Volume 1
Capítulo 8: Sonhos que veem o futuro I
— Danilo?
Não tem erro. Aquele gingado torto, aquelas pernas de pinça parecendo um alien, corpo franzino ensacado com roupas largas e casuais. Reconhecível de longe. Mas... o que ele está fazendo aqui?
— Oi, primo. Como vai?
— Mandaram me chamar, mas confesso que não esperava a visita. O que tá fazendo por aqui?
— Cê sabe... Reabilitação, viagem, ares novos... tô voltando agora.
— Parece muito bem.
— Já tive dias melhores... — Ele suspira. — Universidade Morro Branco, hein?
— Nada mal, né? — O nariz empina mais que uma moto agora. — Para um descerebrado que teve que aprender tudo nas pressas, acho que eu mandei bem.
— Sim... eu soube do acidente. — A voz dele agora é de pesar. — Todos ficamos preocupados que você...
— Ei! Corta esses papo, cara! Tô vivo, tô bem e agora sou um UNI-VER-SI-TÁ-RIO! — Dou um tapa no ombro dele para animar. — Já sei! Vamo sair pra beber! Tem um bar muito bom aqui perto e aí você me conta tudo sobre suas viagens, pode ser?
— Fechou, então.
Nos despedimos e me viro só pra encontrar o rosto incomodado da Sashi atrás de mim, os braços cruzados e o pé batendo. Isso nunca era um bom sinal. Mas poxa... é meu primo, caramba! Que tipo de mal ele poderia me fazer?
— Nem vem com essa. Já sei até o que você vai dizer.
— Não ouviu quando os gêmeos falaram? — Sashi faz questão de refrescar minha memória.
A recordação passa como um filme na minha mente, voltando exatamente no momento após a derrota humilhante deles pra Sashi.
...
— Você... você é muito forte! Você venceu, venceu! — choramingava Beni.
— Então me diga, vocês também possuem esse tal de...
— Dom Onírico — completou Sashi.
— Isso, isso! — respondeu Lindalva, tremendo. — Nós temos poderes assim como você. Nós temos um dom.
— Mas então... onde está o persona de vocês?
— To-todo esse espaço é nosso persona — revelou Beni. — Atraímos pesadelos e personas de outros agentes para cá para escraviza-los.
Como eles podiam falar daquilo com tanta naturalidade? Escravizar personas e pesadelos... eles realmente eram tiranos da pior estirpe.
— Certo..., mas me respondam uma coisa: Então existe outras pessoas com poderes iguais a nós? Vocês sentiram que eu era uma dessas pessoas?
Eles se entreolharam, como se não tivessem entendido a pergunta.
— Sim. Existem muitos por aí, mas nós não tínhamos certeza se você era ou não até te arrastarmos pro nosso sonho.
...
A conclusão que restou após essa conversa foi o ponto de partida disso tudo:
Pessoas com dons oníricos sempre estarão fadados a se encontrar.
***** *****
O bairro dos Pessegueiros é famoso pelas casas de show e bares noturnos e, para nossa sorte, ele fica bem próximo à Universidade Morro Branco. Uma verdadeira pérola da nossa cidade, um dos cantos mais frequentados para quem busca um lugar para sumir do mundo no interior de São Paulo.
Eu apresentei o campus ao Danilo — pelo menos o que pude antes de anoitecer — e depois saímos para a noitada. Minha casa favorita é o Boteco do Desorientado — esse em especial, eu e Bernardo temos histórias de batalhas gloriosas travadas sobre essas mesas.
Os olhos do Sr. Michel, o dono, brilharam ao me ver. “O que vai ser hoje?” era sua frase favorita.
— A primitiva!
Começamos leve; uma cerveja. Danilo quis apelar indo logo para um drink à base de gin e limão. Eu não perderia tão fácil obviamente. O louco do Bernardo já teria me oferecido desafios maiores àquela altura e parece que meu primo não queria cair morto em algum banco de praça e acordar só com as cuecas. Fraco!
Quando comecei a ver a cabeça do Sr. Michel se dividir em três como se fosse uma hidra, eu senti que era hora de parar. Havia um seminário amanhã pra assistir e eu não podia acordar com ressaca — apesar de que já era quase inevitável esse cenário quando marquei aquele rolê.
Os momentos que se sucederam após isso são nebulosos na minha memória, mas eu apenas lembro que o Bernardo chegou no bar poucos momentos antes de nós saímos, reacendendo a chama de um rolê já dado por encerrado. Bebi mais algumas com ele e o Danilo sumiu completamente da minha vista.
