Volume 1
Capítulo 16: O mascarado que retalha sonhos I
— Droga, velho! Quando você vai parar de meter em furada, hein?! Que saco!
Um tornado de piche havia se formado no centro do campus — que belo lugar para um pesadelo aparecer, por sinal. Alguns cães negros, feitos dessa gosma e que parecem meio fantasmas, nos atacam de todos os lados. Não só isso; vermes, besouros e todo o tipo de aberrações brotam daquelas poças de lama negra, assim como das partículas do próprio vórtice.
Sashi corta e divide e esmaga junto de Charles — o detetive mala que não consegue me deixar ter um dia de gente normal naquela universidade — enquanto tentam abrir caminho até o agente: um mendigo.
Sim, um mendigo que dorme profundamente em um banquinho, enquanto se estrebucha e geme, é o agente daquele Campo Lúdico. O pesadelo dele está fora de controle e aquelas coisas estão destruindo tudo.
— O que vamos fazer, Charles? — Sashi pergunta, sua armadura e quimono toda suja e pegajosa de toda aquela gosma preta.
— Temos que abrir caminho até ele. Você pode fazer isso, não é? Já o fez antes.
— Acho que sim, mas....
— Não se preocupe. — Ele gira uma faca em sua mão, com destreza. — Eu cuido dos cachorros e do resto e você vai até ele e o desperta.
— E todo aquele papo de “não acordar os agentes de qualquer maneira e bla-blá-blá”? — pergunto, irritado com a demora para resolvermos aquilo. Eu ainda tenho que dormir, pois amanhã vou ter uma apresentação de Semiótica, doidooo!
Charles revira os olhos e nem se digna a responder minha pergunta, voltando sua atenção para os pesadelos.
Velho mala.
— O plano vai ser o seguinte: eu vou abrir caminho para você enquanto nós...
De repente, no meio da explicação do Charles, em questão de um instante, um vento estrondoso passa por nós sem que eu conseguisse ver — que novidade, né? — o que era. Praticamente como passar um caminhão em alta velocidade por nós, tanto que o vento me arrastou alguns centímetros do lugar, quase me fazendo cair.
Mas só então que percebo que o que passou por nós deve ser excepcionalmente rápido, pois nem mesmo Sashi ou Charles também viram o que passou, deixando os dois com uma cara de bunda lembrando o Bernardo quando perde uma aposta no UNO. Porém, diferente do meu melhor amigo, aquilo não é nada engraçado.
Quando percebo, a luta já tinha terminado. Os cachorrões de piche, reduzidos a poças espalhadas pelo pátio e o mendigo, acordado. O que aconteceu nesse curto intervalo de algumas piscadas?
Para conseguir esse feito, teria que ser no mínimo tão rápido quanto a Sashi. Não... algo muito mais rápido se ela e Charles não conseguiram enxergar. O Campo Lúdico já era.
— Quem é você? — Charles pergunta para alguém que eu ainda procuro.
Encontro um homem de estatura alta, parado em cima do telhado do prédio da administração do campus. Ele veste calça preta que se alargava conforme chegava nos tornozelos, lembrando um hakama. Sem nada para cobrir seu tronco trincado, os gomos de músculos em seu abdome poderoso ficam amostra, assim como o peitoral definido. Seu rosto está escondido sob uma máscara de raposa preta com rajadas vermelhas.
Até mesmo tem orelhas de raposa que são da cor do cabelo. Algo me diz que ele não é do tipo muito... normal.
Seja lá quem ele for, tem uma aparência e uma presença única. Ignorando completamente a pergunta do velho detetive, ele se vira lentamente para nós, nos analisando, nos olhando de cima, em um silêncio sepulcral.
— Outro samurai? — A voz sai como um sopro e então percebo que até aquele momento estava com o ar preso nos pulmões. — Você conhece ele, Sashi?
