra caralho! Ai, ai!

— Estou... me sentindo muito fraca. Não vou conseguir estender essa luta por muito tempo, Calebe — admiti a Sashi, olhando para seu reflexo acinzentado e de rosto mórbido.

— Então vamos acabar com isso de uma vez.

— Como?

— Juntos... cof, cof! Um só... cof... ataque! Eu e você. Cof!

Ainda hesitante ao ver só o monte de bosta que eu estava, ela concorda, apertando os lábios finos.

— Certo. Vamos fazer isso.

Sashi me ajuda a se levantar. Os dois clones malvados apenas nos observam, cautelosos, mas ainda certos da vitória.

— E então? Vamos parar por aqui? Todos nós já sabemos quem vai ganhar isso.

— Vamos com tudo, Sashi. — Apenas ignoro tudo que a xerox diz e faz e me concentro. Me concentro junto com a Sashi.

Me concentro em fazer nossa energia ser uma. Eu e ela em um só derradeiro ataque. Eu já estou todo quebrado — e nem mesmo sei se isso é um sonho ou não —, assim como ela e nós dois sabemos que vamos perder se continuarmos a lutar indefinidamente com aqueles dois.

— No três, Sashi — falo de forma que só a Sashi ouça.

Ela concorda com a cabeça. Imitando sua postura o máximo que eu consegui, foco em um único ponto que é as duas cópias. Sinto um peso fantasma em minhas mãos, mas eu sei que não são os machucados, mas sim a sensação de estar segurando a katana da Sashi. Eu e ela agora somos a mesma coisa; mesmo movimento, mesmo respirar, mesmas dores, mesma força.

Nós vamos derrotar eles juntos, Sashi!

Sim, Calebe! Sou a sua arma, sua lâmina. Me use como quiser.

Não posso deixar de sorrir, mesmo com dores inimagináveis.

— Vamos acabar logo com isso então, Calebe — diz minha cópia, fazendo um gesto de mão em comando para a Sashi falsa. — Destrua eles, Sashi.

— 1...

Sem nenhuma palavra ou reação, a cópia da Sashi se atira contra nós parecendo um relâmpago cinzento. Um vulto. Mesmo sabendo que ela se aproxima rápido e a dor que não dá trégua nem um pouco, não relaxo a postura em nenhum momento, tampouco a Sashi.

O vento ao nosso redor se contorce como cobras se enroscando, o chão abaixo de nós começa a rachar e ceder. Sinto a energia aumentando cada vez mais, fluindo pelos meus membros como um condutor, causando formigamentos tranquilizantes.

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal! 』 diz a cópia, imitando mais uma habilidade da Sashi.

— 2...

Nesse momento, o mundo desacelera. Consigo ver claramente ver a cópia vindo lentamente até nós, sua espada pronta para me empalar. Seu rosto morto, sem nenhum traço de personalidade, de expressão... de vida. Aquilo me dá tremores, me deixa com ânsias, mas eu tenho plena certeza de que ela não tem como vencer.

Uma mera cópia sem vontade não tem como vencer um coração que bate, uma mente que pensa... uma persona que sente. Por isso você não pode vencer a Sashi verdadeira. Por isso você não pode nos vencer.

— Acabou.

— 3!

Imito o saque de uma lâmina ao mesmo tempo que Sashi desembainha a sua katana. Nós dois gritamos a mesma coisa, um pouco antes da cópia acertar seu ataque, em uma só voz:

—『RETALHADORA DE SONHOS, ESTILO DO EQUINÓCIO: DIVISOR HORIZONTE PRIMAVERIL!! 』

De repente, todo o mundo à nossa volta para. Tudo fica em negativo, o espaço e a realidade racham com o balançar da katana de Sashi. O vento se agita incontrolável, a terra treme e se parte.

Um vácuo é formado no espaço entre nós e a cópia e o pouco que consigo ver antes de tudo voltar ao normal foi a breve fração de segundos em que a cópia da Sashi desapareceu, exibindo uma expressão de susto e espanto, a primeira reação dela naquela luta inteira.

E então, metade do tronco da minha cópia desaparece completamente. A Sashi falsa vaporizou com o ataque e desapareceu, mas o Calebe falso continua de pé, mesmo sem metade do tronco. Sua expressão de superioridade, mesmo diante da derrota, não se abalava nem um pouco.

— É... acabou — digo, ofegante, mal aguentando ficar de pé.

Percebendo isso, Sashi vai até mim correndo e se oferece para servir de apoio. Uma risada alta vem da cópia.

— Muito bem, Calebe. Ganhou mesmo. Mostrou que ainda é capaz de usar a Sashi adequadamente.

— Eu... cof, cof... não “uso” a Sashi. Ela luta por mim e eu... — Antes de terminar de falar, eu lembro novamente do meu erro. Da minha omissão. Juro em silêncio que não vou mais cometê-lo. — Vou lutar por ela.

— Calebe?

A cópia sorri, fechando os olhos. Sua imagem começa a se desvanecer em um pó negro, como cinzas levadas pelo vento.

— Então é melhor se cuidar, rapaz, e cumprir com o que está dizendo — Antes de sumir, ele conclui sua fala em um tom de ameaça: — Porque quando menos esperar, eu vou estar lá pra puxar seu tapete, garotão! E todo esse poder... será meu.

E então, ele some de vez.

 

 

*****   *****

 

 

Ao acordar, eu ainda estou na enfermaria. Minha mente deu um nó e alguns neurônios — os poucos que tenho — fritam para tentar entender o que está acontecendo. Ainda meio tonto, desnorteado com tudo que aconteceu, procuro me situar no ambiente.

Paredes brancos, forro, ar-condicionado, ambiente silencioso, soro... nada fora do lugar, assim como da primeira vez que estive aqui. Com um pequeno adendo...

A enfermeira está caída no chão da enfermaria.

— ...?!

Ela... aquilo que enfrentei era obra dela? Estive em um Campo Lúdico esse tempo todo, pensando que eu estava na minha própria mente? De novo, outro agente consegue me achar e descobrir que tenho esses poderes...

Uma cama depois, Sashi está deitada e parece estar cochilando. Assim como eu, ela deve estar exausta da luta contra a versão preto e branco de si mesma.

Sashi... você não sumiu. Não me deixou. Que alívio! É como tirar um grande peso de cima dos ombros. No entanto, ao levantar, uma pontada de dor me derruba na cama de novo. Levanto a blusa e percebo que uma marca sutil, indo desde a lateral da minha costela até a barriga, está aparecendo, como uma grosseira cicatriz deixada por um ferimento terrível, curada a muito tempo. De longe talvez não fosse possível vê-la, mas de perto...

— Isso é... como?!

— Calebe? — Sashi chama meu nome enquanto boceja e se espreguiça. — Já está acordado?

Abaixo a blusa, bem rápido, tentando disfarçar o espanto e o terror da descoberta. Sashi pisca duas vezes, aparentando estar confusa. Tomara que ela não tenha visto nada ou ela ia ficar preocupada.

— Hum? O que foi, Calebe? Parece assustado...

Desviei o olhar, focando na enfermeira caída e então na bolsa de soro, enquanto removo as agulhas do meu braço. Estava na hora de sair dali, mas para não deixar evidente meu abalo com a descoberta da cicatriz, respondo com um meio sorriso:

— Não... não é nada.

 



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