Depois que terminei de encher o resto da cara, não lembro como foi o trajeto do bar até o campus. Tudo isso foi apagado da minha memória para dar lugar a um sonho.
Um sonho diferente daquele que me assombra todas as noites. Nesse sonho, estou no campus em um dia praticamente comum, andando nos corredores entre um bloco e outro, Bernardo ao meu lado... tudo normal até aí.
No entanto, uma tragédia acontece; ao passarmos perto do Bloco F, em direção à aula de Semântica, um ar-condicionado de uma sala do andar de cima desgruda e desce exatamente na cabeça do Bernardo, deixando-o praticamente morto.
Não importa que eu tenha visto ou não o ar-condicionado caindo, normal ou em câmera lenta, não consigo impedir a tragédia de nenhuma forma.
E a cena se repete... se repete... se repete...
— NÃAAAAAAAAAAAAOOO!!
Acordo com um sopapo da cama, suando litros e arfando como um triatleta depois de uma maratona. Sashi está na cama do outro lado e vem conferir como eu estou. Ela está visivelmente preocupada.
— Calebe! Calma! Calma! Já passou, já passou!
Demoro um tempo pra frear o ritmo do coração ao mesmo tempo que sinto uma pontada tão forte na cabeça que penso que vou morrer de um derrame. Sim... a sensação é como se Sashi estivesse tentando limpar meu ouvido usando sua katana como cotonete.
Encontro o rosto lindo e preocupado da Sashi me encarando com expectativa e aflição. Ela passa sua mão delicada sobre minha testa suada, quase soltando vapor com a diferença de temperatura.
— Está tudo bem, Calebe? Teve mais um sonho ruim?
Chamar aquilo de “sonho ruim” é eufemismo. Inspiro profundamente e me ajeito nas cobertas, a testa escorrendo suor assim como os sovacos e a sola dos pés.
Eu nem mesmos sei como eu cheguei no meu quarto ou o porquê de eu estava tendo sonhos trágicos em um sono alcoolizado, mas de uma coisa eu entendo: nada que acontece comigo acontece por coincidência.
Espero eu que tenha sido apenas um sonho ruim.
...
Acordo atrasado, atropelando toda uma rotina de anos e anos de esforço duro para cria-la. Claro... agora estou pagando com juros o “passeio” de ontem à noite. A cabeça começou a doer durante a madrugada, quando acordei com o susto e até agora não para de latejar.
Acho que tem um embrião de um alienígena se contorcendo no meu cérebro, lutando para sair. Bernardo me encontra no meio do caminho e percebe isso ao comentar:
— Caaaaara... você amoleceu mesmo com o passar do tempo — diz com deboche. — Não aguenta nem um Cuba Libre e acha que pode bater de frente comigo? Tá me devendo uma pizza calabresa, hein cara?
— Vai se foder, Bernardo. — Sai quase que automático.
— HAHAHAHA! Não precisa ficar tão putinho. Hoje eu vou te compensar com um açaí na tigela depois da aula de Literatura Brasileira.
Meus olhos se estreitam pra ele automaticamente, os cabelos ficando em pé. Bernardo levanta uma sobrancelha questionadora.
— O que você disse?
— Ué, cara... você tá tão mamado de ontem que perdeu até a noção do tempo, né? Hoje é sexta-feira...
— Eu sei que é sexta-feira, animal. Eu tô falando das aulas! Hoje não é o seminário da Professora Roberta?
— Tá chapadasso, caaara! Agora nós temos aula de Semântica.
Esbugalho os olhos sem querer, perdendo o ritmo do coração por um instante. Olho para os lados como um drogado procurando a trouxinha de droga que deixou cair, tentando me localizar no ambiente.
Essa não! Eu estou... estou na calçada do Bloco F! Bloco F, calçada, aula de Semântica, Bernardo... Porra!
O fato de eu estar praticamente virado me tira o senso de localização e eu não me toco de que estou ao lado do prédio do Bloco F, exatamente na mesma calçada que vi no pesadelo que tive noite passada
Até mesmo o ponto de visão é igual ao que tenho agora e Bernardo está exatamente na mesma posição onde estava no sonho quando... quando... essa não!
— Bernardo! Pelo amor de Deus cara, sai daí! Sai daí agora! — Meu pedido soa como um grito aterrorizado.