— Nunca o vi na vida — responde. — Como ele derrotou todos os cães e dissipou o Campo Lúdico sem que nós víssemos?
— Pelo jeito, vou ter ainda mais trabalho do que imaginei com esses Não-Catalogados — comenta Charles, baixando o chapéu. — Já me sinto cansado.
— Que mané cansado! Você passa o dia deitado, velho!
O samurai mascarado permanece em silêncio.
— Será que ele é amigo ou inimigo? — Acho que é a única pergunta que importa.
— Só há um jeito de nós saber... — Quando Sashi faz menção a sacar sua espada, algo bizarro acontece.
Uma sensação estranha e mórbida nos atinge como um soco no peito. Eu vejo, mais do que sinto, a cabeça de Sashi sendo decepada bem na minha frente! Seus lindos cabelos negros tomados pelas chamas violetas são cortados; seu pescoço perfeito e branquinho se separa do corpo e a cabeça sai rolando no chão até parar aos meus pés.
Ela está com um olhar congelado de medo enquanto um rastro de sangue escorre do canto da boca dela. Eu mal consigo olhar para aquilo e respirar...
E o que é pior: eu sinto tudo aquilo intensamente como se minha própria cabeça tivesse ido ao chão, o que faz tocar várias vezes o pescoço para ter certeza de que minha cabeça ainda está bem grudada a ele.
Eu pisco algumas vezes e então volto para a realidade com Charles me sacudindo e me chamando, percebendo que estou suando frio e completamente pálido. Até mesmo a leve brisa do ambiente me faz ter calafrios.
— Jovem Calebe! O que houve? Estava fora de si.
— O-O que aconteceu?
— Me diga você. Ficou completamente hipnotizado olhando para o...
— O samurai mascarado! — Eu o interrompo, a voz se alterando mais do que o esperado. — Ele...!
— Calma, calma! Ele foi embora — informa Charles, me segurando firme. — Ficou um tempo parado e então desapareceu. Está tudo bem. — Charles olha firme nos meus olhos, sua boca formando uma linha dura e decidida. — Se acalme, jovem. Nada aconteceu.
Então isso tudo foi uma visão? Uma ilusão?
— E cadê a Sashi?
Ele sai da minha frente e mostra a Sashi parada, a cabeça erguida olhando fixamente para onde o samurai misterioso estava a poucos momentos atrás. Fui até ela para acordá-la de algum possível transe.
— Sashi! Sashi, você tá bem?
O que encontro é uma Sashi de rosto chocado, assustada, pálida como um fantasma. Sua mão congelou em cima da empunhadura, sem conseguir tocá-la. A mão que segura a bainha treme muito e a respiração dela sai ofegante, travada pelo medo. Pelo visto, aconteceu a mesma coisa com ela.
— Está tudo bem. Ele já foi. — Toco na mão dela gentilmente e a desperto do transe assim como Charles fez comigo. — Ele já foi. Estou aqui, Sashi.
— Calebe...
— Que foi?
— Nós... quase morremos.
***** *****
Semiótica... o trabalho foi um desastre e não podia ter sido diferente. Mal tive tempo para preparar a apresentação, organizar as ideias, mas a sorte que meus companheiros de grupo me salvaram. Quase morro de vergonha. Mas não consigo me concentrar com tudo o que aconteceu ontem, as palavras do velho Charles ainda frescas na minha cabeça. É quase como ver a cena de novo, só que eu vejo Charles no lugar da professora Samira e sem suas explicações espalhafatosas diante da lousa branca.
Irei investigar sobre aquele samurai estranho. Não se preocupe, jovem Calebe. Ao que percebi, não parece nós sermos o seu alvo. Porém, devo lhe pedir, de praxe, para que fique alerta.
Fala sério! Como uma organização tão secreta e organizada, da qual aquele velho tanto se gaba, não sabe como uma persona tão poderosa como aquele samurai pode estar a solta por aí, sem nenhum controle? Fico a me perguntar se a única tarefa dele é somente de me seguir pra todo lado e ficar enchendo meu saco.