— Que foi, caara? Cê tá muito exaltado, mermão! — Ele não entende o que estou tentando fazer e vai ainda mais pra frente, assustado com minha ação repentina.
— CARA! NÃO VAI PRAI NÃA...
BRUUM! PLAANK!
A parede racha com uma porrada invisível e o ar-condicionado escapa do molde feito para ele na lateral do prédio. O impacto é rápido, mas para mim se passa em câmera lenta... o exato momento que aquela caixa de metal branco pesada acerta a cabeça de Bernardo com um som quebradiço terrível, fazendo meu estômago dar um salto.
Da mesma forma... que o maldito sonho!
Um grito rasga o silêncio em algum lugar, passos apressados ecoam ao meu redor. Agora estou parado no meio do espaço, sem chão, sem ar... tudo à minha volta some, tudo se apaga.
Sinto meu corpo se mover com os empurrões externos, mas eu mesmo não tenho forças para mover os músculos.
Bernardo está caído na minha frente, praticamente morto... sua cabeça boia em uma poça de sangue.
E como no sonho... não há nada que eu possa fazer.
***** *****
O PII-PII-PII das máquinas são angustiantes com o passar dos minutos, das horas... Eu nem sei mais quanto tempo passei ali, apenas observando-o atentamente. Sashi está parada e calada ao meu lado como um espectro.
Do outro lado do vidro, Bernardo está em coma, lutando para voltar a acordar. O coma... um sonho do qual você nunca acorda.
— Calebe...
A fala da Sashi é cortada pelo som das portas do corredor se abrindo, passos apressados vindo até mim. O trio das famosinhas: Micaela, Tabata e Gabriella. Mais atrás, como uma sombra das três, vem o quieto Enrico.
— Calebe! Cadê ele? — Micaela pergunta.
Sem ter força ou vontade pra falar, só aponto a sala do outro lado do vidro.
— Ai, meu Deus! Que horrível! — Gabriella cobre a boca com as mãos.
— O que o médico disse? — Tabata pergunta.
— Que eles fizeram tudo que podia ser feito. — Só as palavras já rasgam meu coração. — Agora é esperar e confiar em Deus.
Enrico está quieto, olhando o cara que passou a chamar de “amigo” com um rosto mórbido — não que fosse muito diferente do rosto habitual dele —, seu olho baixo oscilando na minha direção vez ou outra, observando minhas reações.
— Podemos entrar?
— Não porque a cirurgia dele ainda é recente.
— Ele vai sair dessa, Calebe. Agora temos que ser fortes por ele. — Tabata vem com o discurso motivacional pré-pronto da internet, mas comigo isso não cola.
— Ela tem razão. A fé é nossa melhor amiga nesse momento.
A voz inesperada vem do final do corredor, meu rosto virando automaticamente para lá junto com a das meninas e Enrico, esse ainda mais surpreso que eu.
Quem vem é Danilo, do nada, andando como se estivesse em uma passarela. Seu rosto é enigmático e frio; não consigo dizer ao certo se ele está abalado ou apenas zombando do meu estado atual.
Mas só consigo sentir nojo daquela expressão dele, por algum motivo. Enrico olha desconfiado para ele e sai de fininho.
— Quem é Calebe? — Micaela pergunta.
— É... não vai apresentar pra gente? — diz Gabriella, os olhos pingando malícia.
— Ah, sim... esse é Danilo, meu... primo distante.
— Prazer em conhece-los. Devem ser amigos do Calebe e do Bernardo — Danilo os cumprimenta com uma educação polida que até então não tinha visto desde sua chegada à cidade. — Lamento a tragédia que aconteceu com ele e saibam que todas as minhas orações e energias positivas são para ele.
— Você conhece o Bernardo? — Tabata fez uma pergunta interessante — a mais sã das três pelo visto, pois é a única que não está com a língua pra fora escorrendo baba com cara de tapada.
Danilo olha torto para ela, mas antes que pudesse se explicar ou falar qualquer coisa, aproveito a deixa e emendo:
— É... conhece? — A sobrancelha desconfiada levanta sozinha.
Meu primo dá de ombros, um ar cínico fazendo uma sombra no seu rosto.
— Claro que sim. Bebemos juntos no bar, no dia que você me apresentou o campus, esqueceu?
— Eu me lembro de ter bebido com o Bernardo enquanto você sumiu.