Por mais incrível que possa parecer, nada de “incomum” acontece durante o dia. Sashi está mais atenta e vigilante do que nunca, parecendo que está escoltando o próprio presidente. Vez ou outra eu olho para ela para ver como está; sem partes translúcidas, sem sinais de fraqueza ou desespero. Ela está inteira, viva, saudável.
Ela está comigo. Isso aquece meu coração calejado.
Pode chamar de paranoia se quiser, mas desde aquele dia, eu sempre vejo se ela está bem, pelo menos umas três ou quatro vezes ao dia, e piro se não o fizer. É quase um TOC pessoal. E não é como se a força da Sashi estivesse completamente recuperada. Se estivesse, ela mesma teria cuidado daqueles cães de piche sem precisar daquele samurai mascarado para roubar a cena.
O dia foi cansativo, mas não reclamei e não reclamo, pois é um dos poucos dias normais que tenho o prazer de desfrutar. Sem pesadelos assassinos, sem personas psicopatas, sem agentes querendo me trucidar por nada... apenas matérias normais e chatas com professores normais e chatos.
Enfim... um pouco de sossego. Pelo menos, é isso o que eu pensava até abrir a porta do dormitório.
— ...?
— ...!
— Hã...?
— Oi.
É uma... menina? Uma menina no meu dormitório. O que uma menina faz no meu dormitório? Um dormitório masculino?
— Hã... quem é você e o que tá fazendo no meu dormitório?
— Emma e tô... desarrumando as malas, não tá vendo?
— Isso eu tô, mas... sabe que esse é o dormitório masculino, não é?
— Ah, não se incomode. Fui transferida ontem e como estamos no meio do ano letivo, ainda não tenho um quarto. Vou ficar aqui com você só alguns dias até eles arrumarem um lugar pra mim, pode ser?
Não me oponho, apesar de ainda achar estranho. Acabaram-se as minhas sagradas noites de quinta-feira, que ódio!
— Você veio de onde mesmo?
— USP — diz a Emma, sem olhar para mim.
U-U-U-UUSP?! O que ela tá fazendo aqui nesse fim de mundo?!
— S-SÉRIO?!
— Por que a surpresa?
— Por quê?! Só a faculdade mais top do Brasil! O que cê tá fazendo aqui em Morro Branco sendo que você tava na USP, mulher?!
— Aí, para de chilicar que nem uma puta! Você faz perguntas demais, sabia? Não se passou nem cinco minutos e você já tá sendo um pé no saco!
— Tá bom, tá bom, calma! Eu, hein? Santo humor.
Ela esfrega os olhos e as têmporas, suspira demoradamente e então se vira pra mim. Prestando mais atenção, seu rosto está bem detonado, assim como eu quando passei a noite em claro estudando. Para ela, isso parecia rotina. Será que todo aluno da USP é assim?
— Olha, foi mal, tá legal? É que eu... tenho problemas pra dormir. E minha mãe achou que uma mudança de ares me faria bem, por isso pedi transferência para a Universidade Morro Branco.
Sem dizer nada, apenas levanto uma sobrancelha de curiosidade.
— E por isso... — continua ela, espalhando uma pilha de blusas sobre a outra cama do dormitório. A Sashi vai ter que achar outro canto pra dormir, tadinha. — Eu costumo ficar de mau humor muito fácil. Foi mal, cara. Não é pessoal, tá?
— De boa. Desencana.
— Ah, bom. Até porque se você entendesse ou não, não ia fazer a menor diferença para mim mesmo.
Realmente, é como falar com duas Emmas, duas pessoas diferentes. Que mudança de humor imprevisível! Mas não importa, de qualquer forma. Ela só vai passar dois ou três dias no máximo e só vou ter que aturá-la no período da noite, isso se eu chegar e ela já não estiver dormindo.