Um atrito surge entre nossos olhares assim que eu o confronto. Já consigo até visualizar as faíscas daquele encontro, tão reais e palpáveis que faz o corredor do hospital parecer mais quente do que realmente é.
As meninas, observando a cena, não entendem nada do que está acontecendo ali.
— Acho que você já estava muito bêbado a essa altura, por isso sua memória deve estar confusa.
— É... pode ser que sim — desconverso, mas a pulga atrás da orelha já mordendo mais que um rottweiler furioso.
O ar pesado entre nós se mantém até que ele inventa uma desculpa para ir embora. Minha memória pode não prestar muito depois do acidente, mas eu sei muito bem que ele mentiu.
Por qual ou quais motivos ele teria para ir até lá e mentir sobre aquela noite? E como se uma luz se acendesse na minha cabeça ao melhor estilo cartoon, uma ideia tenebrosa surge, fazendo meu corpo tremer.
Como ele sabia do acidente do Bernardo?
Volto para os dormitórios essa noite com esse sentimento ruim: de que o “acidente” do Bernardo, não tinha nada de acidente. A expressão faceira, aquele ar esquisito dele... o modo cínico como Danilo se passou por um amigo preocupado fazendo uma visita.
Assim que entro no meu quarto, Charles está sentado na minha cama, me esperando com todo seu charme de detetive misterioso. Seu sobretudo marrom cobrindo o corpo alto — muito diferente do seu “corpo” real — é único e inconfundível. Seu bigode grisalho é a única coisa que consigo enxergar claramente debaixo do chapelão.
Tomo um susto básico, uma parada cardíaca de alguns segundos e Sashi toma a dianteira, como um guarda-costas mal-encarado, sua mão já no cabo da katana.
— Boa noite, jovem Calebe. Uma honra encontra-lo outra vez — cumprimenta.
— Porra! Vai dar susto na tua mãe, viado! — Recupero a compostura e continuo: — Vocês não sabem mesmo o que é esperar na porta não, né?
— Preciso de sua ajuda mais uma vez, meu jovem.
Suspiro, mandando a melhor careta de “ai que saco” do meu arsenal.
— Chegou num péssimo timing, meu senhor. Tente novamente daqui a uma semana, pode ser?
Ignorando completamente o que eu digo, ele prossegue:
— Há um pesadelo muito poderoso agindo nessa cidade, meu jovem. Creio que nesse exato momento, ele já possa estar agindo, bem debaixo de nossos narizes.
— Um pesadelo muito poderoso? — Sashi repete com interesse, sendo visível o brilho nos olhos. Claro... qualquer coisa que a salvasse da monotonia de uma vida universitária está valendo.
— Olha, eu não sei se até seu persona tá surdo ou você tá se fazendo de doido, mas não é uma boa hora...
— Eu sei o que aconteceu com seu amigo — diz ele, de repente.
A lembrança de Bernardo em coma em uma maca de hospital faz meus lábios se apertarem sozinhos.
— ...?
— Eu sei... eu entendo muito bem o que você está passando, rapaz.
Meus olhos o fuzilam furiosamente, como se ele quisesse e pudesse usar o que aconteceu com meu melhor amigo para me convencer a fazer o que ele queria.
— E daí? “Entender” não ajuda em nada, cara.
— Sim. Não ajuda — concorda Charles. — Mas podemos deter o responsável por isso e impedir que ele faça novas vítimas como seu amigo.
— Eu já disse... — Eu chego bem perto do rosto dele, olho no olho, os dentes rilhando com a mistura pesada de tristeza, dor e raiva. — Eu NÃO faço parte da sua organização e não farei! Isso não é da minha conta!
Seu rosto se mantém inabalado, mesmo com a minha proximidade e minhas palavras pausadas e furiosas. Mesmo nesses momentos, ele consegue manter a pose.
— Jovem Calebe... eu respeito sua decisão totalmente e concordo que essa não é a melhor hora para eu lhe fazer tal pedido, porém...
— “Porém” o quê, porra?!
A porta do dormitório se abre de uma vez, me assustando. É Micaela quem está lá, me observando falar sozinho como um esquizofrênico. Hoje está um verdadeiro dia de cão!
— Que foi? — Penso em ser grosso e expulsá-la do quarto, mas seu rosto está tão abalado que me desarma completamente, fazendo meu pulso gelar por um instante. — Micaela... o que foi?!
— A Tabata... ela... ela...
— Ela o quê?!
— Ela foi assassinada.