Nada que possa perturbar minha tranquilidade.
E não é como se fosse ser tão ruim assim. Emma até que é muito bonita; sua pele é levemente morena, seus cabelos crespos bailando enquanto caem soltos e livres e bagunçados pelas laterais da cabeça, algumas mechas cobrindo um de seus olhos amendoados. Seus lábios são carnudos e seu corpo é magro na medida certa, evidenciado pela calça de ginastica cinza e colada que vestia, combinando bem com o casaco e a blusa mais largada.
Sashi me olha torto, os braços cruzados enquanto bate o pé repetitivamente.
— Que é? Ela é bonita, o que eu posso...
— Tá falando com quem? — Emma pergunta de repente.
— Ni-ninguém. — Balanço as mãos, Sashi gargalhando do meu lado. — Só estava repetindo as palavras da professora da última aula. Sabe... só pra fixar o conteúdo na cabeça.
— Eu hein. Tu é muito esquizo, já te falaram isso? Quando eu tiver dormindo, fica longe de mim, falou?
— Tá bom.
Bom... só três ou quatro dias. O que pode dar errado, né?
***** *****
Engraçado... ela tinha me dito que tinha problemas para dormir, mas quem não conseguiu dormir direito fui eu. Claro, não é como se ela tivesse dado trabalho, só que não estou acostumado a dormir com... companhia. Ainda mais companhia feminina.
Ao acordar, ligo a mini tv no canto do quarto e deixo lá enquanto caço algo na mini geladeira para comer na mini mesa atrás da mini beliche que mal consigo dormir se ficar com os pés pendurados. De começo, eu fico com certo receio de ligar a tv, com medo de acordar ela, mas Emma parece estar dormindo como uma pedra.
E isso se confirma quando eu coloco o volume no 30 — praticamente um paredão em um quarto pequeno daquele — e ela não acorda. Sequer se mexe, enrolada no lençol grosso como uma múmia dentro de seu sarcófago. Ao lado do travesseiro dela, uma caixa de remédio está semiaberta.
— Remédios pra dormir, né? — Falo comigo mesmo.
— As investigações policiais estão em sua fase final e concluem que, em todos os casos, alguém esteve horas antes ou durante as mortes das vítimas, atestando que, de fato, as mortes recentes foram frutos de homicídio. Agora a polícia trabalha arduamente para identificar o suspeito e leva-lo à justiça. Caso tenha alguma informação sobre o suspeito e quiser contribuir com a polícia, faça sua denúncia através do número abaixo ou acesse nosso site.
Parece que dessa vez o Bernardo não tava tão louco afinal. Não é à toa que só se fala disso na tv. Não é à toa que esse assunto não sai da boca do povo.
Será que esse assassino seria algum agente onírico agindo, matando as pessoas enquanto elas dormem? Não... se fosse, Charles já estaria me enchendo o saco para capturarmos esse sujeito de uma vez, visto o tanto de problemas que ele está trazendo para a cidade.
Por hora, não adianta pensar nisso. E já tenho coisas demais para me preocupar.
..
— Caaaara! Qualé! Você sabe que minha teoria é brilhante! Admita, ser mortal!
— Admito que é brilhantemente estúpida — digo, apoiando o rosto no punho fechado. — E ainda não vi você nem tocando nessa sopa. Tá com fastio, é?
— Eu não. Só peguei pra dar pro senhorzinho que fica mendigando na entrada do RU. Com o tanto de óleo e gordura que esse troço tem é capaz de meu cérebro brilhante derreter.
— Acho que seria melhor assim. — Bato duas vezes no tampo da mesa, quase engasgando com uma risada. — Seria quase um... zumbi pensante! Não... um chimpanzé hacker! Uma ameba com PhD!
— Há,há,há! Hoje cê tá muito engraçado, cara. Fez curso com o Porchat pra ser tão engraçado assim? — Bernardo retorce os lábios em uma careta.
— Tipo assim... — No meio da frase, eu vejo algo... curioso no céu. Uns tentáculos gigantes tremendo enquanto erguem um banco de praça no ar. Nada fora do normal. — É... é que eu... eu...
— Que foi, cara? Cê ficou pálido de repente? Tá com dor de barriga?
— É... isso! Isso! Cê é louco! Minha barriga começou a doer muito, cara! Eu acho que vou ter que ir no banheiro! Te vejo na sala!
— Eu disse que essa sopa ia fazer mal, cara! Eu disse! — Bernardo grita de longe.
Sashi parece perceber minha inquietação e o que estava acontecendo do outro lado do campus e minha acompanha sem que eu dissesse nada. O que seria agora, pelo amor de Cristo? E eu que estava achando tão bom ter que me preocupar apenas em entender o conteúdo da professora Iohanna e fazer meu caderno para a prova dela — que também é daqui a uma semana.
De acordo com o que vi, seja lá o que fosse, está no pavilhão onde fica os ônibus do campus. A garagem onde os transportes, que circulam dentro da universidade, ficam.
— Você viu aquilo?
— Vi — Sashi aperta os olhos. — Também estou sentindo uma grande quantidade de energia onírica em um rastro nessa direção.
Desde quando ela era capaz de farejar sonhos? Muita coisa mudou entre nós desde o último incidente e que eu ainda não tinha reservado uma parcela dos meus neurônios para pensar sobre. Ignorar é mais fácil do que refletir, se torna oficialmente meu lema de vida.
— Certo. Mostra o caminho.
Ela sorri e acena com a cabeça positivamente, indo na frente. Ela pode se dar ao luxo de fazer isso, diferente de mim. Agora que eu estava conseguindo me ajustar socialmente àquela realidade universitária, fazer qualquer coisa... duvidosa, me colocaria na sombras da vida social novamente.
— Sashi? Puf! O que... puf, puf... foi? Puf...
Ela para de repente, no meio do estacionamento, sem nem suar, sem despentear as perfeitas madeixas negras, sem a respiração ofegante enquanto eu estou quase para morrer, tentando acompanhar ela.
— O pesadelo... sumiu — constata ela, em um tom de surpresa.
— Como... puf... assim? Sumiu como? Puf!
— Eu o eliminei.
Uma terceira voz responde à minha pergunta, saída de algum lugar. Uma voz grave e imponente, porém, calma, contida. Sashi montou uma postura de alerta, pronta para sacar a katana enquanto eu quase giro a cabeça em 360° ao passo que tento recuperar meu fôlego.
— Quem é? Apareça.
— Sabia que nos veríamos de novo — A voz vai ficando mais alta, mais próxima. — O destino nos levou novamente a este encontro.
E então, detrás de um dos ônibus estacionados, uma figura surge andando, de braços cruzados colados ao corpo. Sua postura é rígida, seu caminhar é decidido e gracioso, mas dar um ar de perigo. Ao viramos, o reconhecemos logo. Sem sombra de dúvidas...
É aquele samurai mascarado de novo!
— Foi você mesmo que eliminou o pesadelo? — Sashi pergunta, cautelosa.
— Algum problema com isso?
— Olha, a gente tá muito agradecido por você ter feito isso, mas... quem é você? E por que está eliminando pesadelos?
Os olhos vermelhos dele cintilam através dos buracos, que já é diferente da máscara do último encontro. É uma máscara vermelha, de um bicho feio — quase tão feio quanto o Bernardo quando acorda —, lembrando um demônio, com um narigão.
— Sou um espadachim andarilho em busca de aperfeiçoamento.
— Hã?
— Vago pelas terras, afiando minha espada, fazendo justiça para aqueles que merecem. — Ele fica de frente para nós, agora completamente visível. Cada traço, característica... tudo nele impunha respeito e temor. — Acredito que minha busca me levou até este momento. Até vocês.
— Como assim? Deixa de onda e diz logo por que você tá matando pesadelos e onde está o seu agente. Por que você tá falando como se fosse...
— Eu não sirvo a ninguém a não ser a mim mesmo! Vivo por mim e pela minha espada apenas — corta ele, com um gesto exagerado. — Existo apenas para cortar os céus e a terra com minha lâmina.
O que será que deu nele? Tá tentando distrair a gente com essa encenação teatral, ou só tá tirando uma com a nossa cara? Se for a primeira, ele entrou muito no personagem, puta merda!
— Escuta aqui, o que quer que realmente queira com isso, recomendo parar. Aqueles loucos da sociedade vão...
— Eu não importo nem um pouco com a opinião de terceiros — interrompe de novo. — Sou Yatsufusa e vivo apenas pela minha espada!
Sashi fica na frente enquanto me empurra para trás, desembainhando sua katana. Os pelos da minha nuca se arrepiam quando um vento frio e quente passa por nós, prenunciando uma treta.
— Sashi, o que...?
— Para trás, Calebe. Esse sujeito é perigoso.
— Vejo que já entendeu o porquê de estarmos aqui, não é guerreira? Admiro seu espírito de luta e responderei sua força combativa de forma adequada.
De repente, uma luz começa a brilhar no pulso do braço estendido de Yatsufusa.
— Tenho peregrinado por terras distantes, andado por vales secos, superado os mais longínquos oceanos a procura de adversários que pudessem me proporcionar uma luta digna de vida ou morte. Alguém que colocasse minhas habilidades à prova. — Enquanto ele tagarela, a ponta de uma lâmina começa a sair do pulso lentamente, através de uma fissura luminosa. — Os deuses ouviram minhas preces, se compadeceram de meu árduo esforço na busca pela arte suprema e me enviaram uma oponente digna? Ou será que você vai ser apenas mais uma que cairá sobre minha espada sem sequer me oferecer um desafio?
— Calebe, cuidado. Fique para trás! — grita Sashi.
— Que esse doido tá querendo?!
Um espadão, do dobro do tamanho da katana de Sashi, surge de seu braço. O longo fio da katana de Yatsufusa brilha, refletindo a imagem de Sashi em postura defensiva.
— Já tava me perguntando onde tava sua espada...
— Vamos começar?
Ele deixou a espada baixa, a guarda aberta. O que ele está esperando? Que Sashi ataque para pegá-la em uma armadilha?
— Acha que eu vou cair nessa? — Como se pegasse meu pensamento, o que é obvio, porque Sashi faz parte da minha mente, ela provoca o espadachim mascarado. — Você segura essa nodachi dessa forma, aparentando estar com seu peito desprotegido, mas a realidade é bem diferente, né?
Yatsufusa repuxa o lábio em um meio sorriso, como se já esperasse isso da Sashi. Ela está bem mais cuidadosa que o habitual, o que indica que o oponente dessa vez não é qualquer pesadelo ou persona.
— Que instinto de luta singular! — elogia Yatsufusa. — Pode ler minha energia e pressentir minhas intenções?
— Eu diria que está mais para instinto — Sashi sopra o ar, a voz ofegante. — Esperava menos de mim, Yatsufusa?
— Na verdade, espero grandes coisas de você, guerreira! — A postura dele muda bruscamente. A máscara do nada começa a mudar também, voltando a ser aquela máscara de raposa preta com vermelha do primeiro encontro. — Qual seu nome?
— Musashi, a grande espadachim que derrota todo o mal! — Sério que ela disse o título que eu dei pra bonequinha?
Meu rosto fica quente de tanta vergonha.
Yatsufusa parece curtir e deixa sua nodachi erguida ao lado do rosto, os dois braços segurando bem firme o cabo laqueado com tiras de couro e tranças costuradas a mão.
— Excelente, Musashi! Se prepare!